segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Minimizadores do caso Samarco tentam reinventar palavra “tóxico”


Defensores da mineradora ignoram definição de toxicidade para amenizar impactos do rompimento da barragem em Mariana; não somente metais pesados têm efeito nocivo

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)


Tomemos a definição do Dicionário Houaiss:
“tóxico \cs\
adjetivo e substantivo masculino 
1 que ou o que produz efeitos nocivos no organismo
‹ substância t. › ‹ a cocaína é um t. ›
2 que ou o que contém veneno”

E agora o leitor decidirá: a lama da Samarco que arrasou povoados em Mariana e já chegou ao mar, matando milhares de peixes, aves, algas… é tóxica ou não é tóxica? (Atente: isso independe de conter ou não metais pesados.)


Pois está em curso uma operação para minimizar a catástrofe. O que passa pela definição de que a lama não seria tóxica. Ora, a lama produziu, em si, efeitos nocivos a organismos diversos. Retirou oxigênio da água, asfixiou 11 toneladas de peixes, matou  tartarugas, caranguejos, caramujos, camarões, galinhas, bois, um rio inteiro (ainda que por alguns meses ou anos). Como não seria tóxica?

O Centro de Vigilância Sanitária, ligado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, define como agente tóxico “qualquer substância capaz de produzir um efeito tóxico (nocivo, danoso) num organismo vivo, ocasionando desde alterações bioquímicas, prejuízo de funções biológicas até sua morte”. E o risco tóxico, o que seria? “É a capacidade inerente de uma substância produzir efeitos nocivos num organismo vivo ou ecossistema”.

A Fiocruz informa, em seu site, que não existem substâncias químicas sem toxicidade:. “Não existem substâncias químicas seguras, que não tenham efeitos lesivos ao organismo”. Nada, portanto, de associar o termo apenas à ingestão de metais pesados – como vêm fazendo a empresa e seus defensores. Lembremos que um cigarro possui 4.700 substâncias tóxicas.

A BATALHA DOS EXAMES

A página do Serviço Geológico do Brasil, uma companhia do governo federal, informa: “Novos resultados descartam aumento de metais pesados no Rio Doce”. Ou seja, por esses exames (feitos em apenas 40 coletas), a lama não seria tóxica especificamente em relação a metais pesados: cobre, chumbo e mercúrio, entre outros.

Mas mesmo nesse caso há controvérsias: e o ferro e o manganês? Um laudo encomendado pela própria Vale informa que os níveis das duas substâncias estão acima do recomendado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Ainda que, na descrição feita pela empresa, e logo replicada acriticamente pela imprensa, sem risco para seres humanos.

Ou seja, há ênfase apenas no impacto direto em organismos humanos. Como se as substâncias não fossem tóxicas para outros seres vivos. Sem redução de danos, reduzam-se as palavras.
Diante da minimização, muitos fazem uma pergunta singela: por que, então, a necessidade de barragens? Por um motivo simples: a polpa (a lama de areia e silte combinada com os rejeitos) da mineração tem o efeito tóxico que se viu nas últimas semanas. Mesmo sem metais pesados.

E porque não se trata somente da saúde de humanos, por ingestão ou contato direto; e sim da saúde de ecossistemas inteiros. Afetam a fauna, a flora. E também os humanos. As barragens surgiram, no século 20, porque o material despejado afetava os poços de irrigação e o solo; e os produtores constatavam a diminuição da colheita.

Até aqui nem estamos questionando os testes feitos pela própria empresa. Ou considerando a necessidade de testes que não sejam encomendados pelas partes interessadas. Uma coleta feita em Governador Valadares logo após a catástrofe identificou níveis altíssimos de ferro e manganês. E este pode gerar problemas ósseos, intestinais, ampliar problemas cardíacos.

O Instituto Mineiro de Gestão das Águas fez outros testes e detectou a presença de chumbo, arsênio e cádmio nas águas do Rio Doce, nos dias subsequentes ao rompimento da barragem. Uma das consequências possíveis, câncer. Quem vai dizer que não existem esses riscos (ou que as substâncias não tenham saído da barragem), a própria Samarco? Ou pesquisadores independentes?

UMA HISTÓRIA ALTERNATIVA

A Vale (dona da Samarco, junto com a BHP Billinton, e que também despejou resíduos na barragem rompida) já está até falando que a lama vai ter efeito de adubo no reflorestamento. Ou seja, não somente se minimiza o impacto brutal no ecossistema, como se tem a desfaçatez de apresentar um possível benefício “no reflorestamento”. Mais ou menos como os defensores do agronegócio, que chamam os agrotóxicos de “defensivos”.

Está desde o dia 5 de novembro em curso uma batalha por discursos. As evidências das primeiras semanas começam a ser esquecidas: as fotos dos povoados destruídos, a narrativa – ainda incompleta – sobre as 23 pessoas que morreram, a evidente destruição ambiental. A morte de um rio, a dor dos pescadores (como os das fotos deste artigo, feitas pelo Instituto Últimos Refúgios), agricultores e povos indígenas que se viram sem água. A ameaça aos ecossistemas marinhos.

E agora começa a investida na reconstrução conveniente dos fatos. Movida a insensibilidade e escárnio em relação às vítimas, todas elas – humanos ou não. Aposta-se na falta de memória e na falta de bom senso para se dizer que o Rio Doce estará restabelecido em cinco meses, como se fosse pouco, e que a lama até vai virar um adubozinho. E nem tinha tanto veneno assim, não é mesmo? Nem se matou diretamente pessoas por ingestão de chumbo.

LEIA MAIS:
Está aberta a temporada de minimização do crime ambiental de Mariana

(fonte: http://outraspalavras.net/alceucastilho/2015/11/30/minimizadores-do-caso-samarco-tentam-reinventar-palavra-toxico/)

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Senado prepara novas tragédias de Mariana


No site do Instituo Socioambiental

Uma comissão do Senado pode votar, na tarde desta quarta (25/11), um projeto que fragiliza o principal instrumento para evitar desastres ambientais: o licenciamento ambiental. A Câmara também pode apreciar, nas próximas semanas, o novo Código de Mineração, que promete estimular como nunca a atividade no País, mas não traz salvaguardas que protejam efetivamente o meio ambiente e populações afetadas.

As duas votações podem acontecer poucos dias depois do rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração da empresa Samarco, que destruiu o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), afetou dezenas de outros municípios entre Minas Gerais e Espírito Santo, lançou uma onda de lama ao longo do Rio Doce, praticamente destruindo seus ecossistemas, e agora deverá causar impactos ambientais graves na costa capixaba, naquela que já é considerada a maior tragédia ambiental do País. Denúncias dão conta de que o licenciamento ambiental da barragem deveria ter sido mais rigoroso. A Samarco pertence à Vale e à mineradora anglo-australiana BHP Billiton.

Por enquanto, já foram registradas 12 mortes e 11 pessoas continuam desaparecidas. A onda de lama interrompeu o fornecimento de água de pelos menos 500 mil pessoas entre os dois estados. Ainda não se sabe toda a extensão dos danos, mas os custos de reparação devem passar do patamar de bilhões de reais. Não há previsão para a recuperação dos ecossistemas ao longo do rio.

