domingo, 26 de julho de 2015

Anote aí: Palestras com grandes nomes da filosofia no Brasil


by Cristina Moreno de Castro
Hoje quero divulgar um evento muito legal, recomendado pelo leitor Douglas Garcia: o ciclo de conferências "Mutações", que reunirá grandes nomes de pensadores contemporâneos brasileiros, como Vladimir Safatle, Eugênio Bucci, José Miguel Wisnik, Maria Rita Kehl, Jorge Coli e Marcelo Coelho, e é aberto ao público.
Desta vez, o tema do ciclo será "O Novo Espírito Utópico", e o evento vai acontecer em Belo Horizonte e São Paulo. Abaixo, a programação em BH:
mutacoes
Ficou interessado?
Pois bem, as inscrições começam amanhã! A inscrição para todo o ciclo, contendo 13 conferências, é de R$ 30,00 a inteira e R$ 15,00 meia-entrada. As conferências avulsas custam R$ 10,00 a inteira e R$ 5,00 meia-entrada.
Todas as palestras, com exceção da primeira, vão acontecer às segundas e terças-feiras, às 19h, no auditório do BDMG.
Mais informações podem ser vistas no site www.mutacoes.com.br ou obtidas pelo telefone da APPA (Associação Pró-Cultura e Promoção das Artes): 31-3224.1919.
(fonte: blog da KikaCastro)

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Lava Jato pode virar castelo de cartas?



Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Ao decidir mudar-se para Miami e abandonar três clientes no meio do processo, a advogada Beatriz Catta Preta coloca um imenso ponto de interrogação sobre a Lava Jato.

Cabe perguntar: a fortaleza do juiz Sérgio Moro pode se transformar num castelo de cartas?

Falo isso pensando na denúncia de uma escuta clandestina na cela que o doleiro Alberto Youssef e o executivo da Petrobras Paulo Roberto Costa ocuparam ao chegar a carceragem em Curitiba. Constitui um caso grave, digno de reflexão sobre os métodos empregados na Lava Jato, certo? Até porque pelo menos outras duas escutas ilegais -- envolviam conversa entre advogado e cliente -- foram usadas. 

O mesmo ocorre, agora, com a advogada que assinou nove das 18 delações premiadas da Lava Jato. 

Convém não esquecer que estamos diante de um processo no qual as delações premiadas são o principal recurso para acusar e condenar. Nessa atividade, a criminalista Catta Preta atuou no coração das investigações e teve um papel essencial, pela qualidade e pela quantidade. 

Foi ela que assumiu a defesa de Paulo Roberto Costa, quando este decidiu transformar-se em delator e negociar uma pena branda em troca de um dedo duro, numa guinada que deu uma nova dimensão à Operação. A advogada negociou mais oito depoimentos, sempre na mesma linha. Catta Preta advoga para o prolongado corrupto Pedro Barusco e também para Augusto Ribeiro de Mendonça, que deu um testemunho detalhado usado para incriminar João Vaccari Neto.

Nos últimos dias, um de seus clientes, Julio Camargo, deu um novo depoimento sobre a Lava Jato e, desta vez, incriminou o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, num pedido de propina de US$ 5 milhões. Dez meses atrás, em outro depoimento, ele não havia tocado no assunto. O próprio Cunha diz que Julio Camargo foi forçado a mentir pelo PGR Rodrigo Janot.

O advogado Nelio Machado, criminalista experiente e respeitado do Rio de Janeiro, que advoga para o lobista Fernando Soares, o Fernando Baiano, envolvido no depoimento de Julio Camargo, observa que "uma mudança de depoimento é muito estranha."

Há outras coisas estranhas. Dividindo a maioria das delações premiadas com Figueiredo Basto, advogado do doleiro Alberto Youssef, o desempenho de Beatriz Catta Preta sempre chamou a atenção pela quantidade de clientes que foi capaz de defender. A delação premiada é um instrumento que, mesmo reconhecido pela legislação, não deixa de provocar críticas de vários juristas respeitados a começar pela credibilidade de uma pessoa encarcerada. 


Já a atuação de uma só advogada na preparação de nove depoimentos, de nove encarcerados, coloca perguntas ainda mais sérias. 

O próprio Nelio Machado questiona: "vamos raciocinar em tese. O princípio da delação é que um réu deixa de se defender e passar a acusar. Se você tem um único advogado para defender tantos clientes, o risco de um conflito de interesses é evidente. A acusação de um sempre irá esbarrar na defesa de outro. Como é que um mesmo advogado irá atuar para defender as duas partes? Não consigo imaginar", diz Nelio Machado, adversário doutrinário das delações.

Aquilo que na vida das pessoas comuns se chama conflito de interesses, no mundo dos advogados é classificado como "patrocínio infiel." Se um advogado defende dois clientes num mesmo caso, pode ser enquadrado num crime que prevê pena de seis meses a três anos de prisão, mais multa.

Para entender melhor a situação, é possível dar um exemplo inocente. Toda pessoa que, na infância, participou de um brinquedo chamado "telefone sem fio" sabe o que acontece com uma frase retransmitida por nove bocas e ouvidos diferentes. Entre crianças, é muito divertido perceber como as palavras mudam de sentido. Todos riem e continuam se divertindo.

Entre adultos, as coisas não são tão divertidas assim, ainda mais quando se trata de pessoas acusadas de um crime, sob o risco de pagar multas pesadas e enfrentar uma longa temporada no cárcere. Neste caso, o jogo só dá certo quando se encontra uma narrativa neste telefone sem fio que seja do interesse de todos e também possa fazer sentido para a Justiça.

Supondo por hipótese que ninguém está mentindo, quem escolhe o que é bom para um cliente e não irá prejudicar o outro? Quem administra tantos interesses para que todos fiquem satisfeitos? Alguém faz acertos, negocia com as partes? 

Há outro aspecto, importante. O artigo 2 da lei que define a "Colaboração Premiada" diz que ela deve permanecer em segredo até a apresentação da denúncia. Antes disso, só pode ser conhecida pelo juiz, pelo advogado, pelo Ministério Público. Alguém acredita que essa regra está sendo respeitada nessa promiscuidade de advogados, delegados, procuradores, jornalistas? 

Deu para entender o tamanho da confusão, certo?

(fonte: http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/07/lava-jato-pode-virar-castelo-de-cartas.html)

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Amazônia: verdades que não se curam

por Najar Tubino

O povo Huni Kuin, do rio Jordão no Acre lançou o Livro da Cura, reunindo 109 plantas medicinais da Amazônia e seus usos – uma parceria com o Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e a Editora Dantes. A tradução de Huni Kuin é o povo verdadeiro e eles formam 33 aldeias no rio Jordão com mais de sete mil habitantes e também vivem no Peru. Mas a verdade é que das 30 mil plantas catalogadas da Amazônia, sendo duas mil espécies medicinais e outras 1.250 aromáticas apenas 2% foram analisadas. O Brasil importa 85% da matéria-prima usada na produção de medicamentos, um setor que no ano passado faturou R$67,5 bilhões no país. O professor aposentado da UNICAMP, Lauro Barata, especialista em botânica, ressalta que apenas as madeiras fazem parte da pauta de exportação da região Norte. As madeireiras já detonaram 3,5 milhões de árvores, sendo que 72% da madeira serrada são de baixo valor agregado.

O Brasil é o país do agronegócio, dos transgênicos das multinacionais, das tecnologias de medicamentos importados, e até mesmo dos fitoterápicos, cuja matéria-prima também é importada – um mercado de R$500 milhões. O faturamento da indústria farmacêutica beira o US$1 trilhão de dólares no mundo e as avaliações são que 7% desse mercado são abastecidos pelos fitoterápicos e pelas plantas medicinais. Desde 2006, o governo federal tenta implantar as metas da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Entretanto, os brasileiros estão viciados em drogas químicas, segundo uma pesquisa do Datafolha sobre saúde e medicalização, realizada em 132 municípios brasileiros, 54% da população toma algum medicamento regularmente – de vitamina a antidepressivo. A consultoria internacional IMS Health avalia que em 2016 seremos o quarto mercado consumidor de medicamentos no planeta.

