domingo, 28 de agosto de 2016

Duterte herdeiro de Ferdinand Marcos


Antônio de Paiva Moura

Em edição do dia 20 de agosto de 2016, o Segundo Blog do Ricardo publicou matéria de Valcir Gomes Melo, intitulada “O justiceiro do Sul da Ásia”, na qual denuncia o preconceito e a crueldade do atual presidente das Filipinas. Quero lembrar que Duterte é herdeiro de Ferdinand Marcos, que foi presidente das Filipinas, de 1965 a 1986, que se fartou de roubar e assassinar seus compatriotas.

A Transparency International estima que Marcos pilhou entre cinco e dez bilhões de dólares, durante o período em que esteve no poder. Ferdinand Marcos foi o representante das famílias de novos senhores feudais cultivadas pelos EUA no final do século XIX. Foram escolhidas entre as famílias de colonizadores os que deveriam permanecer no poder e evitar qualquer tipo de mudança ou de revolução. Segundo Woodiwiss (p.223), Ferdinand Marcos especializou-se na arte da demagogia, e toda vez que se reelegia era com um álibi de salvação das Filipinas. Em 1972, utilizou uma série de atentados terroristas à bomba, por capangas seus, para em seguida decretar a lei marcial. Essa lei proporcionou a Ferdinand Marcos o poder de impedir manifestações populares, impedir greves e boicotes. A partir daí, assumiu o controle da economia em estreita colaboração com o FMI, que determinou a liberalização do sistema financeiro
do país. 


Ferdinand Marcos controlava, pela força e pela repressão, os sindicatos e qualquer outra forma de organização social. Por isso as empresas lhe passavam parte  dos lucros. Woodiwiss diz que Imelda Marcos, mulher do presidente, presidia trinta empresas estatais e era ministra de Assentamentos Humanos, mas que o povo jamais recebia os recursos destinados a tal ministério. O mais difícil de acreditar é que Imelda construía abrigo para prostitutas, na esperança de que elas se tornassem atração turística para as Filipinas.

Em conclusão, os EUA só combatiam ditaduras que estivessem na órbita da União Soviética, mas, contraditoriamente, fomentavam, mantinham e se aproveitavam das ditaduras e sistemas de corrupção que favoreciam a destinação de riquezas em seu favor.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A Saúde vai mal; a Indústria da Doença lucra como nunca

Como os planos de atendimento privados mobilizam a mídia para propor “soluções” que corroem o SUS, desarticulam o atendimento preventivo e valorizam apenas o sistema hospitalar

Por Leandro Farias, no Le Monde Diplomatique

Passados trinta anos de um marco na história do Brasil, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, ainda estamos diante de paradigmas que contribuem para a visão mercantil do setor. Durante a Conferência, foi discutido a fundo o modelo de saúde presente na época e, em relatório final produzido por políticos, gestores, profissionais e usuários do sistema, apontou-se a necessidade de mudanças neste. Tal relatório contribuiu para que, durante a Constituinte, fosse debatido capítulo referente ao direito à Saúde, presente em nossa Constituição Federal de 1988. Assim nasceu o Sistema Único de Saúde (SUS). Posteriormente, surgiram as leis n. 8.080 e n. 8.142, que tratam da regulamentação, financiamento e participação social no SUS.

Persiste, porém, o desafio da quebra do modelo médico hegemônico, hospitalocêntrico ou complexo médico-industrial, que traz uma visão avessa ao modelo preventivista elaborado durante o processo histórico que antecedeu a criação do SUS, a chamada Reforma Sanitária. O primeiro modelo alimenta a visão mercantil da saúde e segue as leis do mercado, reforçando a indústria da doença formada por laboratórios, empresas, planos de saúde, entre outros. Essa indústria promove a prática de assédio aos profissionais da saúde desde sua entrada nas universidades, com o custeio de viagens, cursos, congressos e até porcentagem na venda de seus produtos. Sem falar na má remuneração destinada aos seus profissionais, que assim optam pela quantidade em detrimento da qualidade nos serviços disponibilizados.

Por deter recursos e poder, o setor privado financia a grande mídia, que aceita o jogo imoral por ele praticado. Ao assistirmos aos principais telejornais, observamos o ataque orquestrado ao sistema público de saúde, dando ênfase apenas às falhas, tratadas como corriqueiras. Já os problemas do setor privado não são exibidos. Não obstante, visualizamos figuras públicas em propagandas que nitidamente visam ludibriar a população. Assim, o imaginário de saúde como bem de consumo adentra a sociedade, sobrepondo-se à ideia de saúde como um direito fundamental.

Atualmente, estamos diante de surtos de diversas doenças como dengue, zika, chikungunya, influenzaA (H1N1), microcefalia, síndrome de Guillain-Barré. E temos observado a alta procura por vacinas e medicamentos. Isso é reflexo de diversas políticas de governos que se sucederam à formação do SUS, que por sua vez parecem encarar a saúde como “ausência de doença”, o que na prática se torna um “prato cheio” para os que veem no setor uma oportunidade de faturamento monetário. Tal visão política vai na contramão do conceito ampliado de saúde, elaborado durante a 8ª Conferência, que traz uma relação direta entre saúde e determinantes sociais, tais como condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde.

Um retrato dessa realidade é a questão do saneamento básico no país, traduzida em esgoto a céu aberto, lixo nas ruas e armazenamento incorreto da água. Segundo levantamento feito em 2015 pelo Instituto Trata Brasil, apenas 48% dos domicílios brasileiros têm coleta de esgoto. Segundo o ministério da Saúde (MS/Datasus), em 2013 foram notificadas mais de 340 mil internações por infecções gastrointestinais no país. E o custo de uma internação por essa patologia no SUS foi de cerca de R$ 355,71 por paciente na média nacional. Estudos apontam a existência de uma ligação direta entre a falta de saneamento básico e o aparecimento de doenças. O último Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti (LIRAa), divulgado pelo MS em novembro de 2015, nos trouxe a seguinte questão: no Nordeste, 76,5% dos focos do mosquito estão em armazenamento de água para consumo – por exemplo, caixa-d’água. A região concentra a maioria dos municípios com índices de risco de epidemia de dengue.

Doenças como chikungunya, microcefalia e síndrome de Guillain-Barré, que são provocadas pelo Aedes aegypti, demandam recursos e mão de obra especializada, uma vez que os respectivos tratamentos são de médio e longo prazo. Tais patologias, que culminam em maior demanda por serviços e medicamentos, poderiam ser evitadas com ações de prevenção e promoção da saúde. Falta foco nas condições socioambientais da população, sem falar que o sistema público de saúde sofre de um subfinanciamento crônico. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), cada R$ 1 investido em saneamento gera uma economia de R$ 4 em saúde. Lembrando que saneamento básico é um direito presente em nossa Carta Magna.

Ao analisarmos os números da economia, observamos que o setor privado da saúde ignora a crise econômica que aflige o país, não se deixando abater pela recessão. Ao contrário, o lucro do setor aumentou mesmo diante da elevação das taxas de juros e da diminuição da renda dos consumidores. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o único setor que não sofreu queda nas vendas em 2015 foi o de artigos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, de perfumaria e cosméticos, que cresceu 3%. Os números da administradora de planos de saúde Qualicorp são claros: a empresa obteve lucro de R$ 61,4 milhões só no último trimestre de 2015, apresentando um avanço de 224% em relação ao mesmo período de 2014.

Sabemos que saúde se faz por meio de recursos. Porém, uma sociedade acometida por diversas patologias promove um efeito expressivo na economia, pois, além de exigir maior aplicação de recursos no orçamento da saúde, uma vez que o acesso aos seus serviços é algo oneroso, uma quantidade significativa de trabalhadores deixará de produzir por conta de sua doença. Ao pensarmos que diversos agravos podem ser evitados, caso sejam respeitados os direitos e as garantias fundamentais presentes em nossa Constituição, e que a existência de relações promíscuas envolvendo membros do Executivo, Legislativo, Judiciário e empresários impede o avanço de nossa sociedade por conta de interesses minoritários, é válido fazermos a seguinte reflexão: quem lucra com a crise no sistema de saúde?
Leandro Farias: Farmacêutico Sanitarista da Fiocruz e coordenador do Movimento Chega de Descaso.