A proposta que pode ser votada nesta quarta é o Projeto de Lei do Senado (PLS) 654/2015, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR). Ele cria um “rito sumário” para o licenciamento ambiental de empreendimentos que sejam considerados “estratégicos” pelo Poder Executivo federal ou estadual, por meio de decreto. A proposta estabelece uma licença ambiental única a ser concedida em torno de oito meses, sem previsão de audiências públicas. Poderiam ser classificados como “estratégicos” empreendimentos como extração de minério, estradas, ferrovias, aeroportos, hidrelétricas, portos e linhas de comunicação (veja projeto e emendas).

A tendência é que, se aprovado o projeto, teriam um licenciamento acelerado obras complexas com grandes impactos, justamente aquelas que especialistas e organizações da sociedade civil consideram que necessitam de processos de licenciamento mais cautelosos e eficazes.

“É um completo contrassenso que o Senado possa aprovar um projeto que pretende reduzir drasticamente a prevenção de danos socioambientais como os ocorridos após o rompimento da barragem da Samarco”, critica Maurício Guetta, advogado do ISA. “O caso de Mariana, a exemplo de outros tantos, deveria servir de lição para que o Congresso e o Poder Executivo aprimore o licenciamento ambiental, evitando a ocorrência de danos irreparáveis. Flexibilizá-lo será prejudicial a todos: meio ambiente, populações afetadas, governos e o próprio empresariado.”

O relator da matéria é o senador Blairo Maggi (PR-MT). O projeto está na Comissão Especial de Desenvolvimento Nacional em caráter terminativo, ou seja, se aprovado segue diretamente para a Câmara sem passar pelo plenário do Senado. Os parlamentares podem, porém, aprovar um recurso para levar a proposta ao plenário. Essa comissão recebeu as propostas da chamada “Agenda Brasil”, iniciativa do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que supostamente visaria a enfrentar a crise econômica.

As assessorias do líder do governo no Senado, Delcídio Amaral (PT-S), e de Maggi responderam que os parlamentares não poderiam conceder entrevistas até o fechamento desta reportagem.

Código de Mineração

O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), manifestou, há alguns dias, a intenção de levar o Projeto de Lei 37/2011, o novo Código de Mineração, diretamente ao plenário, atalhando sua tramitação (saiba mais). O parecer sobre a proposta ainda não foi oficialmente apresentado e discutido pelos deputados na Comissão Especial que o analisava.

Sob a justificativa de simplificar e liberalizar a burocracia relacionada à mineração, o relator, deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), apresentou um parecer preliminar que aprofunda retrocessos para o meio ambiente e os direitos de comunidades indígenas e tradicionais impactadas pela atividade. Segundo Quintão, esse relatório teria sido elaborado junto com técnicos do Ministério de Minas e Energia e teria apoio do Planalto (leia mais). A assessoria do líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), informou que ele só vai se pronunciar sobre o projeto quando for apresentado um relatório final.

Quintão vem argumentando que sua proposta não reforça salvaguardas ambientais, sociais e trabalhistas porque já há legislações específicas que as garantiriam. Ele também afirma que o parecer assegura recursos para as comunidades afetadas por meio de verbas que serão destinadas aos municípios que abrigam empreendimentos de mineração. Sem explicitar e detalhar formas de compensação e proteção socioambientais, no entanto, o relatório não garante os direitos de populações específicas diretamente atingidas.

Depois do desastre de Mariana, ao invés de adiar a votação de seu parecer para reavaliá-lo, Quintão vem empenhando esforços para acelerar a tramitação da matéria. O deputado limitou-se a prometer algumas mudanças em seu relatório. O site do parlamentar afirma que ele irá incluir na proposta um “seguro antidanos” obrigatório para “cobrir prejuízos ao meio ambiente, às pessoas, à infraestrutura urbana e à economia local em caso de catástrofes”. Também promete estabelecer a exigência de que as mineradoras apresentem planos para o tratamento de resíduos de barragem que permitam sua reutilização (leia aqui).

Para Maurício Guetta, essas medidas são insuficientes e deixam de contemplar ações preventivas para evitar tragédias como a de Mariana. “Faz mais de dois anos que cobramos do relator alterações substanciais no texto, para que sejam incluídas medidas de prevenção de danos decorrentes das atividades minerárias e para que sejam garantidos os direitos das populações afetadas e dos trabalhadores. Mesmo após o desastre de Mariana, ele continua a ignorar as demandas apresentadas”, denuncia Guetta.

(fonte: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=236744)

Antropoceno e o custo ecológico




por Antônio de Paiva Moura

A formação lenta da terra se dividiu em extensas eras geológicas. A pré-cambriana durou cerca de 3,5 bilhões de anos, tendo sido a mais aquecida de todas. Depois vieram as eras paleozóica e mesozóica, de 320 a 170 milhões de anos. A era em que vivemos é a cenozóica, tendo começado a 70 milhões de anos. Nesta era corre a fase quaternária, na qual surgiu a espécie humana. A partir da era mesozóica a terra passou por longos períodos glaciais, nos quais ficou coberta de gelo por milhares de anos. A última glaciação teve uma duração de cerca de 100 anos, tendo terminado há 12 mil anos. O termo antropoceno foi usado pela primeira vez pelo cientista prêmio Nobel de Química Paul Crutzem, para enfatizar o efeito da ação humana sobre a natureza. 

            Com a obtenção artificial do fogo os humanos conseguiram sobreviver durante a última glaciação. Passado o referido resfriamento, fazendo amplo uso do fogo, o homem evoluiu para a civilização e o completo domínio sobre a natureza. Começa ai a degradação ambiental que hoje interfere e provoca as lesões e alterações na configuração geológica da terra. A ação humana sobre a natureza agilizou um processo de aquecimento global. O que naturalmente poderia levar um milhão de anos para se realizar, a ação humana encurtou para dez mil anos. O conjunto de todos os fatores ao longo do tempo é que foi determinante para se chegar à situação grave e aflitiva da atualidade. 

            A agricultura deu início à derrubada e queima das matas, mas paralelamente correu a utilização da madeira para construção, fabricação de móveis, embarcações e lenha. O consumo de madeira foi tão grande, que já Idade Média, houve leis regulamentando a derrubada de florestas.  A descoberta da América e sua exploração evidenciou a voracidade do mercantilismo sobre espaços para agricultura, pecuária e jazidas minerais. Basta lembrar que o nome Brasil originou-se da exportação do pau-brasil para produção de pigmentos para a indústria têxtil. A exploração econômica da América proporcionou o acumulação de riquezas na Europa e o desenvolvimento do capitalismo.  No século XVIII as atividades humanas passaram a provocar um grande impacto global no clima e no ecossistema. A invenção do motor a vapor por James Watt, em 1784, é altamente significativa. Tudo passa a ser movido a vapor: máquinas, navios, locomotivas férreas e usinas termoelétricas. O impacto do motor a vapor não é só pelo fato de lançar na atmosfera alta taxa de dióxido de carbono (CO2), mas pelo fato do vapor ser produzido em caldeira movida a lenha. A substituição do vapor pelos combustíveis fósseis e hidrelétricos foi lenta. Até hoje as usinas siderúrgicas do Brasil são movidas a carvão vegetal. O uso de combustíveis fósseis poderia ter diminuído a devastação das florestas, mas em seu lugar vigora o agronegócio. 