O Congresso votou pelo saque do patrimônio genético

Além disso, a indústria de higiene, perfumaria e cosméticos faturou em 2014, R$101 bilhões. O Brasil possui 50 mil espécies de plantas, 30 mil na Amazônia, 16 mil na Mata Atlântica e sete mil no cerrado. Nunca desenvolvemos medicamentos usando matéria-prima nativa. A exceção ocorreu em 2005, quando o Laboratório Aché produziu um anti-inflamatório da planta “Cordia Verbenácea”, que está sendo registrado nos Estados Unidos e na Europa. Em 2008, um grupo de pesquisadores lançou um documento em prol da ciência e tecnologia da Amazônia, onde era reivindicado a criação de três novos institutos técnico científicos e três novas universidades, entre outras coisas, um investimento de R$30 bilhões em 10 anos. Pelo menos uma universidade foi criada, a Universidade Federal do Oeste do Pará, com sede em Santarém.

Mas isso não é nada perto do tamanho e a importância da Amazônia. Enquanto a biopirataria saqueia nossas riquezas, assistimos o Congresso Nacional votar uma lei de biodiversidade que privatizaria o patrimônio genético brasileiro. Só não ocorreu o pior porque a presidenta Dilma Rousseff vetou cinco pontos da nova lei. A única coisa que nem os políticos, nem a burocracia oficial, que enquadra o uso de plantas medicinais e produção de fitoterápicos como qualquer outro medicamento – obrigatoriedade de testes de todos os tipos, análise clínica e por aí vai-, conseguiram derrubar é a iniciativa dos povos e comunidades tradicionais, que continuam usando as plantas brasileiras para curar suas doenças. Sem contar que a população pobre não tem dinheiro para comprar químicos.

Falta vontade política

Sempre tem uma banca de ervas em alguma esquina do cerrado, do norte, e do nordeste, além dos mercados públicos do sul e do sudeste, que comercializam plantas, xaropes, pomadas, cremes etc. O pesquisador Juan Revilla, do INPA, também especialista em botânica e representante da região norte junto ao Ministério da Saúde, diz que a inclusão das plantas medicinais e os medicamentos fitoterápicos não é incluída na Atenção Básica do SUS por falta de vontade política. Ele coordena um projeto chamado “Farmácia Viva”, no município de Manaquiri, a 50 km de Manaus, que desde 2006 incentiva à população a usar as plantas medicinais da região. O viveiro conta com mais de 50 mil mudas de 120 espécies produzidas em 150 hectares.

Desde esta época a ANVISA recomenda que os estados e municípios façam inventários, criem grupos de trabalho, estudem sua flora local para incentivar o uso de plantas medicinais e fitoterápicos. A questão para o Brasil deveria ser estratégica, não somente porque temos um território de mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Nos regiões distantes, onde vive a população pobre, os médicos brancos brasileiros não querem trabalhar. Foi o cubano Javier Lopez Salazar, por exemplo, que reintroduziu o uso de plantas medicinais na aldeia Kumenê, do povo Palikur, onde são atendidas 1576 indígenas, a 590 km de Macapá – mais sete horas de barco de Oiapoque.

Há 30 anos, uma missão evangélica destruiu os conceitos dos indígenas e implantou os do cristianismo ocidental, e acabou com o uso das plantas medicinais. Foi Javier quem convenceu as lideranças da aldeia e o pessoal de saúde que era importante retomar o uso das plantas locais. O exemplo dele está sendo divulgado pela Organização Pan-americana de Saúde e a OMS num vídeo reportagem, que faz parte de uma série sobre a atividade dos profissionais do Programa Mais Médicos. O professor Juan Revilla diz que 95% dos problemas do município onde foi implantado o projeto “Farmácia Viva” poderiam ser resolvidos pela Atenção Básica do SUS com as plantas da região. Por sinal, o primeiro curso de Saúde Coletiva, da Universidade Estadual do Amazonas, formará a primeira turma com 22 alunos em 2016.

O sonho do pajé

A história do pajé Agostinho Manduca Ika Muru, do povo Huni Kuin é mais uma iniciativa fora da mediocridade da política brasileira. Por 30 anos, ele anotou em pequenos cadernos as informações sobre as plantas da região e seus usos, consultando outros pajés e os mais velhos. O pesquisador botânico Alexandre Quinet, do Rio de Janeiro encontrou com o pajé em uma de suas viagens e ficou sabendo do seu sonho de fazer um livro, que seria útil para os aprendizes de pajé. Em 2011, eles conseguiram reunir uma equipe de especialistas, incluindo taxonomistas – identificam as plantas – e 22 pajés durante 15 dias. Poucos dias depois Agostinho morreu. No ano passado foi lançado o Livro da Cura, com três mil exemplares, sendo mil produzidos com um material especial, feito a partir de PET, que é impermeável, para distribuição nas aldeias. Das 351 espécies descritas pelos pajés, os pesquisadores coletaram 196 e 109 estão no livro. As amostras devidamente identificadas estão no herbáreo do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.

O saque continua

O IBAMA tem um cálculo antigo que a biopirataria rouba do Brasil em torno de US$6 bilhões por ano em plantas, animais ou fósseis. São clássicos os casos de registros de frutas como o cupuaçu no exterior. Uma substância do veneno da jararaca brasileira, conhecida como captopril, foi sintetizada pelo laboratório americano Bristol Myers Squibb e usada no medicamento Capoten, um regulador da pressão arterial, garantindo vendas de US$5 bilhões no mundo. O pau-rosa é usado como fixador de perfumes desde a década de 1930, e entra na composição do Chanel nº5. Castanhas como a andiroba e o óleo de copaíba estão sendo registrados em várias regiões do mundo. Assim como fizeram com o Curare, que os indígenas usam para amortecer as presas nas caçadas, ou com o ayahuasca, o cipó alucinógeno da Amazônia.    

A verdade é que em pleno século XXI, da era digital, do celular ligado 24 horas, a Amazônia continua sendo saqueada, como foi nos séculos passados, e por desinformação total, o povo brasileiro adotou o método químico para cuidar de seus males, ajudando a indústria farmacêutica e química mundial, que querem a todo custo se apoderar desse patrimônio.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/Amazonia-verdades-que-nao-se-curam/3/34049)

Lula, Odebrecht, a toalha e o marmitex

Por Ricardo Kotscho, no blog Balaio do Kotscho:


No andar de cima, toalhas de linho e finas iguarias. Para o andar de baixo, marmitex.

Na perfeita imagem criada pelo jornalista Elio Gaspari, temos um resumo das divisões da sociedade brasileira, bem estampado num e-mail no qual o empreiteiro Marcelo Odebrecht comunica à mulher, Isabela, que uma sindicalista participaria de um jantar na casa deles. Em resposta, escreve Isabela, segundo o Painel da Folha desta quarta-feira, que reproduziu mensagem encontrada pela Polícia Federal no celular do empresário:

"Se sujar minha toalha de linho ou pedir marmitex... vou pirar. Saudações sindicais? Não mereço".

Muito antes da Operação Lava-Jato, em maio de 2012, Marcelo organizou este jantar, reunindo sindicalistas e grandes empresários em torno do ex-presidente Lula, para discutir a conjuntura econômica. A sindicalista a que os Odebrecht se referem é Juvandia Moreira Leite, presidente dos bancários de São Paulo.

Entre os 15 convidados, segundo documento vazado nas investigações da Lava Jato e reproduzido no blog do jornalista Renato Rovai, também estavam presentes João Roberto Marinho, vice-presidente do Grupo Globo, Abílio Diniz, do Grupo Pão de Açúcar, Eike Batista, do então Grupo EBX, Jorge Gerdau, Emilio Odebrecht, Luiz Carlos Trabuco, do Bradesco, Roberto Setúbal, do Itaú Unibanco, e Sergio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC.

Em seus oito anos de mandato, como sabemos, Lula procurou aproximar os andares da sociedade brasileira, governando para todos, mas uma parte da elite brasileira jamais aceitou o ex-metalúrgico na Presidência da República e seus companheiros reunidos na mesma mesa.

Esta resistência persiste até hoje, como se pode mais uma vez constatar neste e-mail tratando do jantar de 2012 e todos os dias nas crescentes manifestações de intolerância e preconceito contra pretos, pobres, petistas e nordestinos. Boa parcela do andar de cima ainda divide o mundo entre quem manda e quem obedece, cada um no seu lugar.

(fonte: http://altamiroborges.blogspot.com.br/2015/07/lula-odebrecht-toalha-e-o-marmitex.html)

quarta-feira, 22 de julho de 2015

O Judiciário no Brasil, segundo Comparato (2)

Damos sequência à publicação do artigo que iniciamos semana passada.