(fonte: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=346840)

Guia de Escrita



Por que há tantos textos ruins? O que se pode fazer para mudar essa realidade? É verdade que a língua está se deteriorando devido às mensagens eletrônicas e às redes sociais?
Neste livro divertido e instrutivo, Steven Pinker – linguista, cientista cognitivo, escritor e autor de vários best-sellers – repensa o manual de uso da língua, trazendo-o para o século XXI. Em vez de lamentar a decadência do idioma, listar seus motivos de irritação preferidos ou reciclar regras que povoam os manuais de cem anos atrás, ele traz ideias da Linguística e das Ciências Cognitivas como auxílio no desafio de se construir uma prosa clara, coerente e elegante.
Guia de escrita, em brilhante tradução e adaptação para o português do linguista Rodolfo Ilari, destina-se tanto àqueles que escrevem (e deveriam melhorar muito), como aos que ainda têm medo de escrever e têm curiosidade em saber como as ciências da mente podem esclarecer melhor o funcionamento da linguagem.


“Inquieto, inventivo, corajoso, malicioso.” The New York Times

“Um cuidadoso guia prático e moderno para pessoas que pensam que sabem escrever bem, mas que estão dispostas a acreditar que poderiam escrever melhor.”Henry Hitchings, The Guardian

“Um humor leve acompanha o bom senso de Pinker ao longo do livro, um antídoto contra os manuais de uso mais vendidos [...]. Pinker explica de modo eloquente não apenas o que fazer, mas também por quê.”The Economist

“Que pensador e escritor impressionante temos aqui...! Pinker é brilhante, e o mundo da ciência tem sorte de poder contar com ele.”Richard Dawkins, “Suplemento Literário” do Times

“É ótimo ter uma mente tão viva e tão clara e a maneira como ele faz chegar as ideias da ciência cognitiva ao público.” Douglas Hofstadter, Los Angeles Times

Agosto, uma história que se repete como farsa

Texto escrito por José de Souza Castro:

O professor Nilson Lage conta, neste artigo, como ficou sabendo da morte de Getúlio Vargas. No dia 24 de agosto de 1954, acordou às 7 horas da manhã e ligou a Rádio Globo, onde horas antes ouvira Carlos Lacerda dizer em entrevista como era importante expulsar do Palácio do Catete o “ditador que navegava em mar de lama”. A rádio estava fora do ar. Ligou na Rádio Nacional, que tocava uma música de Debussy. Só alguns minutos mais tarde entrou o prefixo do Repórter Esso e o locutor anunciou o suicídio do presidente da República.

Eu tinha 10 anos de idade e hoje, ao ler este artigo, me lembrei mais uma vez daquele dia, do qual nunca me esqueci. Havia sido acordado às 5h30, como de hábito no rígido colégio interno dirigido por um padre alemão que vinha insistindo, com grande relutância nossa, para seguir-lhe os passos rumo ao sacerdócio.

Às 7 horas, já estávamos na sala de aula, a do segundo ano primário. Pouco depois, a porta foi aberta de supetão por frei Elias – um cearense que não era maior do que eu naquela época – que anunciou, às gargalhadas: “Getúlio Vargas morreu”. Rapidamente, por insistência da professora, contou como foi. Ele tinha pressa para transmitir a grande notícia às outras três salas.

Acho que todos nós sabíamos quem era Getúlio. Um homem malvado que havia ajudado os americanos a derrotarem Hitler, impedindo assim que o líder alemão acabasse com o comunismo no mundo. Nosso diretor, grande admirador do Füher, só apareceu naquele dia às 11h – o horário normal das pregações dele a todos os alunos.

O padre não gargalhava, como frei Elias. Nem ao menos sorria. Começou dando uma esculhambação no subordinado de batina, que estava de pé ao seu lado, cabisbaixo. A morte de alguém, ainda mais por suicídio, não era motivo de regozijo, pregou o padre.



Frei Elias, que não brilhava pela inteligência, não esperava por essa.
Talvez o padre tivesse se regozijado em segredo. Mas, àquela altura, a ficha já caíra. Até para Carlos Lacerda. Assis Chateaubriand, que, com os Diários Associados, era então o que viria a ser nas décadas seguintes Roberto Marinho com sua Rede Globo de Televisão, tinha sido cauteloso. Seus jornais, rádios e TVs não embarcaram de peito aberto na campanha contra Getúlio – e se salvaram da ira do povo.
Neste agosto, quando se tenta novo golpe contra um presidente eleito – pior agora, uma mulher –, eu me pergunto: quem na imprensa se salvará da ira do povo contra os golpistas, se a situação do país se deteriorar muito mais a partir do desfecho do golpe?
Volto às lembranças de Nilson Lage:

“Era o fecho de uma conspiração que transcorreu paralelamente nas esferas política, militar – essencialmente na Aeronáutica, de que provinha o candidato derrotado nas eleições de 1950 e hoje patrono da Força, Brigadeiro Eduardo Gomes –, e na imprensa, movida sob discreta coordenação dos poderosos Diários Associados, de Assis Chateaubriand.
Chateaubriand, no entanto, não se expunha. Na linha de frente da campanha de insultos, calúnia e difamação estava seu ex-funcionário, dono da Tribuna da Imprensa, o mesmo Carlos Lacerda; e O Globo, vespertino regional carioca associado à emissora de ondas médias do mesmo nome. O dono do Globo era Roberto Marinho, que na época recolhia migalhas que sobravam no banquete de Chatô.
Unindo essas forças, na retaguarda e inteligência do golpe contra Getúlio, os Estados Unidos. Os americanos não lhe perdoavam o preço que cobrou na negociação para a cessão de bases no Nordeste e envio da Força Expedicionária Brasileira à Itália: a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda, da Fábrica Nacional de Motores e, principalmente, o planejamento da industrialização e desenvolvimento do Brasil por uma comissão econômica mista.
Para a implantação dos projetos, o governo americano deveria destinar US$ 500 milhões no âmbito do Plano Marshall e, contando com isso, o Brasil fez enormes concessões durante todo o governo de Eurico Gaspar Dutra, abrindo excessivamente seu mercado, comprando petroleiros (do Plano Salte) que se partiam no mar e perdoando grandes dívidas inglesas.
Mas os americanos não mandaram um tostão.
Getúlio governou dois anos de cintos apertados, criou um adicional ao Imposto de Renda, fez caixa e, então, iniciou a execução das obras por conta própria com recursos do Estado – da construção da Hidrelétrica da Paulo Afonso à criação da Petrobras para explorar um petróleo que se afirmava inexistir.”

E concluo lembrando Karl Marx em “Dezoito Brumário de Louis Bonaparte” (1852): “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.”

(fonte: https://kikacastro.com.br/2016/08/25/agosto-uma-historia-que-se-repete-como-farsa/#more-12905_

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Uma alternativa ao poder imperial dos EUA?


Rússia e Irã advertem – agora com apoio da China: não permitirão que potências ocidentais reduzam Síria a uma Líbia. Qual o significado, para a geopolítica global?
Por Pepe Escobar | Tradução Vila Vudu

Os bombardeiros russos Tu-22M3 Backfire – além dos jatos Sukhoi-34 – decolam do campo de pouso iraniano em Hamadan para bombardear jihadistas e sortimento variado de “rebeldes moderados” na Síria, e imediatamente nos vemos diante de movimento geopolítico da mais alta importância, não previsto, que muda tudo.

Os registros mostram que a última vez que a Rússia esteve militarmente presente no Irã aconteceu em 1946; e essa é a primeira vez, desde a Revolução Islâmica de 1979, que o Irã autoriza outra nação a usar território iraniano para operação militar.