            Na análise do historiador Bonneuil (2015) a conquista da hegemonia econômica pelos Estados nações do centro permitiu a supremacia de sua elite capitalista, além da compra da paz social interna, graças à entrada das classes dominadas na sociedade de consumo. Mas isso se realizou à custa do endividamento ecológico, ou seja, de uma troca ecológica desigual com outras regiões do mundo. Os países periféricos, dominados pelo sistema econômico global exportam matéria prima obtidas com depreciação da natureza e recebem bens industrializados, geralmente geradores de danos ambientais. 

            Todo produto destinado à exportação tem um alto custo ecológico. Um exemplo, entre tantos, é o do consumo de um boi, do nascer ao ponto de abate: milhões de litros de água; milhares de toneladas de gramíneas. Imagine o espaço territorial ocupado para produzir alimentos para o rebanho. É importante lembrar que a mudança no clima do Nordeste do Brasil, em parte, se deve ao desmatamento para produção de açúcar para exportação. A criação de gado bovino para corte também começou nessa região. A produção cafeeira foi a grande responsável pela devastação da mata atlântica no Sudeste do Brasil. Na segunda metade do século XX, a Companhia Tijucana, de capital sul-africano, instalou uma enorme draga no meio da calha do Rio Jequitinhonha, em Diamantina, A gigantesca máquina retirava montanhas de areia e cascalho do leito do rio, para extrair diamantes. Essa atividade provocou uma enorme turbulência no rio em toda a sua extensão, matando todos os seus peixes e as matas ciliares. Ninguém sabia como saiam e nem para onde iam os diamantes ali extraídos. A mineração autorizada e também a clandestina, nos afluentes do Jequitinhonha, provocou a diminuição de seu volume de água.  Isso é que se chama custo ecológico. 

            O contundente episódio de rompimento da barragem de contenção de rejeitos de minério das empresas multinacionais Samarco e Vale do Rio Doce, em Mariana, em novembro de 2015, vai provocar a explicitação do fabuloso lucro das mineradoras no Brasil e do enorme prejuízo social e ambiental que deixam.

Referência:
BIONNEUIL, Christophe. Todos somos responsáveis. Le Monde diplomatique Brasil. N. 100, novembro de 2015.               

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Por que 200 soterrados por uma mina em Mianmar não geram catarse?


Ocidente minimiza catástrofe no Sudeste Asiático motivada por ganância de mineradoras; qualquer semelhança com Minas Gerais não será mera coincidência
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

Tome-se a editoria de Internacional do Estadão nesta segunda-feira. Ela que já foi a mais completa do jornalismo brasileiro. Procure-se a última notícia. Lá está: “Deslizamento de mina deixa pelo menos 100 mortos em Mianmar”. Mas há outros 100 trabalhadores desaparecidos. Ou seja, soterrados. Observem a matemática do crime: são duzentos assassinados por falta sistemática de segurança nas minerações de jade – a pedra preciosa. Certamente pendurada em alguns pescoços elegantes pelo planeta.

Mas não haverá luto mundial. Se não há impacto na notícia, não há comoção. Mark Zuckerberg não sugerirá a bandeira de Mianmar (ainda chamado de Birmânia em Portugal e outros países) em nossos perfis no Facebook. E por que essas outras vítimas da mineração não são notícia, ao menos não aquelas notícias que promovem catarse? Porque são trabalhadores pobres do Sudeste Asiático, num país que perdeu 100 mil pessoas – 100 mil pessoas – em 2008, após a passagem de um ciclone. E nem por isso entra pela porta da frente no noticiário sobre catástrofes.



(A vida imita os memes. No MapaMundi Trágico, Mianmar compõe os países que motivam a seguinte pergunta: “Um momento, esse país existe?” Existe e tem 53 milhões de pessoas.)

A própria edição de ontem do Estadão é bem ilustrativa dos critérios utilizados pelos editores. A manchete do jornal é a eleição na Argentina. E qual o segundo destaque internacional? A Bélgica. A Bélgica que “mantém alerta máximo para atentados”. Na página interna lemos que o país europeu mantém esse alerta “e busca suspeito”. O tema abre um caderno. Mais abaixo, França, Obama, Cameron. Na página seguinte, França, Rússia. Irã e Estado Islâmico aparecem em situações de confronto com o Ocidente.

E, lá no fim, onde a gente acha que cabe, o deslizamento de mina em Mianmar. Com os 200 mortos duplamente soterrados, pela terra e pelas notícias que nossos editores consideram mais importantes. Lemos ali que as grandes mineradoras no país pertencem a ex-generais e a barões do tráfico, e que eles faturam centenas de milhões de dólares. A página acaba e partimos para a página seguinte, ler sobre a catástrofe de Mariana (MG), o impacto ambiental no campo e nos mares num caderno chamado Metrópole.

NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMAS PESSOAS

Pode soar cansativo repetir. Mas essas centenas de milhões de dólares estão perfeitamente integradas no sistema financeiro mundial. O capitalismo não se move à margem dessas pedras preciosas e dessa riqueza. E sim a partir delas, sem distinção. Assim como não se move à parte da riqueza – esta movida, em tese, conforme as leis vigentes no Brasil – gerada em Minas Gerais ou no Pará, por empresas como a Vale e a BHP Billinton. Nossos 20 mortos e os 200 mortos de Mianmar estão soterrados pela mesma lógica, as mesmas veias abertas.

O luto mundial é francês. A próxima preocupação do Ocidente, a Bélgica. “Militares patrulham ruas de Bruxelas após alerta”, informa a legenda do Estadão. Ao lado do soldado, incrivelmente encouraçado, um tanque. Atrás, vemos dois belgas esguios, como que parentes distantes de Tintin, o repórter da série de quadrinhos criada por Hergé (importantíssima na história das HQs), aquele que saía pelo mundo combatendo inimigos exóticos. Vários destes vilões eram larápios em busca de tesouros. (Tesouros!)
Era uma visão colonizadora. Mas Tintin era um repórter com espírito investigativo, misturado a um ímpeto policial (como o Mickey em sua fase de detetive), ainda assim um espírito investigativo. Esperem: repórteres internacionais investigativos? Como não temos mais nem correspondentes internacionais no jornalismo brasileiro, nada poderia ser mais distante. Ficamos sem saber com profundidade o que acontece pelo mundo. Quando sabemos, perde-se a intensidade, o drama, a cor. Ou a perspectiva crítica.

E fica assim: 200 mortos em Mianmar motivam somente um pé de página. E corta. Pula para a outra notícia.
Caso morram 10.000 birmaneses talvez eles ganhem metade do espaço dado para os mortos na França. Sem continuação no dia seguinte.

Em tempo: esta é a bandeira de Mianmar. Durante alguns segundos, você terá visto a bandeira de Mianmar.

mianmar

PS: Na edição desta terça-feira (24), no Estadão, nenhuma linha sobre o país.