Brasil monárquico

A permanente duplicidade de ordenamentos jurídicos – um oficial, raramente aplicado, e outro não-oficial, mas sempre efetivo – acentuou-se após a independência do país. Como escreveu Sérgio Buarque de Holanda, “dificilmente se podem compreender os traços dominantes da política imperial sem ter em conta a presença de uma constituição ‘não escrita’ que, com a complacência dos dois partidos, se sobrepõe em geral à carta de 24 e ao mesmo tempo vai solapá-la”.[14]

A revolta política que levou à independência do país fez-se sob a égide de um pequeno grupo de intelectuais, fascinados pelos ideais libertários e igualitários da Revolução Francesa, logo depois consolidada em forma monárquica, ideais esses que inspiraram a redação de nossa primeira Carta Política. Para os potentados econômicos locais, porém, o que importava, antes de tudo, era o acesso aos principais cargos administrativos e políticos, monopolizados pelos homens de ultramar.

A Constituição de 1824 estabeleceu, solenemente, “a Divisão e harmonia dos Poderes Políticos” como “o princípio conservador dos Direitos dos Cidadãos e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece” (art. 9). De acordo com tal princípio, o Poder Judicial passou a ser um dos quatro Poderes Políticos (art. 10). Na vida real, porém, essa proclamada autonomia dos órgãos judiciários em relação aos demais Poderes foi sempre ilusória. O corpo de magistrados permaneceu estreitamente ligado às famílias dos ricos proprietários no plano local, e subordinado ao Poder Executivo central na Corte.


Em 1827, reproduzindo modelo já existente em Portugal, foi criado o cargo de juiz de paz, a ser preenchido por pessoas sem formação específica e não remuneradas, eleitas pelos cidadãos de cada paróquia. O Código de Processo Criminal de 1832, promulgado sob o influxo das ideias liberais, confirmou a inovação e ampliou a competência desses magistrados. Nos processos-crimes, cabia-lhes realizar o corpo de delito, prender e interrogar os suspeitos, bem como denunciá-los perante o juiz de direito. Nos processos cíveis, deviam eles procurar preliminarmente a conciliação entre as partes, tendo competência para julgar as causas de pequeno valor. Além disso, atuavam ainda os juízes de paz em matéria eleitoral, determinando em cada pleito quem teria direito de voto.

Finalmente, competiam ainda a tais magistrados várias funções policiais, tais como executar as posturas das Câmaras de Vereadores sobre ordem e disciplina urbanas, resolver as contendas entre moradores do distrito acerca de caminhos, pastos e danos contra a propriedade alheia, destruir quilombos e comandar a força armada para desfazer ajuntamentos que ameaçassem a ordem estabelecida.

Escusa dizer que tal instituição, malgrado sua aparência democrática, tornou-se na realidade um instrumento decisivo no exercício do poder local pelos senhores de engenho e grandes fazendeiros; os quais, aliás, jamais se furtaram, em muitos casos, a se fazerem eleger, eles próprios, como juízes de paz.

Por outro lado, e em aparente contraste com essa hegemonia dos poderosos do sertão, o corpo de magistrados, com exceção dos juízes de paz, permaneceu – sobretudo a partir da “política de regresso” dos conservadores, instaurada em 1841 com a reforma do Código de Processo Criminal – submetido ao poder político central. Competia doravante ao próprio Imperador nomear diretamente os juízes de órfãos, os juízes municipais (com funções diversas das dos juízes de paz), os juízes de direito (com competência territorial mais ampla) e os promotores públicos.

Em pouco tempo, o processo de submissão do Judiciário ao Executivo ampliou-se. A tal ponto que, em Circular de 7 de fevereiro de 1856 dirigida aos Presidentes das Províncias, o Imperador determinou que, “competindo ao Poder Judiciário a aplicação aos casos ocorrentes das leis penais, civis, comerciais e dos processos respectivos, cesse o abuso que cometem muitas autoridades judiciárias, deixando de decidir os casos ocorrentes, e sujeitando-os como dúvidas à decisão do governo imperial, pela qual esperam, ainda que tardia seja, sobrestando e demorando a administração da Justiça, que cabe em sua autoridade, e privando assim aos Tribunais Superiores de decidirem em grau de recurso e competentemente as dúvidas que ocorrerem na apreciação dos fatos e aplicação das leis”.[15]

Obviamente, no entanto, por ocasião das nomeações de magistrados locais, os chefes políticos da Corte ou das províncias acabavam sempre por se compor com os grandes senhores rurais, quando mais não fosse porque as eleições políticas eram decididas por estes últimos. Ainda aí, por conseguinte, o ordenamento jurídico oficial não existia para valer, servindo unicamente de fachada do edifício público.

Uma duplicidade ainda mais escandalosa ocorreu, durante todo o Império, em matéria de escravidão.
A Constituição de 1824 declarou “desde já abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” (art. 179, XIX).

Em 1830, porém, foi promulgado o Código Criminal, que previu a aplicação da pena de galés. Conforme o disposto em seu art. 44, ela “sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da província, onde tiver sido cometido o delito, à disposição do Governo”. Escusa dizer que essa espécie de penalidade, tida por não cruel pelo legislador de 1830, só se aplicava de fato aos escravos.

E havia mais. Apesar da expressa proibição constitucional, os cativos foram, até as vésperas da Abolição, mais precisamente até a Lei de 16 de outubro de 1886, marcados com ferro em brasa, e regularmente sujeitos à pena de açoite. O mesmo Código Criminal, em seu art. 60, fixava para os escravos o máximo de 50 (cinquenta) açoites por dia. Mas a disposição legal nunca foi respeitada. Era comum o pobre diabo sofrer até duzentas chibatadas num só dia. A lei referida só foi votada na Câmara dos Deputados porque, pouco antes, dois de quatro escravos condenados a 300 açoites por um tribunal do júri de Paraíba do Sul vieram a falecer.

Tudo isso, sem falar dos castigos mutilantes, como todos os dentes quebrados, dedos decepados ou seios furados.

Ora, até a Abolição, os órgãos judiciários jamais se preocuparam em impedir a aplicação desse direito não escrito da escravidão, quando mais não fosse porque vários magistrados eram proprietários de fazendas, com bom número de escravos.[16]

O melhor exemplo dessa cegueira deliberada dos órgãos judiciários a respeito dos abusos do sistema escravista foi a permanência do tráfico negreiro por longos anos, em situação de gritante ilegalidade.
Um alvará de 26 de janeiro de 1818, baixado pelo Rei português ainda no Brasil, em cumprimento a tratado celebrado com a Inglaterra, determinou a proibição do comércio infame sob pena de perdimento dos escravos, os quais “imediatamente ficarão libertos”. Tornado o país independente, firmou-se com a Inglaterra nova convenção, em 1826, pela qual o tráfico que se fizesse depois de três anos da troca de ratificações seria equiparado à pirataria. Durante a Regência, sob pressão dos ingleses, tal proibição foi reiterada com a promulgação da Lei de 7 de novembro de 1831. Pelo teor desse diploma legal, eram declarados livres “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora”. Eles seriam reexportados “para qualquer parte da África”, e os “importadores” sujeitos a processo penal; entendendo-se por “importadores”, não só o comandante, o mestre e o contramestre da embarcação, mas também os armadores da expedição marítima, bem como todos aqueles que “cientemente comprarem como escravos” as pessoas ilegalmente trazidas ou desembarcadas no Brasil.

Como se tratava simplesmente de uma “lei para inglês ver”, segundo a expressão consagrada, nenhuma das penas nela cominadas foi jamais aplicada em juízo. Calcula-se terem sido para aqui contrabandeados como escravos, desde a promulgação daquele diploma legal até 1850 – quando entrou em vigor a Lei Eusébio de Queiroz, que reiterou a proibição do tráfico negreiro – nada menos do que 750 mil africanos.