Pode-se apostar que o Pentágono enlouquecerá completamente, feito gangue de adolescentes mimados furiosos. Já começou, com reclamações de que o aviso que os russos distribuíram não permitiu tempo suficiente para “preparação” – quer dizer, para se porem a bradar por todo o planeta que teria acontecido mais um episódio da “agressão russa”, e, para piorar, em conluio com “os mulás”. Na sequência, ainda mais desespero, com Washington a pretender que o Irã teria violado resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

O trabalho e a divulgação feitos por Moscou, por sua vez, foi uma beleza; trata-se exclusivamente de logística e de reduzir despesas. O almirante Vladimir Komoyedov, presidente da Comissão de Defesa do Parlamento e ex-comandante da Frota do Mar Negro, explicou belamente o modus operandi:

“É muito caro e exige muito tempo voar a partir de bases localizadas na parte europeia da Rússia. A questão do custo de atividades militares de combate é, atualmente, alta prioridade. Não podemos ultrapassar o orçamento atual do Ministério da Defesa. Voar Tu-22s a partir do Irã significa menos combustível e maior capacidade para carga (…) A Rússia não poderia encontrar país mais adequado e mais solidário, do ponto de vista da segurança, nessa parte do mundo; e podemos realizar todos os ataques necessários para pôr fim a essa guerra (…) Campos de pouso na Síria não são adequados, porque essa localização exigiria sobrevoo em áreas onde há atividade de combate.”

Não se metam com a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) 

Assim sendo, tudo ótimo. O Pentágono continuará a espernear. Sionistas enfurecidos em Israel e wahhabistas fanáticos na Arábia Saudita farão muito barulho e turbinarão até níveis apocalípticos a proverbial “ameaça existencial” que lhes viria do Irã. Esses “fatos nos céus” não podem ser alterados. Especialmente porque, se abrirem caminho para uma vitória decisiva na batalha por Aleppo Leste, a guerra civil – imposta de fora para dentro aos sírios – logo estará acabada.

Ali Shamkhani, presidente do Conselho de Segurança Nacional do Irã absolutamente não se engana ao dizer que tudo aí tem a ver com cooperação estratégica Irã-Rússia, numa luta – real – contra o terror de ISIS/ISIL/Daech terror, e não, como a mídia-empresa ocidental não se cansa de repetir, com alguma volta do Irã como “agente militar” de uma grande potência.

O primeiro-ministro iraquiano, por sua vez, fez questão de esclarecer que “Autorizei o sobrevoo dos bombardeiros porque recebemos informação clara sobre eles. Fazem ataques precisos, evitam baixas entre os civis. Pode-se ter certeza de que está assegurada a segurança dos civis na Síria“.
Foi a senha para que Bagdá liberasse sem sobressaltos o acesso dos bombardeiros TU-22M3s russos ao espaço aéreo iraquiano. Passo seguinte inevitável será a frota russa no Cáspio disparar mísseis cruzadores que atravessarão espaço aéreo iraniano e iraquiano, para alcançar os tais “rebeldes” que a av. Beltway em Washington protege na Síria.

E há muito mais.
Um acordo de 2015 firmado entre Moscou e Damasco acaba de ser ratificado agora pela Rússia. Graças a ele, a base aérea russa em Khmeimim é convertida em base militar permanente no leste do Mediterrâneo.[1]
Pequim e Damasco, por sua vez, acabam de firmar laços militares mais próximos, a partir da ajuda humanitária que os chineses oferecem. E o pessoal do Exército Árabe Sírio receberá eventualmente instrutores militares chineses.

Pequim está agora diretamente envolvida na Síria por uma razão chave de segurança nacional: centenas de uigures uniram-se aos terroristas do Daech ou se alistaram nas fileiras de Abu Muhammad al-Julani, comandante da al-Qaeda, e muito prestigiado em Washington como líder do Exército da Conquista da Síria; esses uigures sempre podem voltar a Xinjiang como jihadistas.

Há ainda uma deliciosa cereja para esse cheesecake, como o professor de Estudos do Oriente Médio na Universidade de Estudos Internacionais de Xangai, Zhao Weiming, disse ao Global Times: essa nova jogada de poder de Pequim na Síria é o revide, contra a interferência do Pentágono no Mar do Sul da China.

Assim sendo… o que fará Hillary?

Tudo que acima se lê aponta para nova evidência de que, o que antes foi um elefante branco no meio da sala, a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), passa agora a significar assunto sério.

Quando os “4+1″ (Rússia, Irã, Iraque, Síria, plus Hezbollah) começaram a partilhar inteligência e procedimentos operacionais, ano passado, incluindo um centro de coordenação em Bagdá, analistas como Alistair Cooke e eu vimos naquela ação um embrião do que seria a OCX em ação. Foi, sem dúvida, já desde o início, uma alternativa ao imperialismo “humanitário” e à obsessão com mudança de regime, da OTAN. Pela primeira vez a OTAN já não andava solta e livre pelo mundo, feito um Robocop descontrolado.

Embora só Rússia e China fossem membros da OCX, com o Irã como observador, a cooperação envolvida – a pedido de um governo que lutava contra jihadistas e continuava como alvo de ataque para mudança de regime – já marcou um importante novo fator geopolítico em campo.

Agora, essa variante das Novas Rotas da Seda – Novas Rotas Aéreas da Seda? – que reúne Rússia, Irã, Iraque e Síria contra, precisamente, o salafismo-jihadismo, aparece como, mais uma vez, ação acelerada de integração na Eurásia. Os dois pesos-pesados da OCX, China e Rússia, não apenas admitirão o Irã como membro pleno, logo no início de 2017; ambos contam com o Irã como ativo estratégico chave numa batalha contra a OTAN, e absolutamente não permitirão que a Síria seja convertida numa nova Líbia.

Paralelamente, os movimentos estratégicos da Rússia na Crimeia e na Síria passam a ser objeto de análise, até os mais ínfimos detalhes, nas academias militares chinesas.
Progressivamente, a integração da Eurásia vai-se entretecendo com a OCX.
Sejam quais forem os temores de Telavive e Riad – com seus massivos lobbies em Washington – sobre essa cooperação russo-iraniana de segurança, é a OTAN quem está lívida. E ainda mais lívida que a OTAN está Hillary “Rainha da Guerra” Clinton.

Os registros mostram que Hillary manifesta acentuada queda para tentar despachar Assad como despacharam Gaddafi. No caso de governo Hillary, pode-se apostar que ela forçará o Pentágono a impor uma zona aérea de exclusão no norte da Síria e a armar quaisquer remanescentes, por misturados que sejam, dos tais “rebeldes”, até o Juízo Final.

E há também o Irã. Na campanha eleitoral de 2008 nos EUA, assisti da plateia ao discurso que Hillary fez na Conferência do AIPAC em Washington, espetáculo realmente aterrorizante. Partindo da premissa – falsa – de que o Irã atacaria Israel, disse ela: “Quero que os iranianos saibam que, se eu for presidenta, atacaremos o Irã. Nos próximos dez anos, durante os quais podem considerar a loucura de atacarem Israel, seremos capazes de contê-los totalmente.”

Ah, é?! É mesmo?! E passará por cima da cooperação estratégica Rússia-Irã? E passará por cima de uma Organização de Cooperação de Xangai cada vez mais integrada? É? Então venha, Rainha da Guerra.

[1] Parece que esse detalhe está mais claramente explicado em “Eixo Teerã-Pequim-Moscou muda tudo”, 21/8/2016, Ruslan Ostashko, PolitRussa (trad. ru-ing. J. Arnoldski) Fort Russ News, traduzido no Blog do Alok [NTs].

(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/uma-alternativa-ao-poder-imperial-dos-eua/)

Crônica em meio à grande crise global

Saídas para evitar um colapso civilizatório são evidentes – mas nunca estiveram tão bloqueadas. A questão crucial: teremos tempo para chegar a um Plano B?

Por Ladislau Dowbor | Tradução: Inês Castilho  


Difícil deixar de pensar que estamos vivendo num circo gigante. Quando sentamos no sofá depois de um dia bizarro de trabalho e horas de transporte, as novelas surreais na TV nos dão uma visão geral do jogo global: tantas bombas sobre a Síria, mais refugiados nas fronteiras, os problemas das grandes finanças, os últimos gols de Neimar. Ah sim, e quem, depois da Hungria, a Grécia, a Polônia e o Reino Unido está ameaçando deixar a União Europeia em nome de ideais nacionais superiores.