(fonte: http://outraspalavras.net/alceucastilho/2015/11/24/por-que-200-soterrados-por-uma-mina-em-mianmar-nao-geram-catarse/)

Governador Valadares sob emergência hídrica



Reportagem na periferia de cidade atingida por lama da Vale. Torneiras incertas. Água turva e malcheirosa. Alergias e coceiras, em que se atreve a um banho. Dura disputa pelas garrafas PET
Por Débora Lopes |

“Que Deus ajude nossa cidade a voltar a ser o que era antes”, clama um voluntário que, na última sexta-feira (19), distribuía água mineral no Morro do Querosene, ponto conhecido pelo alto número de homicídios e tráfico de drogas na cidade de Governador Valadares, Minas Gerais.

A morte apocalíptica do Rio Doce – provocada pelo rompimento das barragens em Mariana – unia voluntários e moradores da comunidade, que, de mãos dadas e debaixo de chuva, viviam o luto da principal fonte de abastecimento de água da região. Nesse momento, a apelação final era Deus, já que a Vale, empresa responsável pela atrocidade ambiental cometida em Mariana, pouco tem feito para reparar o estrago que causou no meio-ambiente e na vida de milhares de pessoas.

A ação que acompanhamos era encabeçada pelos grupos Trupe do Bem e S.O.S. Rio Doce, que, nos últimos dias, têm, incansavelmente, distribuído doações de garrafas, galões e fardos de água pela cidade. O trajeto da noite percorreu também a Comunidade do Carapina e o bairro de Monte Carmelo – locais de difícil acesso por conta da hostilidade do tráfico, disseram os voluntários. E a chuva, tão incomum nos céus do município nos últimos meses, não deu trégua.

DESTA ÁGUA NÃO BEBEREI

Recentemente, os valadarenses passaram quase uma semana sem ver uma gota de água sequer caindo de suas torneiras. Mas a reviravolta haveria de chegar. E chegou quando, munida de um copo plástico, a prefeita Elisa Maria Costa (PT) apareceu em um programa de TV ao vivo saboreando a água recém-tratada que voltou a circular pelo município na última segunda-feira (16) desde que o Rio Doce se foi. “A água já está em condições de ser bebida e não existem metais tóxicos”, afirmou em sua página oficial no Facebook. “Não precisam ter receios.”

Partindo do princípio químico e linguístico que afirma que a água não possui cor, cheiro ou sabor, parte dos moradores de Governador Valadares discorda do que foi confirmado pela Saae (Serviço Autônomo de Água e Esgoto) e reiterado pela prefeita. De acordo com relatos ouvidos pela VICE, a água encanada possui cheiro forte, apresenta coloração amarelada e provoca coceiras e alergias. “Não estamos bebendo. Não temos coragem”, afirma Kênia Rodrigues, moradora da comunidade do Carapina que se recusa a degustar tal líquido.

É através de doações de água mineral que chegam de diversas partes do país, assim como da Prefeitura de Governador Valadares e da Vale, empresa responsável pelas barragens rompidas em Mariana, que os habitantes das regiões mais pobres da cidade têm conseguido se manter.

Comprar garrafas ou galões de água ficou ainda mais difícil quando comerciantes triplicaram o valor dos produtos. Um galão que, normalmente, custaria R$ 10 passou a ser vendido por R$ 30. A Polícia Militar mineira afirmou à VICE que, após receber denúncias, chegou a prender comerciantes por infringir a Lei 1.521 – contra a economia popular.

Não fossem as doações, a periferia – desprovida de poços artesianos, mais comuns entre a classe média-alta e campestre – não teria outra escolha senão enfrentar o que lhes é ofertado através da torneira: uma água insólita. O futuro dos moradores é incerto: não se sabe quando a situação da água será resolvida, quiçá por quanto tempo as doações serão disponibilizadas.

Para entender melhor a situação da periferia de Governador Valadares, a VICE conversou com algumas pessoas que enfrentaram a água caindo do céu para garantir um fardo de água mineral dentro de casa.

(fonte: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=235835)

Derrubada de avião russo: o mundo próximo à guerra


Noam Chomsky explica: Turquia, que é aliada dos EUA e disparou míssil, tornou-se ameaça à democracia e à paz internacional. Washington já é incapaz de gerir seu império
Por Antonio Martins

O fantasma de uma guerra global voltou a se manifestar esta manhã, quando dois aviões de caça turcos dispararam contra um bombardeiro russo, que atacava instalações militares do Califado Islâmico na Síria. O avião, que voava próximo à fronteira sírio-turca (há controvérsias sobre a localização exata) foi derrubado e destruído. Os dois pilotos ejetaram-se da cabine, mas foram capturados e mortos por terroristas. A Turquia integra a OTAN, aliança militar dirigida pelos EUA. É a primeira vez, desde os anos 1950, que ocorre uma escaramuça de tal natureza entre duas potências nucleares. Ainda não se sabe como reagirá Moscou (Vladimir Putin considerou-se “apunhalado pelas costas”), mas num mundo à beira de um ataque de nervos as consequências podem ser dramáticas. Por que a Turquia agiu deste modo? Quais podem ser os desdobramentos?
Dois textos de Noam Chomsky, intelectual norte-americano dissidente, ajudam a explicar os motivos – e, ao fazê-lo, tornam o fato ainda mais dramático. O primeiro, ainda sem tradução em português, foi publicado ontem, na revista digital Alternet. A Turquia está se convertendo rapidamente num foco de grandes tensões, bem no centro de uma região tradicionalmente explosiva, explica o filósofo e linguista. Pressionado por oposição de esquerda e por uma situação geopolítica desconfortável, seu governo tenta manter-se com base em repressão interna e na busca de um inimigo externo. Seus serviços de segurança são acusados de cumplicidade no atentado a bomba que matou 99 manifestantes pela paz, em meados de outubro (a autoria direta foi reivindicada pelo ISIS). Mais recentemente, o presidente Recep Tayyip Erdogan voltou-se contra a liberdade de expressão.

Para reconquistar maioria parlamentar nas eleições de 1º de Novembro, Erdogan silenciou a imprensa opositora. Os prédios do grupo de comunicação Ikea – sedes de dois jornais (Bugun e Millet) e duas redes de TV – foram invadidos pela polícia. O Estado assumiu o controle do grupo, demitiu 71 jornalistas e impôs nova linha editorial. No dia das eleições, ambos estamparam, em manchete, fotos do chefe de Estado, acompanhadas dos títulos “O presidente entre o povo” e “Turquia unida”. Após o pleito, dois jornalistas foram encarcerados e 30 processados, a pretexto de “insultar o presidente” e “fazer propaganda terrorista”. Na recente reunião do G-20, realizada na cidade turca de Antalya, dezenas de jornalistas locais foram barrados. Tudo isso, num país que os governos ocidentais rotulam como aliado democrático.
O descontrole de Erdogan deve-se, em parte, à situação delicada em que ele próprio colocou a Turquia, no cenário de um Oriente Médio em que o poder norte-americano declina. Aliado de Washington, o país foi pivô, desde 2011, do esforço norte-americano para usar a mão-de-gato do ISIS contra Bashar Assad, o presidente da Síria. Pela fronteira turco-síria, propositalmente escancarada, passaram milhares de fundamentalistas e enorme quantidade de material militar que alimentaram o terrorismo, relata Patrick Cockburn em A origem do Estado islâmicoum livro indispensável sobre o tema.