Mesmo após a promulgação desta última lei, no entanto, a responsabilização criminal dos traficantes de escravos e seus comparsas deixou de ser plenamente efetivada, dado que a competência para julgar tais crimes era do tribunal do júri, cujos integrantes submetiam-se, obviamente, à pressão dos potentados locais. [17] Como assinalou Saint-Hilaire, “o temor das vinganças, muito fáceis no interior, onde a polícia é quase sem força, contribui a tornar os jurados mais indulgentes; eles são a isso levados pelo hábito bem antigo de ceder a todas as solicitações (empenhos)”. E acrescentou que até 1847 a própria legislação em vigor estimulava a “excessiva moleza” dos jurados. [18]

Não era de surpreender, por conseguinte, se por efeito da ausência de controles oficiais efetivos sobre a atuação da magistratura, sua honestidade durante o Império tenha deixado muito a desejar.
Os mentores intelectuais da Constituição de 24 de março de 1824, sem dúvida preocupados com a longa tradição de venalidade do corpo judiciário durante o período colonial, decidiram incluir dois dispositivos tendentes a extirpá-la, senão reduzi-la ao máximo:

Art. 156 – Todos os Juízes de Direito e os Oficiais de Justiça são responsáveis pelos abusos de poder e prevaricações que cometerem no exercício de seus Empregos; esta responsabilidade se fará efetiva por Lei regulamentar.
Art. 157 – Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles ação popular, que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo obedecida na Lei.

Não se sabe se tais determinações constitucionais foram cumpridas. O que se sabe, porém, é que alguns ilustres viajantes estrangeiros – e até o próprio Imperador D. Pedro II – fizeram questão de pôr em foco a generalizada corrupção da magistratura, que grassou durante o período monárquico.

No relato de sua Viagem pelas Províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, efetuada no segundo decênio do século XIX, Auguste de Saint-Hilaire comenta que “em um país no qual uma longa escravidão fez, por assim dizer, da corrupção uma espécie de hábito, os magistrados, libertos de qualquer espécie de vigilância, podem impunemente ceder às tentações”. [19]

Na mesma época, o comerciante John Luccock, que para cá viera após a Abertura dos Portos, comentando o costume da aquisição por vizinhos, em hasta pública, de terras penhoradas pelo não pagamento de impostos, observa:

“Nessa transação, observam-se estritamente as formalidades legais e tem-se a ilusão de que a propriedade foi adjudicada ao maior ofertante da hasta pública; mas na realidade, o favoritismo prevalece sobre a justiça e o direito, pois que não há ninguém bastante atrevido para aumentar o lance de uma pessoa de fortuna e influência.” […] “Na realidade, parece ser de regra que em todo o Brasil a Justiça seja comprada. Esse sentimento se acha por tal forma arraigado nos costumes e na maneira geral de pensar, que ninguém o considera ilegal [a tort]; por outro lado, protestar contra a prática de semelhante máxima pareceria não somente ridículo, como serviria apenas para atirar o queixoso em completa ruína.” [20]

Aliás, como apontou Charles Darwin em seu diário da viagem do Beagle, [21] em data de 3 de julho de 1832, quando fazia estadia no Brasil, a desonestidade da Justiça era apenas uma parte da corrupção generalizada do serviço público:

“Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados. Um homem pode tornar-se marujo ou médico, ou assumir qualquer outra profissão, se puder pagar o suficiente. Foi asseverado com gravidade por brasileiros que a única falha que eles encontraram nas leis inglesas foi a de não poderem perceber que as pessoas ricas e respeitáveis tivessem qualquer vantagem sobre os miseráveis e os pobres.”

Segundo consta, nem mesmo o mais alto tribunal do Império permaneceu isento de corrupção. Em declaração ao Visconde de Sinimbu, D. Pedro II desabafou:

“A primeira necessidade da magistratura é a responsabilidade eficaz; e enquanto alguns magistrados não forem para a cadeia, como, por exemplo, certos prevaricadores muito conhecidos do Supremo Tribunal de Justiça, não se conseguirá esse fim”. [22]

O período republicano

A Constituição de 1891, ao dispor sobre o Poder Judiciário, estabeleceu expressamente, mas tão-só para os juízes federais, a garantia de vitaliciedade, determinando ainda que “os seus vencimentos serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos” (art. 57, caput e § 1º). Tal norma deixava supor que essas garantias constitucionais não seriam necessariamente aplicáveis à magistratura estadual; o que felizmente foi afastado.

Durante os governos militares de Deodoro e Floriano, houve grande pressão política para submeter os julgamentos do novo Supremo Tribunal Federal ao poder de controle final do Senado. Como a Carta Política estabelecera, à imagem da Constituição norte-americana, a competência do Senado Federal para julgar os Ministros do Supremo em caso de impeachment, sustentou-se que, mesmo fora dessa hipótese, caberia àquele órgão político rever as decisões da mais alta Corte de Justiça. Essa opinião absurda recebeu longa e profunda refutação por parte de Rui Barbosa, em seu discurso de posse do lugar de sócio do Instituto dos Advogados, na sessão de 11 de maio de 1911.[23] Ela foi, afinal, abandonada.
Registre-se, porém, a conclusão desalentadora de João Mangabeira sobre atuação do Supremo Tribunal Federal, desde sua instituição até o início do Estado Novo getulista em 1937: [24]

“O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de terror, quando, exatamente, mais necessitada estava ela da lealdade, da fidelidade e da coragem dos seus defensores.”

Registre-se ainda que durante a República Velha, com apoio nas ideias federalistas, a dominação de fato dos potentados locais (os famosos “coronéis”) sobre os magistrados recrudesceu enormemente.

A Constituição de 1934, que vigorou apenas por três anos, acrescentou em benefício dos magistrados, além da vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos, também a garantia da inamovibilidade, sem fazer distinções entre juízes ou tribunais federais e estaduais (art. 64). Dispôs, contudo, que “os juízes, ainda que em disponibilidade, não podem exercer qualquer outra função pública, salvo o magistério e os casos previstos na Constituição”; acrescentando que “a violação deste preceito importa a perda do cargo judiciário e de todas as vantagens correspondentes” (art. 65).

A Constituição de 1946 estabeleceu para os magistrados em geral, além das três garantias acima citadas, a determinação de que “a aposentadoria será compulsória aos setenta anos de idade ou por invalidez comprovada, e facultativa após trinta anos de serviço público, contados na forma da lei” (art. 95).

Instaurado o regime de exceção empresarial-militar com o golpe de Estado de 1964, manteve-se pro forma a vigência do ordenamento constitucional, com a supressão de fato das liberdades e garantias individuais, bem como dos direitos sociais. Em 13 de dezembro de 1968, o chamado Ato Institucional nº 5 emasculou a magistratura, ao decretar a suspensão oficial das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade (art. 6º), além de oficializar a suspensão do habeas corpus “nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular” (art. 10). Isto quanto à Justiça Civil, pois a Justiça Militar, durante toda a duração do regime autoritário, colaborou vergonhosamente na repressão dos opositores políticos.[25]

Extinto o regime autoritário, foi promulgada em 1988 a Constituição Federal em vigor, a qual regulou o Poder Judiciário com muito maior amplitude do que todas as anteriores.

Aliás, já na fase final do regime autoritário, exatamente em 14 de março de 1979, foi editada a Lei Complementar nº 35, instituindo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Entre outras disposições, essa lei criou o Conselho Nacional da Magistratura. Em 1998, porém, em simples despacho de um de seus Ministros, o Supremo Tribunal Federal julgou-o extinto, em razão da superveniência àquela Lei Complementar da Constituição Federal de 1988, a qual nada dispunha a respeito do mencionado Conselho. Ele foi, afinal, ressuscitado, doravante sob a denominação de Conselho Nacional de Justiça, pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004.

A criação desse órgão de controle da magistratura veio, sem dúvida, atender à necessidade – longamente sentida desde o período colonial, como lembrado acima – de se estabelecer um regime de responsabilidade mais amplo e preciso dos magistrados. A reação destes à criação do novo órgão foi, porém, desde logo muito negativa. Antes mesmo de sua publicação oficial, a Emenda nº 45 foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3367), proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros. O Supremo Tribunal Federal, embora afastando por unanimidade o vício formal da inconstitucionalidade, decidiu tão-só por maioria julgar improcedente a ação em sua totalidade.

Assinale-se, por fim, como evento significativo de um começo de mudança na mentalidade conservadora de nossos magistrados, a fundação em 13 de maio de 1991 da Associação Juízes para a Democracia. Ela tem como objetivos estatutários a defesa do regime democrático de direito, fundado na dignidade da pessoa humana, a democratização interna do Poder Judiciário, bem como a valorização das funções jurisdicionais como autêntico serviço público, isto é, serviço ao povo.