É um jogo e tanto. Relatórios do Crédit Suisse e da Oxfam mostram a grande divisão entre os donos do jogo e os espectadores: 62 bilionários têm mais riqueza do que os 50% mais pobres da população mundial. Eles produziram tudo isso? Evidentemente, tudo depende de que papel você desempenha no jogo. Em São Paulo, os muito ricos que habitam o condomínio de Alphaville estão murados em segurança, enquanto os pobres que vivem na vizinhança se autodenominam Alphavella. Alguém precisa cortar a grama e entregar as compras.

De acordo com o relatório global da WWF sobre a destruição da vida selvagem, 52% das populações de animais não-domesticados desapareceram, durante os 40 anos que vão de 1970 a 2010. Muitas fontes de água estão contaminadas ou secando. Os oceanos estão gritando por socorro, o ar condicionado prospera. As florestas estão sendo derrubadas na Indonésia, que substituiu a Amazônia como a região número um do mundo em desmatamento. A Europa precisa ter energia renovável, de carne barata e da beleza do mogno.

A Rede de Justiça Fiscal revelou que cerca de 30 trilhões de dólares – comparados a um PIB mundial de US$ 73 trilhões – eram mantidos em paraísos fiscais em 2012. O Banco de Compensações Internacionais da Basileia mostra que o mercado de derivativos, o sistema especulativo das principais commodities, alcançou 630 trilhões de dólares, gerando o efeito iôiô nos preços das matérias-primas econômicas básicas. O maior jogo do planeta envolve grãos, minerais ferrosos e não ferrosos, energia. Essas commodities estão nas mãos de 16 corporações basicamente, a maior parte delas sediadas em Genebra, como revelou Jean Ziegler em “A Suiça lava mais branco”. Não há árbitro neste jogo, estamos num ambiente vigiado. Os franceses têm uma excelente descrição para os nossos tempos: vivemos une époque formidable!

Fizemos um trabalho perfeito em 2015: a avaliação global sobre como financiar o desenvolvimento em Adis Abeba, as metas do desenvolvimento sustentável para 2030 em Nova York e a cúpula sobre mudanças climáticas em Paris. Os desafios, soluções e custos foram claramente expostos. Nossa equação global é suficientemente simples para ser executada: os trilhões em especulação financeira precisam ser redirecionados para financiar inclusão social e para promover a mudança de paradigma tecnológico que nos permitirá salvar o planeta. E a nós mesmos, claro.
Mas são os lobos de Wall Street que traçaram o código moral para este esporte: Ganância é Ótima!

Afogando em números

Estamos nos afogando em estatísticas. O Banco Mundial sugere que deveríamos fazer algo a respeito dos news four biliion – referindo-se aos quatro bilhões de seres humanos “que não têm acesso aos benefícios da globalização” – uma hábil referência aos pobres. Temos também os bilhões que vivem com menos de 1,25 dólar por dia. A FAO nos mostra em detalhes onde estão localizadas as 800 milhões de pessoas famintas do mundo. A Unicef conta aproximadamente 5 milhões de crianças que morrem anualmente em razão do acesso insuficiente a comida e água limpa. Isso significa quatro World Trade Centers por dia, mas elas morrem silenciosamente em lugares pobres, e seus pais são desvalidos.

As coisas estão melhorando, com certeza, mas o problema é que temos 80 milhões de pessoas a mais todo ano – a população do Egito, aproximadamente – e este número está crescendo. Um lembrete ajuda, pois ninguém entende de fato o que significa um bilhão: quando meu pai nasceu, em 1900, éramos 1,5 bilhão; agora somos 7,2 bilhões. Não falo da história antiga, falo do meu pai. E já que não é da nossa experiência diária entender o que é um bilionário, vai aqui uma nova imagem: se você investe um bilhão de dólares em algum fundo que paga miseráveis 5% de juros ao ano, ganha 137.000 dólares por dia. Não há como gastar isso, então você alimenta mais circuitos financeiros, tornando-se ainda mais fabulosamente rico e alimentando mais operadores financeiros.

Investir em produtos financeiros paga mais do que investir na produção de bens e serviços – como fizeram os bons, velhos e úteis capitalistas – de modo que não tem como o acesso ao dinheiro ficar estável, muito menos gotejar para baixo. O dinheiro é naturalmente atraído para onde ele mais se multiplica, é parte da sua natureza, e da natureza dos bancos. Dinheiro nas mãos da base da pirâmide gera consumo, investimento produtivo, produtos e empregos. Dinheiro no topo gera fabulosos ricos degenerados que comprarão clubes de futebol, antes de finalmente pensar na velhice e fundar uma ONG – por via das dúvidas.

Um suborno global

Muita gente percebe que as regras do jogo são manipuladas. Os tempos são de fraude global, quando pessoas fabulosamente ricas doam a políticos e promovem a aprovação de leis para acomodar suas crescentes necessidades, fazendo da especulação, da evasão fiscal e da instabilidade geral um processo estrutural e legal. Lester Brown fez suas somatórias ambientais e escreveu Plano B [“Plan B”], mostrando claramente que o atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz, Jeffrey Sachs e muitos outros estão trabalhando no Próximo Sistema [“Next System”], mostrando, implicitamente, que nosso sistema foi além de seus próprios limites.

Joseph Stiglitz e um punhado de economistas lançaram Uma Agenda para a Prosperidade Compartilhada, rejeitando “os velhos modelos econômicos”. De acordo com sua visão, “igualdade e desempenho econômico constituem na realidade forças complementares, e não opostas”. A França criou seu movimento de Alternativas Econômicas; temos a Fundação da Nova Economia no Reino Unido; e estudantes da economia tradicional estão boicotando seus estudos em Harvard e outras universidades de elite. Mehr licht! [Mais luz!]

E os pobres estão claramente fartos desse jogo. Sobram muito poucos camponeses isolados e ignorantes prontos a se satisfazer com sua parte, seja ela qual for. As pessoas pobres de todo o mundo estão crescentemente conscientes de que poderiam ter uma boa escola para seus filhos e um hospital decente onde pudessem nascer. E além disso veem na TV como tudo pode funcionar: 97% das donas de casa brasileiras têm aparelho de TV, mesmo quando não têm saneamento básico decente.

Como podemos esperar ter paz em torno do lago que alguns chamam de Mediterrâneo, se 70% dos empregos são informais e o desemprego da juventude está acima de 40%? E eles estão assistindo na TV o lazer e a prosperidade existentes logo ali, cruzando o mar, em Nice? A Europa bombardeia-os com estilos de vida que estão fora do seu alcance econômico. Nada disso faz sentido e, num planeta que encolhe, é explosivo. Estamos condenados a viver juntos, o mundo é plano, os desafios estão colocados para todos nós, e a iniciativa deve vir dos mais prósperos. E, felizmente, os pobres não são mais quem eram.

Cultura e convivialidade

Sempre tive uma visão muito mais ampla de cultura do que o tradicional “Ach! disse Bach”. Penso que ela inclui desfrutar de alegria com os outros, enquanto se constrói ou se escreve alguma coisa, ou simplesmente se brinca por aí. Convivialidade. Recentemente passei algum tempo em Varsóvia. Nos fins de semana de verão, os parques e praças ficavam cheios de gente e havia atividades culturais para todo lado.

Ao ar livre, com um monte de gente sentada no chão ou em simples cadeiras de plástico, uma trupe de teatro fazia uma paródia do modo como tratamos os idosos. Pouco dinheiro, muita diversão. Logo adiante, em outras partes do parque Lazienki, vários grupos tocavam jazz ou música clássica, e as pessoas estavam sentadas na grama ou assentos improvisados, as crianças brincando por perto.