capaisisPorém os EUA, perdidos num emaranhado de alianças contraditórias na região, precisaram atender também a outros interesses – o que deixou a Turquia em sinuca geopolítica. Há dois meses, quando Moscou aliou-se ao governo sírio e lançou sua aviação contra o ISIS, Washington viu seu poder ameaçado. Reagiu dando apoio militar às guerrilhas curdas. Quando o fez, contrariou Erdogan, que promove uma guerra implacável contra o possível surgimento de um Estado curdo. A situação do presidente turco tornou-se ainda mais delicada após os atentados de Paris. Erdogan teme que os Estados Unidos fortaleçam os curdos, ao ampliar o apoio militar que dão a eles.
O ataque ao avião russo é certamente uma provocação com objetivo de sacudir o tabuleiro. Erdogan tem instrumentos para tentar reconquistar os EUA. O New York Times especulou há pouco que, a pedido da Turquia, a OTAN realizará, ainda hoje, uma reunião de emergência. Washington estará dividida. Manterá o apoio militar aos curdos, correspondendo à pressão da opinião pública internacional para derrotar o ISIS? Ou cederá à Turquia, um aliado que não deseja abandonar, para que as ambições geopolíticas norte-americanas não se degradem ainda mais no Oriente Médio?
O segundo texto de Chomsky – uma entrevista concedida em março último à revista Jacobine e já traduzida por Outras Palavras – enxerga o problema de uma perspectiva de mais longo prazo. O filósofo dissidente vê os EUA como um império decadente, que já não é capaz de construir hegemonia, porque tornou-se incapaz de satisfazer aliados ou neutralizar inimigos e agora age apenas segundo seus próprios interesses.
Foi esta condição declinante, explica Chomsky, que levou Washington a criar, no Oriente Médio, a situação ideal para formação do ISIS. Os EUA devastaram Iraque, Afeganistão e Líbia, em três guerras insanas. Estes países são exatamente, os santuários onde os fundamentalistas formam e treinam os terroristas que promoverão atentados como os que abalaram Paris.
Embora sempre esperançoso, Chomsky reconhece, na entrevista, que há razões para uma atitude mais cautelosa e alerta. Do contrário, frisa ele, “o mundo que estamos criando para nossos netos será cada vez mais ameaçador”.
 (fonte: http://outraspalavras.net/blog/2015/11/24/derrubada-de-aviao-russo-o-mundo-proximo-a-guerra/)

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

ISIS: a conexão Washington


Para crescerem no Oriente Médio e ameaçarem capitais do Ocidente, jihadistas contaram com um apoio essencial: o dos Estados Unidos e seus aliados no mundo árab
Por Talmiz Ahmad | Tradução: Inês Castilho

Na noite de sexta-feira, 13/11, três bandos, com oito pessoas no total, atacaram sete alvos em Paris. Mataram cerca de 130 pessoas e feriram centenas mais. A maioria dos mortos assistia a um concerto musical, uma noite de convívio alegre interrompida por um fim abrupto e terrível. O Estado Islâmico do Iraque e Grande Síria (ISIS) assumiu rapidamente a responsabilidade. O presidente François Hollande descreveu o ataque como um “ato de guerra” e declarou estado de emergência, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial. A sombra do conflito fratricida que já dura cinco anos na Síria atingiu agora o coração da cultura ocidental.

Desde que o ISIS atraiu a atenção mundial, após a dramática tomada de Mosul em junho do ano passado, seguida pela ocupação de outros territórios ao longo da fronteira entre Iraque e Síria e pela declaração do “Califado” naquelas terras da histórica Mesopotâmia, os conflitos na região tiveram desdobramentos novos, e cada vez mais brutais, praticamente todos os dias. Centenas de soldados sírios, yazidi, curdos e outros civis iraquianos – além de alguns reféns ocidentais – foram sumariamente executados por decapitações, com frequência filmadas e divulgados amplamente nas mídias sociais em todo o mundo.

Embora atacado pelas forças dos Estados Unidos e pelas monarquias do Golfo Pérsico aliadas a Washingon, o ISIS não sofreu nenhum grande revés militar. Ao contrário: consolidou-se gradualmente, a ponto de converter-se em um proto-Estado, com muitos dos atributos da ordem estatal – exército permanente, recursos financeiros substanciais, um conselho de ministros, governadores provinciais, um sistema judicial em funcionamento, uma força de segurança inflexível e prestação de serviços municipais e de bem-estar. 

Aparentemente, não tem dificuldades para atrair recrutas que correm para se juntar a suas fileiras e levar a cabo atentados e missões suicidas. O respeitado especialista em assuntos árabes Abdel Bari Atwan estimou recentemente que o ISIS tinha um quadro de cerca de 100 mil combatentes. Estão principalmente do mundo árabe, mas também de outros países da Ásia e até mesmo – alguns milhares – na Europa.

Nos últimos meses, o ISIS fez sentir sua presença fora da Mesopotâmia – na Líbia, a oeste, e no Afeganistão, a leste. Também expandiu sua base de apoio, com um número crescente de corpos jihadistas (ou seus grupos dissidentes) que declaram filiação ao Califado, preferindo-o à Al Qaeda.

Nos últimos meses, à medida em que que o ISIS levava adiante suas ações devastadoras, a guerra na Síria entrou num impasse. As forças salafistas apoiadas pelas monarquias do Golfo são incapazes de derrotar as forças nacionais ainda leais ao presidente Bashar al-Assad. A situação mudou dramaticamente quando, a partir de 30 de setembro, a Rússia envolveu-se no conflito, ao lado do governo Assad, instalando na Síria aviões, tanques e vigilância. 

Moscou realizou bombardeios letais contra todas as forças hostis a Assad, não se importando em distinguir entre o ISIS e as outros grupos terroristas, embora o primeiro tenha sofrido pelo menos um quinto dos ataques. Em 10 de novembro, as forças sírias apoiadas pela Rússia tomaram do ISIS a parte oriental da cidade de Aleppo e a base aérea de Kweiras, ameaçando as conexões logísticas do grupo com Raqqa e seus territórios no Iraque. A consolidação das forças curdas da Síria, junto à fronteira turca, já bloqueou o fluxo de armas e recrutas que abasteciam o Califado Islâmico a partir da Turquia.

O ISIS tem respondido a esses ataques com duras represálias a seus inimigos. Em 10 de outubro, realizou um duplo atentado em Ankara, na Turquia, no qual 128 pessoas, principalmente manifestantes pró-curdos, foram mortas. Em 31 de outubro, reivindicou responsabilidade pela queda do avião de passageiros russo que voava de Sharm el Sheikh para São Petersburgo, no qual mais de 200 pessoas perderam a vida. Em 6 e 12 de novembro, realizou dois bombardeios no Líbano matando mais de 40 pessoas e regozijando-se de ter atacado com sucesso xiitas “apóstatas”. O comentarista libanês Khalil Harb pressagiou, já então: “muito mais derramamento de sangue está a caminho.”


No dia em que ocorreram os ataques em Paris, os EUA anunciaram que seus drones haviam matado Mohammed Emwazi, também conhecido com “John Jihadi”, membro do ISIS nascido no Reino Unido que comandou vários assassinatos filmados e assistidos no mundo todo. Comentando essas notícias, o primeiro ministro britânico David Cameron disse que havia sido um ataque “ao coração da organização terrorista”. Por sua parte, os norte-americanos também anunciaram que haviam matado o líder do ISIS na Líbia, Abu Nabil, de nacionalidade iraquiana.