NOTAS

[14] História Geral da Civilização Brasileira, II – O Brasil Monárquico, 5 Do Império à República, São Paulo (Difusão Europeia do Livro), 1972, pág. 21.
[15] Apud Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, Rio de Janeiro (Editora Nova Aguilar), 1975, pág. 233.
[16] Vejam-se, a esse respeito as Memórias de um Magistrado do Império, do Conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira (Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana vol. 231, 1943, pp. 246 e ss.), o qual foi desembargador em dois tribunais da relação e tornou-se, no fim da vida, conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça
[17] Eis porque o velho Nabuco, em discurso na Câmara, propôs fosse suprimida a competência do júri para julgar tais crimes. Cf. Joaquim Nabuco, Minha Formação, Editora 34, 2012, pp. 171/172.
[18] Voyage dans les Provinces de Saint-Paul et de Sainte-Catherine, tomo primeiro, Paris (Arthus Bertrand, Libraire-Éditeur), 1851, pág. 138
[19] Obra publicada pela Editora Itatiaia Limitada, em colaboração com a Editora da Universidade de São Paulo, 1975, pág. 157.
[20] Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil, Editora da Universidade de São Paulo – Livraria Itatiaia Editora Ltda., 1975, pág. 321.
[21] O Diário do Beagle, Editora UFPR, 2006, pág. 100.
[22] Apud José Murilo de Carvalho, D. Pedro II – Ser ou Não Ser, Companhia das Letras, 2007, pág. 83.
[23] Rui Barbosa, Escritos e Discursos Seletos, Rio de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1966, pp. 548 e ss.
[24] Rui, O Estadista da República, Coleção Documentos Brasileiros nº 40, Livraria José Olympio Editora, 1943, pág.78.
[25] Veja-se a esse respeito o estudo de Anthony W. Pereira, Political (In)Justice – Authoritarianism and the Rule of Law in Brazil, Chile, and Argentina, University of Pittsburgh Press, 2005; cuja edição brasileira foi publicada sob o título Ditadura e Repressão – O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina, Paz e Terra, 2010. Nesse estudo, enfatiza-se que, enquanto no Chile e na Argentina o Poder Judiciário foi claramente afastado do sistema repressivo, entre nós os órgãos da Justiça Militar não tiveram dificuldade alguma em colaborar com a repressão.

(fonte: http://outraspalavras.net/brasil/o-judiciario-no-brasil-segundo-comparato-2/)

Gastos dos governos com publicidade entram pelo ralo


Texto escrito por José de Souza Castro:
Leio no Observatório da Imprensa artigo afirmando que “a publicidade governamental destina-se a favorecer as maiores corporações de mídia do país, em montantes cada vez maiores, não importa o quanto elas tenham ou não pensamento único; não importa o quanto elas falem mal ou não do Brasil; desprezem ou não as instituições e a democracia; não importa o quanto elas eduquem ou deseduquem e propaguem solidariedade ou intolerância. Não importa, sequer, o quanto elas estejam em decadência nos hábitos de consumo de informação, cultura e entretenimento dos brasileiros. Não é a propaganda que é a alma do negócio. É o negócio que é a alma da propaganda, mesmo a governamental”.
Uma denúncia que interessa ao país, mas que não teve até agora, passados alguns dias de sua publicação, no dia 15 de julho, qualquer repercussão. E o autor não é um joão-ninguém. É Antonio Lassance, doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília, especialista em comunicação e políticas públicas. Mais: pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado. Foi chefe de gabinete da Secretaria de Comunicação e Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2003 e 2005 e assessor do Gabinete Pessoal do Presidente da República, de 2007 a 2010.
É compreensível que o artigo seja ignorado pela imprensa controlada por meia dúzia de famílias dedicada há algum tempo a fazer oposição ao governo, como foi admitido, em 2010, pela presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito, executiva da "Folha de S.Paulo".
Lassance, porém, não deve ser ignorado pelos governantes, tendo em vista o conteúdo de sua denúncia. “Gasta-se muito e gasta-se mal em comunicação de governo, em todos os governos. Nos estaduais e municipais costuma ser pior do que no Governo Federal. Ainda assim, é inadmissível que um governo eleito e reeleito com a pauta da democratização dos meios de comunicação e com um discurso de que faz ‘mídia técnica’ não tenha feito, até hoje, nem uma coisa, nem outra”, escreveu o doutor em Ciência Política do Ipea, órgão ligado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Lassance desmonta a alegação de que o governo Dilma Rousseff  tem um critério justo – a audiência de cada veículo – para a distribuição da verba publicitária.
Segundo Lassance, a mais recente “Pesquisa brasileira de mídia”, feita justamente por quem deveria segui-la à risca, com o objetivo de aferir os hábitos de consumo de mídia da população brasileira para orientar os gastos em publicidade do Governo Federal, “mostra que a tal mídia técnica está mais para bordão propagandístico do que para justificativa criteriosa para o gasto com publicidade”.
A pesquisa de 2015 já está disponível no portal da Secom. Ela mostra que, de cada 100 brasileiros, 95 têm o hábito de assistir tevê; 55 ouvem rádio, 48 navegam pela internet, 21 leem jornais impressos e 13, as revistas impressas.
“Se o Governo Federal realmente empregasse critérios técnicos, utilizaria sua própria pesquisa como parâmetro para remunerar a publicidade em cada mídia. Nada mais razoável, tecnicamente falando, do que gastar proporcional e parcimoniosamente de acordo com o peso exato de cada mídia nesses hábitos de consumo”, pondera Lassance. E acrescenta:
“Considerando que a maioria dos brasileiros tem o hábito de “consumir” mais de uma mídia, os valores proporcionais seriam os seguintes:
ipea
No entanto, os gastos de publicidade da Secom e das estatais não refletem tais hábitos, desmentindo a “fábula da mídia técnica”. Do total gasto no ano passado, a televisão ficou com 72,2%, o rádio com 6,9%, a internet com 9,1%, os jornais impressos com 6,7% e as revistas impressas com 5,1% aproximadamente.
“A televisão, que é a mídia mais cara, mais concentrada e menos plural de todas recebe mais de 70% da publicidade federal, quando não deveria receber mais do que 41%. Mídias mais regionalizadas, mais plurais, mais segmentadas recebem bem menos do que deveriam”, afirma Lassance.
Segundo ele, o gráfico a seguir demonstra visualmente a distância (distorção) entre o que se paga e o que se deveria pagar por mídia se fossem obedecidos os hábitos de consumo dos brasileiros:
ipea2
Ou seja, o que o governo gasta em tevê é muito mais do que deveria e, em rádio e internet, bem menos. Com base nesses dados, jornais e revistas não teriam do que reclamar – não fosse a concentração das verbas em poucos veículos.
O curioso é que embora tenha perdido audiência, a tevê passou a receber mais dinheiro, em termos absolutos e relativos, do que recebia no passado. Detalhe irônico, aponta Lassance: “Calculando-se essa distorção de 30% que premiou todos os veículos de tevê em mais de uma década de governos de esquerda, dos 6,2 bilhões recebidos pela Rede Globo, cerca de 1,8 bi foram para o bolso dos Marinho de mão beijada. Quem sabe, pelos serviços prestados – não se sabe exatamente a quem”.
Prossegue o autor: “Importante dizer que o gasto com outras mídias, mesmo sendo bem menor, não destoa da preferência governamental por veículos que fazem parte do cartel das grandes corporações. Rádio, internet, jornais e revistas têm gastos muito concentrados em velhos conhecidos, como O Globo, Folha, Estadão; revistas como Veja e Época; rádios como CBN, Band News e suas afiliadas.”
O gasto com publicidade em internet vem crescendo, mas ele se concentra em duas multinacionais, o Google e o Facebook. “Com o tempo, os governos irão, no máximo, trocar um cartel por outro”, critica Lassance. E conclui:
“Moral da história: a tal mídia técnica não passa de um eufemismo ou, melhor dizendo, uma fábula, em todos os sentidos: um desperdício de dinheiro público com uma publicidade ineficiente, contraproducente, que premia veículos tidos como grandes, mas que de fato são bem menores do que os olhos generosos da publicidade os enxergam.
Mídia técnica é um tipo de propaganda enganosa feita para encobrir a farra com dinheiro público que patrocina o conluio das agências de publicidade com os veículos de comunicação cartelizados, feita com chapéu alheio – o do governo. Está nas mãos dessas agências programar as campanhas veiculadas na mídia privada, recebendo, em troca, a chamada bonificação de volume (BV). Quanto mais se investe em um veículo, mais BV esse veículo paga para a agência camarada.”
Não se defende aqui que o governo – qualquer que seja ele – passe a controlar politicamente a publicidade para punir os veículos mais oposicionistas e premiar os que lhe são favoráveis. Isso foi feito muito no passado, principalmente nos períodos ditatoriais. O que se quer é que não se gaste tanto com publicidade, sem qualquer benefício para a população (e nem para o governo, como demonstrado), para enriquecer a uns poucos com o dinheiro dos contribuintes.
 (fonte: blog da KikaCastro)

terça-feira, 21 de julho de 2015

Corrupção na Receita. Cadê o Alckmin?