No Brasil, com Gilberto Gil no ministério da Cultura, foi criada uma nova política, os Pontos de Cultura. Isso significou que qualquer grupo de jovens que desejassem formar uma banda poderiam solicitar apoio, receber instrumentos musicais ou o que fosse necessário, e organizar shows ou produzir online. Milhares de grupos surgiram – estimular a criatividade requer não mais que um pequeno empurrão, parece que os jovens trazem isso na própria pele.

A política foi fortemente atacada pela indústria da música, sob o argumento de que estávamos tirando o pão da boca de artistas profissionais. Eles não querem cultura, querem indústria de entretenimento, e negócios. Por sorte, isso está vindo abaixo. Ou pelo menos a vida cultural está florescendo novamente. Os negócios têm uma capacidade impressionante para ser estraga-prazeres.

O carnaval de 2016 em São Paulo foi incrível. Fechando o círculo, o carnaval de rua e a criatividade improvisada estão de volta às ruas, depois de ter sido domados e disciplinados, encarecidos pela comunicação magnata da Rede Globo. As pessoas saíram improvisando centenas de eventos pela cidade, era de novo um caos popular, como nunca deixou de ser em Salvador, Recife e outras regiões mais pobres do país. O entretenimento do carnaval está lá, é claro, e os turistas pagam para sentar e assistir ao show rico e deslumbrante, mas a verdadeira brincadeira está em outro lugar, onde o direito de todo mundo dançar e cantar foi novamente conquistado.

Um caso de consumo

Eu costumava jogar futebol bastante bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar no tradicional estádio do Pacaembu, em São Paulo. Momentos mágicos, memórias para a vida inteira. Mas principalmente brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas improvisadas ou reais. Isso não é nostalgia dos velhos e bons tempos, mas um sentimento confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes caras fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e bebe uma cerveja, não é o esporte – mas a cultura no seu sentido mais amplo – que se transformou numa questão de produção e consumo, não em alguma coisa que nós próprios criamos.

Em Toronto, fiquei pasmo ao ver tanta gente brincando em tantos lugares, crianças e gente idosa, porque espaços públicos ao ar livre podem ser encontrados em todo canto. Aparentemente, por certo nos esportes, eles sobrevivem divertindo-se juntos. Mas isso não é o mainstream, obviamente. A indústria de entretenimento penetrou em cada moradia do mundo, em todo computador, todo telefone celular, sala de espera, ônibus. Somos um terminal, um nó na extensão de uma espécie de estranho e gigante bate-papo global.

Esse bate-papo global, com evidentes exceções, é financiado pela publicidade. A enorme indústria de publicidade é por sua vez financiada por uma meia dúzia de corporações gigantes cuja estratégia de sobrevivência e expansão é baseada na transformação das pessoas em consumidores. O sistema funciona porque adotamos, docilmente, comportamentos consumistas obsessivos, ao invés de fazer música, pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar numa piscina com nossas crianças.

Um punhado de otários consumistas

Que monte de idiotas consumistas nós somos, com nossos apartamentos de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telefone celular, assistindo o que outras pessoas fazem.

Quem precisa de uma família? No Brasil o casamento dura 14 anos e está diminuindo, nossa média é de 3,1 pessoas por moradia. A Europa está na frente de nós, 2,4 por casa. Nos EUA apenas 25% das moradias têm um casal com crianças. O mesmo na Suécia. A obesidade está prosperando, graças ao sofá, a geladeira, o aparelho de TV e as guloseimas. Prosperam também as cirurgias infantis de obesidade, um tributo ao consumismo. E você pode comprar um relógio de pulso que pode dizer quão rápido seu coração está batendo depois de andar dois quarteirões. E uma mensagem já foi enviada ao seu médico.

O que tudo isso significa? Entendo cultura como a maneira pela qual organizamos nossas vidas. Família, trabalho, esportes, música, dança, tudo o que torna minha vida digna de ser vivida. Leio livros, e tiro um cochilo depois do almoço, como todo ser humano deveria fazer. Todos os mamíferos dormem depois de comer, somos os únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho. Claro, há esse terrível negócio do PIB. Todas as coisas prazerosas que mencionei não aumentam o PIB – muito menos minha sesta na rede. Elas apenas melhoram nossa qualidade de vida. E o PIB é tão importante que o Reino Unido incluiu estimativas sobre prostituição e venda de drogas para aumentar as taxas de crescimento. Considerando o tipo de vida que estamos construindo, eles talvez estejam certos.

Necessitamos de um choque de realidade. A desventura da terra não vai desaparecer, levantar paredes e cercas não vai resolver nada, o desastre climático não vai ser interrompido (a não ser se alterarmos nosso mix de tecnologia e energia), o dinheiro não vai fluir aonde deveria (a não ser que o regulemos), as pessoas não criarão uma força política forte o suficiente para apoiar as mudanças necessárias (a não ser que estejam efetivamente informadas sobre nossos desafios estruturais). Enquanto isso, as Olimpíadas e MSN (Messi, Suarez, Neymar para os analfabetos) nos mantêm ocupados em nossos sofás. Como ficará, com toda a franqueza, o autor destas linhas. Sursum corda.

(fonte: http://outraspalavras.net/capa/cronica-em-meio-a-grande-crise-global/)

sábado, 20 de agosto de 2016

O justiceiro do Sul da Ásia

Por Vinicius Gomes Melo

Bandido bom é bandido morto”; “Tá com dó, leva pra casa”, “Direitos Humanos para humanos direitos”. Em 2014, frases de efeito tão perversas como essas tomaram as redes sociais, após a divulgação da foto de um adolescente negro não-identificado, preso pelo pescoço com uma tranca de bicicleta e no Brasil. A situação dividiu opiniões: de um lado, o grupo que entoava os motes acima; de outro, o grupo que entendia que justiçamento está bem longe de ser considerado justiça verdadeira.
A onda de vigilantismo que logo se instaurou no país foi minguando aos poucos – ou pelos menos, essas ações passaram a ser menos compartilhadas na rede. Porém, a chama do olho por olho continua acesa no íntimo de muitas pessoas.
Muitas delas provavelmente não saibam, mas um homem chamado Rodrigo Duterte compartilha da mesma crença delas, em especial no que diz respeito a traficantes de drogas. Em sua visão, a morte é o único destino para quem se envolve com o crime – ou no caso das Filipinas, para quem supostamente se envolve com o crime.
Duterte é o atual presidente das Filipinas. Desconhecido por boa parte do mundo, ele conseguiu ser eleito (de lavada) fazendo uma campanha de clara e cristalina intolerância ao crime. No dia da posse, afirmou seu “compromisso intransigente” para com o devido processo da lei. Mas deu autorização para que policiais “cumprissem seu dever” sem medo de retaliações (leia-se: matar sem reservas qualquer pessoa que possa estar envolvida com o crime) e convocou de cidadãos e cidadãs a fazer o mesmo — num ato de desprezo aos fundamentos dos direitos humanos, da democracia e das próprias leis de seu país. “Mate-os e eu lhe darei uma medalha”, ele chegou a dizer.
Não deposite esperanças em padres e grupos de direitos humanos. Eles não podem evitar a morte”, afirmou Duterte. Outras frases de efeito também envolveram afirmações de que em seis meses, 100 mil pessoas morreriam durante seu combate ao crime e que os peixes na Baía de Manila ficariam gordos de tanto se alimentar dos corpos que ali seriam despejados.
Com mais de 700 pessoas assassinadas desde então, numa taxa que subiu de 10 a 13 mortes ao dia, é bem possível que até 2021, quando seu mandato de seis anos terminará, Duterte alcance sua meta de assassinatos.