Os ataques a Paris são, portanto, parte dos ataques olho-por-olho que vêm ocorrendo nos últimos meses e são diretamente ligados ao conflito na Síria. A reação a esses ataques, pelos protagonistas em conflito na Síria, reflete sua divisão profunda e sectária. Ambos – Hezbollah e 49 grupos de milicianos anti-Assad – condenaram fortemente os ataques. Mas enquanto o Hezbollah vê o ISIS como um produto do apoio a terroristas dado pelas monarquias do Golfo e pela Turquia, as milícias declararam que Assad encontra-se no coração da atividade terrorista na Síria.

Os ataques a Paris marcam a primeira ocasião que o ISIS saiu da Asia Ocidental para organizar atentados no “inimigo distante” no Ocidente, indicando assim que assumiu a agenda de jihad global da Al Qaeda. Novamente, embora ainda não se saiba se os ataques a Paris foram realizados por membros locais do ISIS, criados no país, ou se houve alguma participação de especialistas da liderança central, é claro que o ISIS tem resiliência considerável e construiu, num curto período, redes que o habilitam a penetrar o cordão de segurança nas nações “desenvolvidas”.

Cumplicidade ampliada

As monarquias do Golfo Pérsico lideradas pela Arábia Saudita, a Turquia e os EUA emergem desse imbroglio com pouco crédito. Os sauditas têm continuam focados na mudança de regime na Síria. Isso permitira transformar a guerra civil que se trava lá num grande confronto sectário, no qual Riad apoiara grupos jihadistas, incluindo o Jabhat al-Nusra (um grupo ligado à Al-Qaeda) em sua guerra por procuração contra o Irã. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan, nas etapas iniciais do conflito sírio, estava igualmente obcecado com derrubar Assad, visto como um defensor dos curdos sírios contra a Turquia. Erdogan permitiu o livre fluxo de jihadistas através da fronteira turca com a Síria, o que reforçou as fileiras do ISIS.

A atitude dos EUA tem sido a mais débil e sem princípios: enquanto inicialmente rejeitava o envolvimento militar direto na Síria, Washingto deu apoio aos sauditas, em troca do apoio das monarquias do Golfo ao acordo nuclear EUA-Irã. Por isso, os jihadistas dominaram a oposição ao governo sírio. Muitos dos grupos anti-Assad negociavam suas armas com o ISIS ou simplesmente juntavam-se a suas fileiras. Mais tarde, os EUA viram a entrada da Rússia na Síria como uma ameaça à sua hegemonia global, e trabalharam com as monarquias do Golfo para enfraquecer o esforço militar russo, fornecendo aos terroristas mísseis TOW mais eficazes contra tanques russos.

Contudo, recentes relatórios dos EUA sugerem uma culpa ainda mais grave por parte dos norte-americanos. O tenente-general Michael Flynn relatou, em agosto deste ano, que, após o fracasso militar dos EUA no Iraque, em 2006, o grupo de falcões norte-americanos conhecido como “neoconservadores” (neocons) persuadiu o vice-presidente Dick Cheney a apoiar iniciativas para derrubar o regime de Assad criando “uma cunha entre a Síria eo Hezbollah”. Isso seria feito apoiando a criação de um “principado salafista” no leste da Síria. Segundo os relatórios, foi o início do apoio da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo aos jihadistas sunitas no Iraque – que depois metamorfosearam-se em ISIS. O Conflicts Forum, que publicou o relatório, conclui: “A jihadização do conflito sírio foi uma decisão política ‘intencional’ [do governo dos EUA].”

Em comentários públicos feitos em outubro de 2014, o vice-pesidente Joe Biden colocou o dedo na ferida. Ele reconheceu: “… na Síria, nosso maior problema foram nossos aliados na região. Estavam tão determinados a derrubar Assad e promover uma guerra entre sunitas e xiitas … [que] ofereceram centenas de milhões de dólares e dezenas, milhares de toneladas de armamentos a qualquer um que lutasse contra Assad. Não importava se estes grupos eram parte da Al-Nusra e Al-Qaeda, ou jihadistas vindos de outras partes do mundo.”

O caminho que o ISIS fez, da Síria a Paris, tem origem em Washington.

Tamiz Ahmad é ex-embaixador da Índia na Arábia Saudita, Oman e União dos Emirados Árabes.

(fonte: http://outraspalavras.net/capa/isis-a-conexao-washington/)

Das desigualdades à barbárie terrorista

O Oriente Médio passou a não fazer parte do mapa mundial de referência desde o advento do capitalismo. Livros de história, sim, aqui e ali tratavam de descrever e comentar o papel das antigas civilizações que por séculos viveram. A nova sociedade ocidental que então surgira apagara quase por completo o passado oriental.

Legados imemoriais, no entanto, da escrita árabe, da descoberta do zero, da engenharia das pirâmides egípcias, das misturas para embalsamento, entre outros importantes achados, foram fundamentais para a evolução da cultura e do conhecimento humano.

O mesmo se deu com a China e a África cujas culturas forneceram relevantes contribuições para a humanidade. O ábaco foi precursor do caminho tecnológico até o computador e a pólvora o elemento sintético primitivo das explosões não naturais, ambas as descobertas vindas da China.

Da África nasceram, por exemplo, as raízes do samba brasileiro, a religião animista vinculada à natureza, o candomblé, das comidas e especiarias da culinária e da beleza, exuberância e força da raça negra.

Síria, Líbano e Iraque, bem como todos os demais povos da região oriental do globo, igualmente participaram da criação da árvore de cultura, conhecimento e saber que o mundo moderno usufrui pelos quatro cantos do planeta.

Mas a energia, a força, o poder e o domínio da máquina, do sistema de máquinas e dos equipamentos, que os fazem funcionar e operam, vieram para ficar, dar novo impulso à imensa trupe mundial e com isso fazer esquecer por incorporar com outras roupagens o legado dos antigos povos orientais.

As tradições culturais e religiosas desses povos ainda permeiam e permanecem na grande maioria dos países, ao contrário do Ocidente cuja maioria católica e protestante, hoje acompanhada por credos evangélicos, se adaptaram e convivem com o capitalismo contemporâneo.

Essa diferenciação marcante dos desenvolvimentos tecnológicos e materiais entre Ocidente e Oriente, coadjuvada pela distância implacável das religiões de ambos os lados, as quais habitam e conformam o comportamento dos povos respectivos, dão cara e forma às desigualdades abismais existentes entre os dois lados do globo terrestre.

Não que capitais, cidades e metrópoles do Oriente não desfrutem de parte das conquistas materiais e tecnológicas do desenvolvimento capitalista, nem que outras regiões do Ocidente não comportem áreas urbanas e rurais menos desenvolvidas, estagnadas, pobres e carentes.

O que passa é que o capitalismo é, por essência, um sistema que nasce, se mantém e se expande se apropriando das diferenças e criando mais diferenças. Ele não veio para igualar, democratizar, socializar, tampouco fazer justiça. Ele faz diferença!