Por Altamiro Borges

O “midiota” – aquele ser manipulado diariamente pela mídia privada, segundo a já clássica definição do jornalista Luciano Martins Costa – deve mesmo achar que a corrupção foi inventada pelo PT e que os políticos do PSDB são os maiores santos do universo. Neste processo de purificação dos tucanos, um dos mais blindados é o governador Geraldo Alckmin. Nada atinge o “picolé de chuchu”, que é quase um ente divino – até por suas ligações com a seita fascistoide Opus Dei. Na semana passada, o Ministério Público desvendou mais um esquema bilionário de desvio de recursos públicos na Receita de São Paulo. O silêncio da mídia chapa-branca, porém, é ensurdecedor!
 
A denúncia não virou destaque no “Jornal Nacional” – e o que não sai no JN não existe, segundo os alquimistas da TV Globo. Ela também não foi parar nas capas das revistas “Veja” e “Época”, que estão mais preocupadas em bater para matar no ex-presidente Lula. A tropa dos jagunços midiáticos, que adora promover a escandalização da politica e ocupa importantes postos nas emissoras de rádio e tevê, preferiu se fingir de morta. Os jornais “Estadão” e “Folha” até registraram o caso, mas evitaram dar manchetes e abusaram na cautela diante das denúncias. Afinal, o governador paulista já prepara as suas malas para a disputa presidencial de 2018 e não pode ser abatido em plena pré-campanha.
 
“O Ministério Público de São Paulo apura o suposto enriquecimento ilícito de três agentes fiscais investigados por envolvimento em um eventual esquema de desvio bilionário de recursos do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços)”, registrou, cheia de dedos (“suposto”, “eventual”), a Folha neste sábado (18). Segundo a reportagem, “a suspeita dos promotores paulistas é de que, por meio da cobrança de propina a executivos de São Paulo em troca da redução do tributo ou da isenção de multa, os servidores estaduais tenham acumulado patrimônio incompatível com suas rendas”. Em nenhum trecho da matéria aparece o nome de Geraldo Alckmin, “o santo”.
 
O caso é investigado pelo Grupo Especial de Repressão a Delitos Econômicos (Gedec) desde o início deste ano. O órgão do Ministério Público pediu a quebra dos sigilos fiscal e tributário de Sidney Simone, Flávio Romani e José Carlos Vecchiato. “Além de enriquecimento ilícito, os servidores da Receita de São Paulo são investigados por corrupção passiva e lavagem de dinheiro... A denúncia, à qual a Folha teve acesso, cita os valores que teriam sido arrecadados de forma irregular e apresenta a relação de fotos de imóveis que teriam sido adquiridos com dinheiro de operações ilícitas. Segundo a representação, os agentes fiscais teriam reunido nos últimos anos um patrimônio milionário”. 
 
Os três agentes fiscais denunciados negam as denúncias e garantem que a evolução patrimonial é “perfeitamente compatível” com suas rendas. O Ministério Público, porém, suspeita que o esquema envolva outras figuras graúdas do governo estadual. Até agora, porém, a mídia privada não escalou seu exército de “jornalistas investigativos” para apurar o escândalo. Se a denúncia envolvesse a Receita Federal, possivelmente a tropa já estaria nas ruas para investigar o caso – que não teria nada de “suposto” ou “eventual”. Mas o governo do PSDB de São Paulo nunca está metido em atos ilícitos – seja no “trensalão tucano”, que a mídia chama carinhosamente de “cartel dos trens”, ou em outros escândalos cabeludos.
 
Curiosamente, no final de junho Geraldo Alckmin promoveu bruscas mudanças na cúpula da Receita. O órgão, subordinado à Secretaria Estadual da Fazenda, já estava sob investigação. Segundo o Estadão, que publicou uma pequena notinha e depois nunca mais tratou do tema, a alteração decorreu da “insatisfação quanto ao funcionamento das estruturas internas de fiscalização”. Questionado sobre a troca no comando da Receita, o governador negou que ela tenha sido motivada pelas denúncias de corrupção. Garantiu que as mudanças foram de “caráter técnico”. A resposta foi suficiente para silenciar a mídia chapa-branca, numa típica operação-abafa.

(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Corrupcao-na-Receita-Cade-o-Alckmin-/4/34031)

O Mensageiro: a hipocrisia mata

Léa Maria Aarão Reis

Prima irmã da traição e da mentira, a hipocrisia política sustenta, cada vez mais com maior frequência, universos paralelos que não são os da física quântica nem da espiritualidade oriental. São os mundos invisíveis da política; os bastidores aos quais poucos têm acesso – Snowden e Assange, os mais conhecidos. A chave que abre para essa realidade do real é desmascarar a hipocrisia. Nos dicionários está lá: “O ato de fingir ter crenças, virtudes, ideias e sentimentos que a pessoa, na verdade, não possui.” Trata-se da representação, da atuação, como a de um ator, de pessoas, homens políticos e governos que fingem determinados comportamentos. Foi assim que a hipocrisia política matou, mesmo indiretamente, Gary Webb. Ele usou a chave.
 
Jornalista investigativo americano, nasceu e viveu na Califórnia. Webb teve vida curta. Morreu antes de completar 50 anos. Trabalhava como repórter num pequeno jornal inexpressivo, o San José Mercury, quando descobriu a conivência e o acordo bilionário do governo americano de Ronald Reagan com traficantes de países da América Central para introduzir no país o crack em escalas descomunais. Eram dois os objetivos: inundar com a droga os bairros pobres, em especial o sul de Los Angeles, e alienar uma geração de jovens dos guetos das grandes cidades americanas para ações políticas, e armar os contra da Nicarágua.
 
Tão impulsivo quanto corajoso, Webb não mediu consequências quando enfrentou a Casa Branca, a CIA e uma formidável pressão profissional, de colegas jornalistas. Numa segunda fase da história, pressão, chantagem e perseguição policial dos serviços secretos foram estendidas à sua família quando ele desvendou e divulgou o esquema, uma parte da tal realidade real. Em 1996 começou a publicar suas descobertas. Enquanto isto, Washington reforçava, martelando regularmente (o que faz até hoje), o empenho oficial na ‘guerra contra as drogas’. 
 
A investigação de Webb foi impressionante na seriedade e amplitude, e reconhecida por colegas honestos e de prestígio. Alexander Cockburn e Jeffrey St.Clair, do famoso site Counterpunch.com, e autores do livro Whiteout: the CIA, Drugs and the Press contam, detalhadamente, como Webb foi vítima de uma campanha da CIA destinada a destruir sua reputação - o que foi alcançado em meio a um alvoroço nacional. Paralelamente, a velha mídia, a convencional, publicava longas reportagens, encomendadas, é claro, atacando várias partes da criteriosa investigação que apresentava inclusive documentos desclassificados.

Kill the Messenger (2014), de Manuel Cuesta, é o título original do filme que conta a trágica história de Gary Webb, personagem real interpretado pelo ator Jeffrey Renner. Cuesta é conhecido como diretor de séries para a TV. O roteiro do filme é de Peter Landesman baseado em dois livros  - Kill the Messenger de Nick Schou e Dark Alliance, do próprio Webb. Jornalista, escritor e pintor, Landesman já escreveu para o New Yorker e para a Atlantic Monthly sobre tráfico de armas no mundo, tráfico sexual e de refugiados e sobre o genocídio de Ruanda. Uma dupla peso pesado.
 
Um longa-metragem que costuma ser exibido em aulas de faculdades de Comunicação, O Mensageiro é um pouco documentário um pouco a narrativa da trajetória individual e particular de Gary Webb. Assim a história ficaria mais palatável para as grandes plateias – e boas receitas. Ficou. É uma concessão típica dos projetos dos grandes estúdios de cinema que toleram o discurso antigovernista desde que a moral da família cristã seja mantida intacta. O que não tira o mérito do filme. Mostra mais um anti-herói da amarga saga da hipocrisia política – neste caso, dos republicanos de Reagan. 
 