A “Lista da Morte” 

Como descreve um artigo da CNN, as fotos que rodam o mundo são de “pessoas assassinadas nas ruas ou barracos, geralmente com pés e mãos amarradas, camisas ensopadas de sangue, rostos cobertos com fita adesiva e placas cruéis dizendo quais foram seus supostos crimes” – além de sempre contar com uma multidão como platéia ao redor do cadáver.
O maior periódico do país, o Philippine Daily Inquirir, mantém desde o dia 7 de julho uma página chamada Kill List, ou a Lista da Morte, onde documenta-se todas as mortes
Lê-se na página uma nota editorial: “Desde 30 de junho de 2016, o surto de assassinatos de suspeitos de envolvimento com o crime é claro e inequívoco. Os mortos, em sua maioria, foram identificados pela polícia como suspeitos de tráfico e consumo de drogas (“tulak”). Essa Lista da Morte é uma tentativa de documentar os nomes e outras particularidades dessas mortes na guerra ao crime da administração Duterte”.
A ABS CBN News é outra rede filipina que vem monitorando as mortes extrajudiciais no país, desde a vitória de Duterte, em sua página é possível encontrar infográficos e mapas dessas mortes em todo o território das Filipinas.
A foto que ilustra o texto mostra uma esposa segurando o corpo sem vida de seu marido que, segundo a polícia local, fora morto por um grupo de justiceiros. Ela afirmou que seu marido não era um traficante de drogas, apesar de consumi-las. Segundo ela, seu marido inclusive votou em Duterte nas eleições de maio.
Vá se foder, ONU”
Obviamente, não demorou muito para que grupos locais e internacionais de direitos humanos se manifestassem junto à Diretoria Internacional de Controle de Narcóticos (INCB, sigla em inglês) e o Escritório de Crimes de Drogas das Nações Unidas (UNODC, sigla em inglês) para que elas tomassem uma atitude e fizessem pressão no governo filipino para que interrompesse a matança desenfreada.
Nós estamos pedindo para que os órgãos responsáveis da ONU condenem publicamente as atrocidades ocorrendo nas Filipinas. Esses assassinatos sem sentido não podem ser justificados como uma medida de controle à drogas”, afirmou Ann Fordham, diretora-executiva do Consórcio Internacional de Política sobre Drogas, que foi responsável pela coordenação de uma carta conjunta desses grupos.
Ainda assim, mesmo que a ONU tome alguma atitude, é provável que nada comova Duterte. Durante uma entrevista coletiva, um mês depois de ser eleito, Duterte descarregou sua raiva contra a organização após alguns jornalistas perguntarem sobre as críticas que estava recebendo da mídia internacional. “Esse é o problema, eles estão sempre aumentando o temor sobre essa ou aquela convenção da ONU. Vá se foder, ONU. Você não consegue nem resolver a carnificina no Oriente Médio, não conseguiu mover um dedo contra o massacre do povo negro na África. Calem a boca todos vocês”.
Todavia, nenhum dos jornalistas presentes relacionaram a crítica internacional a “essa ou aquela” convenção da ONU.
Os Estados Unidos seriam outro que poderiam elevar o tom com o governo em Manila – apesar de já terem “expressado preocupação” com as mortes extrajudiciais ocorrendo no arquipélago. Porém, o que verdadeiramente importa para os EUA nas Filipinas é a manter o país como seu aliado na “guerra contra o terrorismo” e como cão de guarda às pretensões chinesas no Mar do Sul da China.
Uma coisa não se pode dizer contra Duterte: ele é um homem que vive pelo que diz. Como afirmou após a vitória, ele seria um “ditador contra o mal”, além de jurar que abdicaria do poder caso fracassasse em cumprir sua promessa de exterminar a corrupção do país.
Assim como é impossível dizer se ele cumprirá as duas promessas, também não há como saber quantos corpos ficarão pelo caminho até lá.
(fonte: http://www.outraspalavras.net/ointernacionalista/2016/08/19/filipinas-justiceiros/)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Depois da Lei de Gerson, Brasil tem a Lei de Cristovam


Senador pelo DF inventa a “violência constitucional necessária”; frase para justificar impeachment lembra Jarbas Passarinho; e entra no panteão brasileiro da infâmia
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)

Quem se lembra do tricampeão Gerson fazendo propaganda de cigarro, nos anos 70? “Eu fumo Vila Rica porque gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também!”
Virou uma lenda. Um código de ética às avessas. Passados os anos, porém, a Lei de Gerson vai se tornando esquecida. Afinal, diante de tanta gente levando vantagem em tudo, seguiríamos culpando… o Gerson?



Aplicada à política, a frase lembra um pouco o pragmatismo maquiavélico: os fins a justificar os meios. Ou a esperteza macunaímica. Ou talvez o axioma de Jarbas Passarinho, “às favas os escrúpulos de consciência”.
E eis que, tantos anos depois do AI-5, o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), ex-reitor da UnB, a UnB de Darcy Ribeiro, com uma biografia atrelada à democracia, recria sua moral para justificar o impeachment:

– O impeachment é uma violência constitucional, não em relação à presidente, é uma violência dentro da Constituição que está sendo necessária para virar a página.

Algo como molhar a pontinha dos dedos para virar a página, entenderam? Uma violenciazinha na Constituição aqui, a deposição de uma presidente eleita ali…. apenas mais uma mácula, diz ele. (O senador molha mais uma vez a pontinha dos dedos.)

Conheci Cristovam como leitor da Folha, nos anos 90. Ele estava sempre na página 3, falando sobre educação. Um reitor à esquerda. (E pensar que havia quem não queria que Brasília tivesse universidades ou fábricas, para evitar greves ou “agitações”.)

Mas me lembro mesmo dele no prefácio de um livro. Ele estava um dia em uma lanchonete, em Brasília, quando viu um grupo de jovens comendo batatinhas. Só que algumas eram atiradas ao chão, para alimentar aqueles seres famintos. Cachorros? Não: crianças.

E penso hoje onde estariam essas crianças. Ou aqueles jovens. Onde estarão hoje os atiradores de batatinhas? De que lado da força? Eles defendem que espécie de princípios? Denunciam o golpe? Vestem-se de verde e amarelo, toleram alguma “violência constitucional”?

Mas Cristovam Buarque é um homem bom: ele não fuma. Nem atira a democracia ao chão. Certo? Como diria Gerson, o Canhotinha de Ouro, que fumava cigarros Vila Rica porque, dizia ele em plena ditadura, “são gostosos, suaves e não irritam a garganta”.

(fonte: http://outraspalavras.net/alceucastilho/2016/08/16/depois-da-lei-de-gerson-brasil-tem-a-lei-de-cristovam/)

Taxa de desemprego no Brasil vai passar de 13% até 2017

Quanto mais eu leio, mais me convenço: com Temer, temos tudo a temer.

Texto escrito por José de Souza Castro:

A taxa de desemprego (que o governo prefere chamar de “taxa de desocupação”) subiu neste ano e chegou ao fim de junho em 11,3%. É a maior desde que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua começou a ser feita em janeiro de 2012. E deve ultrapassar os 13% até o começo do ano que vem, conforme explica neste vídeo, no final da reportagem, a repórter especial e ex-editora de Mercado da “Folha de S.Paulo”, Ana Estela de Sousa Pinto.
avagaehsuapeqUma curiosidade: Ana Estela escreveu, juntamente com a editora deste blog, o livro “A Vaga é Sua”, que ensina aos recém-formados em jornalismo como entrar no mercado de trabalho. O livro foi publicado pela Publifolha em 2010. Desde então, os jornalistas terão que se esforçar muito mais para não fazerem parte dessa estatística de 11,3% de brasileiros desempregados.
Jornalismo é um dos setores mais atingidos pela recessão. Mas ela faz vítimas em todos os setores, em todos os Estados. Piorando, desde o início do processo presidido pelo juiz Sérgio Moro com o objetivo declarado – mas não só ele, sabe-se hoje – de punir os que praticaram corrupção na Petrobras. A empresa que, desde o início do governo petista, foi escolhida para impulsionar a economia brasileira e gerar milhões de empregos no Brasil.
O que aconteceu com a maior estatal brasileira foi um ataque sistemático para enfraquecer, tanto ela, como os presidentes Lula e Dilma, para que o PT fosse excluído do poder e o petróleo do pré-sal incluído no portfólio das grandes petroleiras internacionais.
Hoje isso já ficou bem claro, com o início da venda de partes do pré-sal pelo governo Michel Temer. E com 1,4 milhão de pessoas cortadas na folha de pagamento das indústrias só no segundo trimestre deste ano.
E a Petrobras, ela não estava falida por causa da corrupção? Por causa, ainda, do grande endividamento e do baixo preço do petróleo? Agora que já se apossou da empresa, o governo interino trata de desmentir. No dia 13 de julho, a Agência Petrobras publicou o seguinte:


“O Brasil deve apresentar, em 2017, o maior crescimento na produção de petróleo entre as nações que estão fora da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Segundo relatório divulgado pela entidade nesta terça-feira (12), serão 3,37 milhões de barris por dia no fim do próximo ano.
Todo esse avanço deve ser proporcionado por sete novas plataformas da Petrobras que começam a operar no próximo ano, todas elas na bacia de Santos. A avaliação é de que Brasil e Canadá apresentarão os melhores desempenhos fora da Opep.
O Brasil ainda responderá por metade de toda a expansão da América Latina. Gasolina e óleo diesel estão entre os itens com maior potencial de produção, e a expectativa da Opep é de que esse aumento seja usado para abastecer a indústria e segmentos ligados a transporte.
O relatório ainda aponta que, em 8 de maio, a produção de petróleo bruto, a partir de campos do pré-sal, ultrapassou 1 milhão de barris de petróleo por dia – essa foi a primeira vez que esse volume foi registrado.”

Então, está tudo bem, agora… Mas é preciso convencer disso os próprios empregados da Petrobras, muitos deles em greve. O Informativo FUP, da Federação Única dos Petroleiros, datado de 16 deste mês, traz editorial comentando que no mesmo dia 12 de julho, quando a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o Projeto de Lei 4567/16, que abre o pré-sal ao controle estrangeiro, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo divulgou relatório mensal no qual afirma que o Brasil alcançará em 2017 o maior aumento de produção de petróleo fora da Opep, atingindo 3,37 milhões de barris por dia. Segundo o estudo, nós estamos na direção contrária à das outras nações, cuja média diária do aumento de extração deverá ser reduzida à metade no próximo ano. A Opep também apontou o Brasil como o único país da América Latina que aumentará a produção em 2016. E acrescenta:

“Tudo graças aos excelentes resultados operacionais da Petrobrás, que, a despeito dos seguidos recordes de produção, continua sendo dilapidada por seus gestores e está na iminência de perder as garantias legais que lhe permitem participar de todos os campos do Pré-Sal e ser a única operadora destas reservas. Esse é o objetivo do governo interino de MiShell (sic)Temer, que corre para aprovar o PL 4567, enquanto já articula novas mudanças nas regras do Pré-Sal, inclusive um leilão a toque de caixa para o primeiro trimestre de 2017, quando pretende entregar às multinacionais campos vizinhos aos que já estão sob a operação da Petrobras.”

Como se vê, a perspectiva de aumento de desemprego no Brasil parece ainda pior do que o previsto por Ana Estela. Porque, sem a participação obrigatória da indústria brasileira na exploração de nosso petróleo, as multinacionais vão criar empregos em seus países de origem, não aqui. Simples assim.

(fonte: https://kikacastro.com.br/2016/08/19/taxa-de-desemprego-no-brasil-vai-passar-de-13-ate-2017/#more-12901)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A internet e as artimanhas do pensamento fácil

“Pensamento fácil”, que ameaça dominar as redes sociais, é o modo difuso como raciocina o indivíduo deste começo de século. É a renúncia antecipada — e rancorosa — a qualquer complexidade. É, por isso mesmo, muito mais conformista que revolucionário
Por Fran Alavina 
 
Este texto amplia e aprofunda o debate aberto no artigo “Notas sobre a esquerda ruim de internet”. Nasce de um duplo objetivo que, todavia, possui uma única fonte: os comentários, debates e reações que ao texto citado.

O primeiro dos objetivos é reafirmar o núcleo central das primeiras “Notas”, uma vez que tal núcleo foi escamoteado, algumas vezes, por um certo “entusiasmo difuso” que hoje é a aura da tecnologia virtual. Tal entusiasmo não faz acepção de posição política, e nisso está seu caráter perverso. Ele não é nem de direita, nem de esquerda. Pode ser encontrado em bons leitores de Gramsci, ou em indivíduos facistóides. É este entusiasmo febril que impede o começo da crítica, de modo que qualquer um que a inicie é rapidamente taxado de atrasado, retrógado e reacionário. A lógica dessas taxações é clara: quem não adere de “corpo e alma” ao novo não pode ser outra coisa senão que “atrasado”, “retrógrado” e todos os outros adjetivos que possam denotar sentido negativo ao que se considere velho. Este entusiasmo é a expressão mais acabada de uma época que, acossada pelo consumismo, astuto tem uma sede insaciável por tudo que se apresente como novo. Que um mesmo sentimento (o entusiasmo difuso) dirigido a um mesmo objeto (a tecnologia virtual) possa ser encontrado entre conservadores e progressistas, a nós que nos posicionamos à esquerda deveria, no mínimo, ser alvo de uma atenção mais demorada.

Por isso, afirmamos que ao criticarmos os efeitos danosos para a esquerda da aceitação da “naturalização do virtual”, demonstrando uma das lógicas de operação da internet, expressa mais particularmente em suas redes sociais, em nenhum momento propomos que se deva abandonar a internet como lugar de realização do debate político. Em nenhuma parte da argumentação indicamos que devêssemos voltar a datilografar nossos textos, divulgar nossos panfletos e artigos apenas com a ajuda de mimeógrafos, ou ainda nos comunicarmos em código morse. A essência de nossa crítica não estava em apontar o desuso, o abandono dos meios virtuais, mas pensarmos os usos para não cairmos em uma prática mecânica e ingênua. Uma vez que no campo político, sabemos, não há espaço para ingenuidades. Nesse sentido, buscou-se iniciar um debate que possa fomentar uma crítica à esquerda da “naturalização do virtual”.

Todavia, para que esta crítica possa ser feita é preciso reconhecer, em primeiro lugar, que não podemos permanecer em um uso meramente “panfletário” dos meios virtuais. Isto é, imaginar que possamos atuar no virtual sem que essa atuação não retroaja sobre nós. Pois como anteriormente afirmamos, independentemente de nossas posições políticas, o modus operandi do virtual segue à revelia de nossos desejos e vontades. Movimentamos-nos no espaço virtual não segundo o nosso absoluto arbítrio, mas segundo as condições que são previamente dadas e estabelecidas. Em suma, propomos uma prática que seja seguida do pensamento crítico, que não seja cega, que não caia nas armadilhas do espontaneísmo e do voluntarismo. Se é grande nosso afã de lutar e mudar a ordem das coisas, agarrar-se às facilidades oferecidas sem desnudar suas condições não apenas nos será muito custoso, como poderá diminuir nossas capacidades críticas sem as quais não poderemos seguir.

O segundo dos objetivos é dar continuidade ao exercício crítico que iniciamos, desnudando um aspecto que fundamentou parte das reações que se seguiram às Notas I. Tal aspecto é o que podemos denominar (e mesmo denunciar) de pensamento fácil. Todavia, antes que possamos defini-lo mais acuradamente, devemos recordar um elemento que torna propícia a sua expansão.

Com efeito, recorde-se, uma vez mais, que a internet não é um simples meio de comunicação. Seu uso retroage sobre nós, nos modifica, altera nossas capacidades, e se não nos apercebemos destas alterações é justamente porque o discurso da “naturalização do virtual” faz com o virtual nos pareça, de fato, natural. Ademais, esta naturalização difusa do virtual e este retroagir dos seus usos sobre nós é completamente diferente daquilo com ocorria antes com mídias como o rádio e a tv. Nestes últimos, estamos destinados a ser meros receptores; no virtual, porém, tudo se passa em um nível babélico de interação, no qual, em tese, todos têm o mesmo direito de fala, todos podem ser ao mesmo tempo “emissores” e “receptores”. Se todos podem mostrar-se, todos podem ser vistos: se todos podem falar, todos podem ser ouvidos. Ocorre, todavia, que se todos falam ao mesmo tempo, ninguém se ouve; se a visão é chamada a olhar para vários lugares ao mesmo tempo, ela não fixa o olhar em nenhum ponto.