A justiça dele é a do lucro e, por consequência, do excedente captado em todo o tipo de produção. A existência do lucro já distingue a diferença entre os donos do capital e os trabalhadores, já aponta a diferença de cidadãos na sociedade, os que mandam e os que cumprem.

Direitos iguais apenas na retórica, enquanto sob o domínio das relações capitalistas de produção, os direitos estão sob a égide do capital. Não foi por acaso que o capitalismo se apropriou, transformou e aperfeiçoou os sistemas originários de castas e assemelhados. A pirâmide social dos povos antigos serviu de trampolim para a implantação da ordem capitalista.

Hoje em dia manda a meritocracia e com ela as classificações do trabalho em ocupações, cargos e salários. Ordenamentos estes que se prolongam na sociedade, que os legitima, em ocupações, profissões, classes sociais e preconceitos.

Os preceitos constitucionais igualmente se baseiam e se moldam nessas diferenças submetidas aos cidadãos na sociedade e a justiça prevalecente vem daí. A justiça deve ser comum para todos, embora mais comum para os sem posição social de destaque. Ao restante as regalias e exceções.

A guerra do Iraque e da Síria, de memória recente, são exemplos privilegiados dos interesses capitalistas em jogo. No Iraque tratou-se de uma questão econômica: não perder a exploração e a distribuição dos poços de petróleo a cargo de empresas americanas.

Daí a versão mentirosa da posse de armas nucleares e químicas pelo Iraque, apresentada pelo governo americano, ter justificado a derrubada do regime.

Na Síria trata-se de uma questão de poder hegemônico dos Estados Unidos, que tenta recuperar esse papel em provável coalizão internacional com França, Inglaterra e recentemente a Rússia.

Os bombardeios contra os rebeldes realizados por esses países buscam retomar o poder na região junto à presidência síria. De fato, justificam as ações bélicas para "salvar vidas e manter a paz na região".

O conflito de interesses da região do Oriente Médio, econômicos, populacionais e religiosos, há anos provocando atentados, extermínios, guerras e emigração massiva serve de palco para a ação de guerra dos países ocidentais aliados.

E é no cerne desse conflito generalizado na região oriental onde as condições mais cruéis de vida e sobrevivência de vários grupos étnicos se veem às voltas com o surgimento dos rebelião de grupos terroristas, notadamente ao norte da Síria e do Iraque, onde se distribui células do Exército Islâmico.

O acirramento dos conflitos e interesses dificulta cada vez mais uma solução acordada. O estado crescente de desigualdades gerado e mantido na região, onde violência, doenças, miséria e fome abundam, provoca na mesma intensidade o surgimento de focos intensos de terrorismo generalizado.

Os dois ataques à França neste ano por terroristas armados ligados às facções mais radicais mostram a retaliação às ações belicosas da França na região síria. Por que a França? Provavelmente por ser o país mais vulnerável dos demais da coalizão de forças. Além de acesso geográfico mais fácil e rápido e território onde vive grande contingente de pessoas de origem árabe, africana e muçulmana.

Não faz parte da ideologia do capital sentar à mesa de negociações para redução das desigualdades, pois ele vive e sobrevive delas. Não faz parte dos representantes das democracias ocidentais aceitarem acordos menos restritivos às dificuldades sociais e econômicas dos povos mais pobres que não sejam sob as regras capitalistas rígidas.

Igualmente não aceitam os povos mais pobres, sejam orientais e africanos, serem secularmente subjugados política, social e economicamente abrindo mão de suas tradições, hábitos e costumes de trabalho, convivência e vida.

A barbárie de grupos terroristas não se justifica, assim como a prepotência do capital. Este descarta e empobrece populações pelo seu modus operandi e pela produção de crises periódicas do sistema; aqueles exterminam inocentes sem piedade sob a proteção de uma 'lei primitiva e abusiva', a Sharia, onde quer que escolham focos de ataque.

Já está mais que na hora de a civilização cuidar mais de sua sobrevivência em novos termos. Do jeito que está medo, insegurança, horror, terror e morte vão continuar a caminhar juntos. O desfrute e a celebração da vida certamente não passa por aí. Onde está o Deus ou os deuses das religiões? Uma aproximação entre os chefes religiosos de todos os credos pode ajudar a encontrar uma saída.

(fonte:  http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Das-desigualdades-a-barbarie-terrorista/7/35034)

A intolerância

por Antônio Lassance

A intolerância é a imbecilidade à procura de uma multidão. É o espetáculo da estupidez com entrada franca, mas todos pagam caro ao final, quando as portas são fechadas, uma após outra.

A intolerância é o ofício de trucidar inocentes.  Por isso o ódio é um requisito - veneno trazido em embalagem de remédio. O ódio justifica culpar, perseguir, condenar e executar pessoas que não merecem ser tratadas como pessoas, nem mesmo como adversários, e sim como inimigos.

A intolerância é uma seita cultuada e inculta. Com ideias em falta, os xingamentos sobram. A narrativa dos intolerantes não é a de contar histórias, mas a de encontrar culpados. O discurso dos intolerantes não é a conversa e a argumentação, é a ofensa.

Os intolerantes não são burros. Quem dera fossem. Burros são criaturas simpáticas, pacíficas, úteis, laboriosas, respeitadoras. Sequer fazem asneiras, ao contrário do que se lhes atribui. Burros relincham, mas não gritam nem ofendem. Burros cometem erros, mas, nunca, injustiças.

A intolerância é um Mar Morto salgado até trincar. É um monumento granítico impermeável ao bom senso. É a corrupção da alma - por isso, a corrupção é seu assunto predileto.

A intolerância é obscena, pois desconfia que tudo é uma vergonha. A perseguição seletiva apresenta-se como seu principal espetáculo, protagonizado por heróis da repressão.

Os intolerantes fazem sucesso e são notícia, quando não são eles próprios âncoras de programas ou donos dos meios de comunicação - assim se faz da intolerância um modelo de comportamento e um mercado lucrativo.

A intolerância precisa de Estado - do Estado de exceção, do estado de indigência do espírito humano, do estado de mal-estar social.

A intolerância é a inversão de valores básicos, como o respeito ao outro, ao diferente, a ponto de o poeta Goethe nos alertar do risco de quando tolerar é que se torna injurioso. Ser diferente é tido como ameaça coletiva.

Quando se completa a banalização do mal, é sinal de que a intolerância alcançou seu ápice enquanto instrumento de manipulação na luta pelo poder.

A intolerância é um prato de pus oferecido como iguaria. Alguns apreciam. Outros engolem a contragosto. Os que a recusam com coragem e altivez fazem a humanidade ser mais digna desse nome.