"Você vai querer anotar essa", diz, desinibido, o chefão vivido pelo ator Andy Garcia, um dos que são entrevistados por Webb/Renner. Fala-se qualquer coisa com desenvoltura e em nome dos interesses mais obscuros do mundo paralelo e invisível da política e dos negócios - como agora ocorre aqui, nas audiências dos ‘delatores de Curitiba’, alguns já desacreditados. 
 
Vez ou outra o tom de O mensageiro resvala para o thriller e suspense jornalístico. No geral, Cuesta e Landesman escolheram narrar a tragédia do indivíduo (e da sua família) acossado pelo sistema cuja máscara ousou retirar.

Três grandes vergonhas nesta história: o papel da velha mídia promovendo uma campanha encomendada, sórdida, contra um colega, profissional honesto, destruindo a sua reputação. A proteção do governo ao narco-terrorista Luis Posada e seus cúmplices cubano-ianques envolvidos no negócio criminoso. 
 
A história escabrosa do agente Felix Rodríguez Mendigutía – o que ordenou o assassinato de Che Guevara – denunciado pelo Drug Enforcement Agency (DEA) à própria CIA, avisada das trocas de armas por cocaína que Rodriguez promovia com chefões do narcotráfico. Era um agente classificado pela DEA como "pessoa envolvida em assassinatos políticos".
 
Detalhe que não se encontra no filme de Cuesta: Rodríguez foi agraciado, depois, com um cargo no escritório de George Bush pai, que celebrava o seu "talento”.
 
Já Gary Webb nunca mais conseguiu emprego na mídia. Foi encontrado morto, aos 49 anos, com vários tiros no rosto, em 2004, na sua casa. Um laudo fornecido às pressas por um oficial de justiça dizia: suicídio. Já foi provado que o jornalista foi assassinado.
 
Noam Chomsky diz que “a hipocrisia é um dos males da nossa sociedade; (ela) promove a injustiça, guerras e desigualdades sociais, num quadro de autoengano que inclui a noção de que a hipocrisia em si é um comportamento necessário ou benéfico, humano e da sociedade.” Webb foi vítima desse comportamento benéfico.
 
*Recomenda-se assistir a O Mensageiro para refletir sobre a recente fuga milionária do narcotraficante mexicano Joaquín ‘El Chapo’ Guzmán. 

(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/O-Mensageiro-a-hipocrisia-mata/39/34027)

segunda-feira, 20 de julho de 2015

A caminho de uma terra sem água?

Por Elianne Ros | Tradução: Inês Castilho

Em 2030, a população mundial deverá ser de uns 8,5 bilhões de pessoas e, se a humanidade continuar a viver do mesmo modo, o déficit de água doce do planeta chegará a 40%, diz informe das Nações Unidas sobre os recursos hídricos divulgado em março em Nova Deli. Todo o nosso sistema vital e econômico gira em torno de um recurso natural limitado. Maximizá-lo e geri-lo de forma eficaz constitui o grande desafio do século XXI.
Cada vez que abrimos a torneira, acontece um pequeno milagre. Por trás deste gesto tão cotidiano há muito mais que um jorro de H2O (elemento composto de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio) em estado líquido. A água é o sistema sanguíneo deste planeta; um ciclo natural sobre o qual a atividade humana exerce enorme pressão.
“A quantidade de água doce na Terra hoje é praticamente a mesma que na época em que César conduzia o império romano. Mas nos últimos 2000 anos, a população pulou de 200 milhões para cerca de 7,2 bilhões, e a economia mundial cresceu ainda mais rapidamente (desde 1960, o PIB aumentou a média de 3,5% anual). A conjunção da demanda de alimentos, energia, bens de consumo e água para este grande empreendimento humano requereu um grande controle sobre a água”, resume Sandra Postel, diretora da organização norte-americana Global Water Policy Project.
“Há muito pouca água no planeta azul”, constata Elias Fereres, catedrático da Universidade de Córdoba que exerceu numerosos cargos relacionados com a agricultura e a ecologia. Fereres refere-se a que, embora 70% da superfície da Terra esteja coberta de água, somente cerca de 1% é água doce, além daquela presa como gelo nas calotas polares e geleiras. Sobre esse 1% não apenas repousa nossa principal fonte de vida, mas também o motor do mundo desenvolvido. “A água tem tanto valor que não tem preço, e a chave do seu uso está em obter o máximo aproveitamento sem aumentar as desigualdades econômicas, sociais e ambientais”, sustenta o catedrático.
Onde residem essas desigualdades? “O avanço da população global e do crescimento econômico ocorrido nos anos cinquenta deve-se em grande parte à engenharia de água: barragens para reservatórios, canais para movê-la, bombas para extraí-la do subsolo. Desde 1950, o número de barragens passou de 5 mil a 50 mil. Construíram-se uma média de duas por dia durante meio século. Na maior parte do mundo, a água já não circula seguindo fisicamente o processo natural, mas de acordo com a vontade do homem”, sublinha Postel.
No século passado, essas infraestruturas permitiram cobrir as necessidades da agricultura – que consome 70% da água doce –, a indústria – representa 20% – e o uso doméstico – os 10% restantes – em grande parte do globo. Mas o aumento da demanda, devido em grande medida ao desenvolvimento dos países emergentes, está rompendo um equilíbrio que já é muito precário. “Prevê-se que em 2030 o mundo terá de confrontar-se com um déficit de 40% de água em uma situação climática em que tudo continua igual”, alerta o último informe da ONU sobre recursos hídricos.

Seu autor, Richard Connor, lamenta a “escassa importância” que os governos outorgam à água, espalhando a ideia de que se trata de um bem comum inesgotável. “É um serviço essencial para o crescimento, mas as pessoas não têm essa percepção. Ao invés disso, veem a energia como fator econômico de primeira ordem e inclusive geopolítico, para a segurança de um país, razão pela qual recebe muito mais apoio. Relegar a água na ação política é um erro que, no final, se paga caro e compromete o desenvolvimento”, argumenta.
Os acontecimentos deram razão a aqueles cientistas que, como Postel, prenunciaram que “a água será para o século XXI o que o petróleo foi para o XX”. Se o chamado ouro negro é cobiçado – a ponto de provocar conflitos bélicos – isso se deve a que suas reservas são finitas e não estão nas mãos de todos. O mesmo sucede com a água doce, uma vez alcançado um volume de demanda superior a sua capacidade de regeneração, o que se define como estresse hídrico.
Alexandra Taithe, responsável pela Fundação para a Investigação Estratégica e especialista na interação entre água e energia, traça um panorama inquietante. “Nos países do Sul e do Leste do Mediterrâneo”, adverte, “os poderes públicos optaram por soluções consistentes para aumentar a água disponível. Esta política, que recorreu tanto à dessalinização da água do mar como à exploração dos aqüíferos ou transferências massivas, tem um custo energético muito elevado.”
Segundo seus cálculos, em 2025 a demanda de eletricidade para abastecimento de água destes países representará cerca de 20% do total do que precisam os estados. Hoje, supostamente são 10%. A dessalinização, às vezes apresentada como uma panacéia para combater a escassez, é o sistema que mais energia devora. Nem todo o mundo pode permirtir-se. A Arábia Saudita, o pais com maior capacidade de produção, gera 5,5 milhões de metros cúbicos por dia. Pois bem, para obter essa quantidade, consome o equivalente a 350 mil barris de petróleo diário.
Por sua vez, a fabricação de eletricidade e a extração de combustíveis fósseis precisam de grandes quantidades de água. Por exemplo, segundo Taithe, na França 60% do caudal dos rios destina-se ao processo de esfriamento das centrais térmicas e nucleares. É preciso dizer que a França é o segundo país em produção de energia atômica do mundo e que esta água – em princípio não contaminada – é devolvida às bacias e aos lagos… com alguns graus a mais, o que favorece a proliferação de algas e reduz a população de peixes. No ciclo de água, tudo está interrelacionado. Qualquer manipulação da ordem natural tem efeitos colaterais.
A extração de gás das camadas mais profundas por meio da fraturação hidráulica, o fracking, ganha a taça. Graças a essa tecnologia, os Estados Unidos alavancaram sua economia e mudaram o equilíbrio geopolítico, posto que já não dependem do petróleo árabe. Mas, para perfurar cada um dos mais de 500 mil poços em atividade – muitos dos quais em zonas de estresse hídrico –, precisam de 75 a 180 milhões de litros de água, misturada com uns 36 quilos de produtos químicos, alguns dos quais cancerígenos.
Sacrificamos a água – e a saúde – no altar da economia. Em escala mundial, os dados sobre o aumento da demanda são estonteantes: no horizonte de 2050, enquanto a demanda de água doce crescerá 55%, a de eletricidade avançará 70%. E isso, tendo em conta que o acesso não é universal. Umas 800 milhões de pessoas vivem alijadas de fonte de água limpa e 1,3 bilhão carecem de conexão elétrica. Para Taithe, a crescente necessidade de energia para obter água supõe “um obstáculo de primeira ordem para o desenvolvimento de muitos países e um risco para sua segurança energética.”
Até que ponto a água pode levar a uma escalada bélica? Taithe recorda que para os povos esse recurso “é algo irracional” que historicamente tem originado tensões e continua sendo “centro de tensão diplomática”. A seu ver, os Estados têm mais interesse em cooperar – assinaram 250 tratados multinacionais –, mas outros especialistas preveem que “as guerras do futuro serão por água”. Para Connor, esse futuro já chegou. Ele sustenta que a grande seca na região da antiga Mesopotâmia entre 2006 e 2009, que provocou uma subida radical no preço do trigo, e portanto no da farinha e do pão, teve um papel chave na guerra da Síria. Como consequência da seca, 1,5 milhões de pessoas emigraram das zonas rurais para cidades já estavam submetidas a fortes pressões, quando começaram os protestos contra Bashar el Assad.
Connor observa a mesma relação de causa-efeito entre a seca, acompanhada de grandes incêndios, que assolou a Rússia em 2010 e as primaveras árabes. “A Rússia é o grande provedor de trigo dos países árabes, e como pode apenas exportar, o preço da farinha duplicou, o que gerou descontentamento social”, resume. Sem esse mal-estar, teriam as mobilizações pró-democracia recebido tanto apoio? Connor acredita que não.
Na margem sul do Mediterrâneo, os focos de tensão se multiplicam. A construção, na Etiópia, da grande barragem do Renascimento causou um confronto com o Egito, que se opõe à obra porque garante que afetará o fluxo do Nilo e agravará seus problemas de abastecimento.
“Nos poucos lugares onde ainda se podem construir reservatórios, o impacto ecológico é demasiado negativo. É necessário pensar outras soluções”, opina Fereres. Na Índia e no nordeste da China os agricultores encontraram uma solução alternativa na extração de água do subsolo. Uma atividade subvencionada que levou o progresso a muitas regiões, mas não sem conseqüências. A venda de bombas elétricas a diesel para extrair água disparou nos últimos anos (calcula-se que na China existam 20 milhões em funcionamento, e na Índia, 19 milhões), o que eleva o consumo de energia. Em algumas regiões, representa entre 35% e 45% do total.
Taithe relaciona esse fenômeno com “os gigantescos cortes de eletricidade que, em julho de 2012, deixaram sem energia 670 milhões de pessoas no nordeste da India”. Assinala que esse ano as monções foram menos chuvosas e as autoridades cederam à pressão dos irrigantes para ampliar as cotas para áreas mais profundas de água, onde se encontram os bolsões de água fóssil, que são camadas geológicas não renováveis, como aquelas onde está o petróleo”.De acordo com o relatório da ONU, 20% dos aquíferos da Terra estão sendo superexplorados. “Estamos consumindo hoje a água de amanhã”, previne Postel.
Ao aumento da população e à pressão que exercem os países emergentes sobre as reservas de água soma-se o aquecimento global do planeta. “Em períodos de grandes inundações os recursos hídricos parecem não ter fim, mas depois vêm grandes secas, e a escassez volta a ser o grande motivo de preocupação. Essa bipolaridade está se acentuando na região mediterrânea. Essa é a mudança climática!, descreve Maitê Guardiola, engenheira geóloga especializada em aproveitamento da água com ampla experiência em projetos humanitários.
No Brasil – que possui a maior bacia hídrica do mundo, Amazônica – a falta de água tem obrigada a racionar o fornecimento em São Paulo, cidade que ilustra o problema causado pelo crescimento descontrolado das periferias. Segundo o informe da ONU, “o aumento das pessoas sem acesso à água e ao saneamento nas áreas urbanas está diretamente relacionado ao rápido crescimento dos bairros marginais nos países em vias de desenvolvimento. Essa população, que se aproximará de 900 milhões de pessoas em 2020, é mais vulnerável ao impacto dos fenômenos climáticos extremos”.
É preciso agir, mas como? Enquanto cientistas do porte de Stephen Hawking apostam em “colonizar” outros planetas – ele afirma que dentro de cem anos a espécie humana enfrentará a extinção devido ao “envelhecimento de um mundo ameaçado pelo aumento de habitantes e limitação de recursos –“, os menos catastrofistas optam por racionalizar o consumo.
“Há água suficiente para satisfazer as crescentes necessidades do mundo, mas não sem mudar a forma de geri-la”, sustenta o informe da ONU, que, entre outras medidas, reclama um marco legal universal para administrar este recurso de forma mais equitativa e respeitando os fluxos ecológicos.
Para Connor e Fereres, a chave está em poupar por meio de sistemas de irrigação inteligentes e culturas adequadas a cada região. Em sua opinião, para considerar soluções inovadoras, tais como a remoção de água do ar ou a obtenção de sementes que precisem apenas de rega, faltam “entre 20 e 30 anos de pesquisa”. Maitê Guardiola, por sua vez, enfatiza a reutilização de águas residuais tratadas. De acordo com essa especialista, se destinadas à irrigação, isso “significaria uma redução de 30% da água para a agricultura” na Espanha.
O catedrático Fereres defende também uma “mudança de dieta”, com menos proteínas – um quilo de carne de porco representa um consumo de três quilos de grãos – como uma forma “de reduzir a demanda hídrica”. E promove uma atitude militante contra a água engarrafada. “A sociedade gasta muito dinheiro purificando a água para que chegue às casas de forma potável. Quando vou a um restaurante peço um copo da torneira”. Para Guardiola, “é triste que a Espanha seja um dos maiores consumidores. Seu preço é de 500 a mil vezes superior ao da torneira, sem contar o impacto ambiental do plástico e do transporte.
O ator Matt Damon trata de sensibilizar a opinião pública com ações tipo derrubar um balde de água do vaso sanitário, enquanto se dirige à câmera e diz: “Para aqueles que, como minha esposa, acreditam que isso é nojento, lembre-se de que a água nos banheiros do Ocidente é mais limpa do que aquela à qual tem acesso a maioria das pessoas nos países em desenvolvimento. “Por meio de sua Ong Water.org , é uma das poucas celebridades a combater a crise da água e profundas desigualdades que acarreta.
No Sudão, uma menina de 12 anos dedica entre duas e quatro horas diárias para recolher e transportar sobre a cabeça apenas cinco litros de água doce para sua subexistência, uma quarta parte da quantidade (20 litros por pessoa/dia) que tanto a Organização Mundial de Saúde como a Unicef julgam suficientes para cobrir as necessidades básicas. Enquanto no Canadá uma adolescente da mesma idade consome entre 300 e 400 litros diários…
“A água não é cara o suficiente. Purificá-la e canalizá-la tem um custo muito mais alto do que o que pagamos na conta de consumo, por isso as pessoas não lhe dão valor”, censura Connor. Na Espanha, o consumo médio é de 142 litros por pessoa/dia, mas segundo Guardiola, estima-se que, devido ao mau estado das redes de abastecimento, perde-se uma média de 17,5% da água distribuída. Na Alemanha, esse percentual é de 5%.
Se implementadas, não está claro que todas essas medidas compensariam o aumento da demanda. Um futuro sem água, no qual os humanos se vejam obrigados a abandonar a Terra, como o que prediz o filme de animação Wall.E, não está longe do que vislumbra Hawking. “Devemos nos antecipar às ameaças e ter um plano B”, insiste o famoso astrofísico. E por que não mudar o planeta azul pelo planeta vermelho? Segundo um estudo da Universidade do Novo México, Marte poderia ter grandes reservas de água em seu interior.

(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/a-caminho-de-uma-terra-sem-agua/)