(*) Antonio Lassance é cientista político.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Coluna/A-intolerancia/34980)

domingo, 22 de novembro de 2015

sábado, 21 de novembro de 2015

Manhãs com pássaros - convite


A semana no Café História

1] Café História TV: 
Desigualdade Racial/Espacial 

O Café História conversou com Hugo Nicolau Barbosa de Gusmão, estudante do curso de Geografia da Universidade de São Paulo (USP). Gusmão utilizou um software livre chamado QGIS para produzir mapas sobre a distribuição de brancos, negros e pardos no Rio de Janeiro e São Paulo. O trabalho do estudante, que viralizou na internet, inclusive com repercussão no exterior, utilizou dados do IBGE e ilustra importantes desigualdades espaciais em nosso país. [Confira]
[2] Notícias: 
Aprenda a falar italiano de graça
Uma das melhores universidades do país oferece gratuitamente e a distância a oportunidade de qualquer pessoa interessada aprender uma nova língua, o italiano. Isso é possível graças a um material produzido através da parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas, a Superintendência de Tecnologia da Informação / Diretoria de Mídias Digitais da Universidade de São Paulo e Área Didática em Língua e Literatura Italiana da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas que juntas criaram o Dire, fare, partire! [Saiba mais]
[3] Mural: 
Teoria da História
A Segunda Conferência da Rede Internacional para Teoria da História (INTH) será realizada em Ouro Preto, entre 23 e 26 de agosto de 2016. O evento concretizará a parceria com a Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia e do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) com a Rede. [Saiba mais]
[4] Acadêmico:
 Workshop gratuito
A Casa de Oswaldo Cruz promove em 23 e 24 de novembro o workshop Saúde e Escravidão. Além de abordar tópicos como doenças, artes de curar e práticas de saúde dos escravos, o evento pretende discutir as abordagens historiográficas dessa temática. As atividades acontecem no prédio da expansão, no campus da Fiocruz em Manguinhos, no Rio de Janeiro (Av. Brasil, 4036 – sala 402). O workshop é aberto ao público. [Leia mais]
[5] Fórum:
 Dia da Consciência Negra
Professor(a), como você costuma trabalhar o "Dia da Consciência Negra" em sala de aula? Este é o tema do mais novo fórum do Café Historia. Quer contribuir com esta importante discussão interdisciplinar e super atual? [Clique aqui]

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Bom programa para a semana que vem


De Paris ao Rio Doce: do horror político ao horror econômico



Os atentados em Paris e o crime ambiental em Mariana não são hierarquizáveis; o problema consiste em minimizar uma das tragédias por determinadas conveniências

Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

Muita gente no Brasil está falando sobre os atentados em Paris, com mais de cem mortos, em comparação com a maior tragédia socioambiental brasileira do século XXI, o rompimento de barragens em Mariana (MG), com mais de 20 mortos e desaparecidos e uma destruição incalculável do ambiente, entre espécies extintas, impacto por décadas e ameaça direta à sobrevivência de um rio importante, o Rio Doce.

Existe a percepção de que a tragédia francesa abafará a tragédia brasileira. E a verbalização dessa percepção gera um ruído: como se quem dissesse isso fosse indiferente a cada francês morto e ao horror específico dos massacres em Paris, à covardia e ao fanatismo. Com isso se cria um falso problema. Ou, no mínimo, secundário: a nossa suposta insensibilidade. A dos cidadãos, a dos internautas.


E não, não somos nós os culpados. Existem dois horrores simultâneos acontecendo. Um deles é político, mais precisamente geopolítico: o horror que desemboca no massacre de Paris, nos atentados de 11 de setembro, no atentado ao Charles Hebdo, movido também a profundos abismos religiosos e culturais, potencializado por ações tresloucadas e cinicamente moralizantes do Ocidente. O outro horror é econômico.

“Horror Econômico” é o nome de um livro da escritora francesa Viviane Forrester, que dissecava com qualidade literária, em 1996, a lógica abominável de nosso sistema econômico, e as farsas discursivas utilizadas para perpetuá-lo. Era um libelo humanista em defesa dos trabalhadores, da vida e do ambiente, e sobre a planejada cegueira coletiva em relação às desigualdades inerentes ao nosso sistema de produção.
O economista francês Jacques Généreux respondeu no ano seguinte que o horror era político, e não econômico. E deu esse nome ao livro: “Horror Político”. Tanto pela estratégia de poder dos governos (em parceria com as grandes corporações) como pela aceitação dos cidadãos, pelo silêncio, pela incapacidade de reação, de se fazer outras escolhas.

HORRORES SIMULTÂNEOS

Os horrores coexistem e são simultâneos, muitas vezes convergentes. Mas há diferenças. Dos arredores da Torre Eiffel (feita de ferro) ao ferro extraído irresponsavelmente em Mariana há uma hierarquia de fatores, e não de dor, uma gama de responsabilidades específicas. O Estado Islâmico e a Vale não representam o mesmo campo ideológico; nem a mesma religião; nem têm os bolsos recheados com a mesma intensidade. Um aposta no desespero como recurso político; a outra aposta no amortecimento.

O Estado Islâmico é um inimigo conveniente para o sistema. O que não o exime de seus horrores. A Samarco, não. A Samarco é o próprio sistema. A Samarco é a brasileira Vale e a anglo-australiana Billinton. A Vale tem capital japonês, tem dedo do Estado brasileiro, tem fundo de pensão, tem o Bradesco. A Vale é o sistema que se perpetua diariamente nas páginas da imprensa – tanto as jornalísticas como as publicitárias.
E, portanto, essa mesma imprensa cantará com mais força o horror distante, com o inimigo consensual. Não há possibilidade de “acidente” em um massacre movido a metralhadoras, e fica decretada a impossibilidade de contextualização (nunca de justificação), de tentarmos entender o que acontece, por que acontece esse tipo de barbárie e qual o papel dos que não se julgam bárbaros na perpetuação dessa violência.

No Brasil, define-se uma lógica contrária. A morte de milhões de animais, a destruição de um povoado inteiro (que não mais existirá), as cinco crianças mortas ou desaparecidas e a incrível sequência de impactos ambientais (como a falta d’água em municípios inteiros de Minas) são tratadas como se fossem um mero detalhe, “desculpa aí, foi mal, mas nós geramos empregos na região e somos muito bem intencionados, nós somos o desenvolvimento”.

NÃO FOI UM ACIDENTE

O papel da imprensa graúda é o de reforçar a imagem de um “acidente” – como se esse acidente não fosse inerente a esse sistema econômico genocida. Não fosse também o horror. Alguns profissionais nos grandes jornais resistem e produzem notícias importantes. Mas o problema é o dimensionamento. Não haverá avalanche noticiosa sobre o desastre ambiental como o volume de exclamações sobre Paris. O efeito geral, a médio prazo, é o de minimização.

Um dos problemas desse noticiário é que ele só reporta os espasmos dos conflitos políticos e econômicos. Só as erupções. E não o rio diário de impactos sociais e ambientais. Precisaríamos criar uma cultura de acompanhar o sistema político e o sistema econômico de forma mais orgânica, para que não apenas enxuguemos gelo midiático a cada tragédia. E entendamos melhor o que leva a tudo isso. Sempre questionando o poder – e não as vítimas.

O mundo não está dividido entre “os loucos do Estado Islâmico” e “as necessárias empresas geradoras de emprego”. Que se multipliquem as nuances e os adjetivos. Sem ilusão de que nossa sociedade e nosso modo de vida seja superior. Nós também temos (e no poder) nossos fanáticos, nossos obsessivo-compulsivos e nossos psicopatas. Basta de naturalizar um modelo violento de apropriação dos recursos naturais sem que os trabalhadores e a sociedade possam dizer: “Não. Desengatilhem essa metralhadora”.

(fonte: http://outraspalavras.net/alceucastilho/2015/11/14/de-paris-ao-rio-doce-do-horror-politico-ao-horror-economico/)