Ora, mas se os pontos dos “emissores” e “receptores” não são mais fixos, porém fluidos, a velocidade e o número de informações e notícias crescem infinitamente. Os fatos não pertencem mais apenas àqueles que os narram, isto é, aos “emissores”, pois para que circulem devem ser replicados, “curtidos”. Assim, o que se narra, se expõe, se faz ver, para o bem ou para mal, pertence a todos aqueles que com um simples click tomam parte de tudo. Se segundo o discurso da liberdade e da criatividade do indivíduo empreendedor “você pode ser seu próprio patrão”, no virtual tem prevalecido uma lógica semelhante, de você estar livre para ver e ouvir o que quiser, e gerar você mesmo a própria informação, de acordo, claro, com sua criatividade. Desse modo, é forçoso admitir que a internet repõe no campo virtual, aos seus usuários, aquilo que a lógica do livre mercado impõe cotidianamente ao mundo.

Ora, a lógica meritocrática neoliberal que diz aos indivíduos que seus sucessos profissionais dependem exclusivamente de seus esforços opera da mesma forma no virtual. Na Babel em que todos podem falar ao mesmo tempo, irão se sobressair aqueles que se fizerem mais vistos, claro que por seus próprios meios. Todavia, como todos podem falar, o número de coisas a serem vistas e ouvidas é infindável, de tal modo que para que se possa tomar parte neste circuito que se quer infinito: tudo deve ser feito segundo o critério da facilidade. Tudo deve ser fácil de ver, de ouvir, de interagir. A time line da rede social será melhor vista, isto quer dizer, mais rapidamente vista, quanto mais fáceis forem as coisas que se apresentem. Nesta faceta, a internet mostra-se muito mais conformista que revolucionária. E todos aqueles que objetivam ganhar e aumentar visibilidade devem assim proceder, não importa a direção política que sigam. É esta mesma lógica que antes se fazia presente nos hábitos alimentares através da expansão das redes de alimentação fast food, e que agora enseja os usos dos aplicativos, estes últimos com as mais diversas utilidades. Tudo deve estar ali, à mão: rápido e fácil.

A lógica da facilidade que antes orbitava nas condições objetivas da existência, como, por exemplo, na alimentação, com a expansão do virtual, o critério da facilidade, par inseparável da rapidez, passa aos bens simbólicos e ao circuito afetivo que lhe sustenta. Acostumando-nos, por meio do hábito excessivo, com o critério da facilidade como algo natural, tendemos a expandir este critério para tudo. Qualquer ato que possa demandar um maior tempo e esforço é, de imediato, rechaçado, posto que se identifica com a encarnação da chatice. Assim, são os nossos desejos, afetos e pensamentos que também devem se acomodar ao critério da rapidez e da facilidade.

Esta acomodação sustenta as alterações que nos lançam diretamente para o vislumbre de um novo tipo de comportamento, um novo modo de ser que deve conformar-se a uma nova ordem das coisas iniciada pela expansão do virtual. Este modo de comportar-se indica que a frequentação do virtual deixa de ser ela mesma um hábito, o hábito de usarmos algo hodiernamente, para se transformar em criadora de novos hábitos. Um destes hábitos é o pensamento fácil. O pensamento fácil é, em primeiro lugar, a nova forma prevalente de interação, com o mundo e consigo mesmo. Sendo forma não é apenas um modo de concepção, mas também de expressão. O pensamento fácil se impõe cada vez mais como o “preço a ser pago” pela velocidade da informação. Ele é uma das características mais exemplares do modo como os usos do virtual retroagem sobre nós. O pensamento fácil é o modo difuso como raciocina o indivíduo deste começo de século. É a renúncia antecipada a qualquer resquício de complexidade. Pois esta última implica demora, esforço, e tais coisas são abominadas como sendo os antônimos absolutos da facilidade. Conformando-se aos tempos informacionais, o pensamento fácil abole a barreira entre o simples e o simplório. Trabalha com definições curtas, como na lógica do estabelecimento do número máximo de caracteres.

Ante o pensamento fácil não pode haver resquícios, resíduos. Tudo deve estar limpo: como uma imagem nítida, sem falhas. Aquilo que demora por se fazer entender é identificado como que possuindo uma falha congênita, por isso mesmo deve ser excluído, marginalizado. É o resto que entreva a interação. Ao se conformar ao informacional, o pensamento fácil demanda um tipo de transparência absoluta dos enunciados, que não devem possuir qualquer opacidade, devem ser privados de qualquer sentido que não seja o aparente. Desse modo, também a linguagem, as capacidades expressivas são alteradas pelo critério da brevidade, que é a regra linguística do pensamento fácil. As palavras cedem lugar às suas abreviações, tendendo a tornar-se apenas siglas. O alargamento da realidade que tanto é atribuído ao virtual, em verdade, é feito de encurtamentos. Aos indivíduos deve-se diminuir qualquer trabalho de elaboração, portanto sua autonomia.

Exemplos do hábito do pensamento fácil não faltam. São os emoticons que nos oferecem um modo pronto da expressão das nossas emoções; é a “# somos todos (…)” que passou a ser nossa forma mais elaborada de nos solidarizarmos, e que por tratar-se de um vínculo identitário imediatista, na maioria das vezes nos impede de reconhecer melhor a causa dos problemas com os quais nos solidarizamos; é a ojeriza aos textos longos, o que antes era um mero parágrafo de seis linhas, hoje chamamos de “textão”. Escrevê-los tornou-se até um ato revolucionário, pois ele é sempre precedido pelo brado: “Vai ter textão, sim!”.

O mundo ao qual nos relega o pensamento fácil é uma realidade de resumos, de bens simbólicos prontos. Todavia, o pensamento fácil, quando desnudado, nos posiciona ante um denso paradoxo: a tecnologia mais complexa é justamente aquela que pode nos impor uma visão simplista, empobrecida da realidade, uma realidade “pré-fabricada”, como as “bolhas” que se formam das relações das redes sociais. Ora, o pensamento fácil enseja algo ainda mais negativo. Por acomodar as coisas à superficialidade simplista, ele contribui para uma visão naturalizada dos problemas histórico-sociais. Estes não são compreendidos conforme a multiplicidade de fatores que os causam, pois o pensamento fácil não consegue acessar contradições. Ele os concebe segundo uma causa única, em geral, aquela que pode reunir maior passionalidade, que pode congregar em torno de si afetos fortes, que não demandem um tempo de elaboração muito longo.

Assim, não é simples coincidência que os grupos mais fascistóides que se mostram sem receios hoje nas ruas tenham antes se articulado bem nas redes sociais. Estas oferecem todas as condições para que uma causa social (a corrupção, por exemplo) possa ser concebida segundo o pensamento fácil. Por isso, a corrupção é sempre apresentada como culpa de uma só pessoa, de um só partido, de uma só ideologia. O pensamento fácil trabalha com generalizações, e por isso é propício à criação dos bodes expiatórios. Veja-se o quanto é comum o achincalhamento da vida privada dos sujeitos. Sabemos que os bodes expiatórios de hoje já foram escolhidos, só não sabemos ainda se serão sacrificados.

Veja-se, pois, quanto o pensamento fácil enseja comportamentos de tipo fascista. Ou se é contra, ou a favor: “simples assim”! Ele, o pensamento fácil, simplifica a realidade, reduzindo a complexidade das coisas aos discursos daqueles que dizem serem as coisas complexas. No varejo das facilidades, os problemas são rapidamente desnudados, para que depois, pela vontade de um, encontrem resolução. Na maioria das vezes, o sujeito escolhido para apontar as resoluções é o medíocre vestido com trajes de herói. Este último é sempre um sujeito de ação, uma vez que a simplicidade do pensamento fácil é usada para impelir uma ação imediata, a ação que põe fim à “bagunça” da multiplicidade, impondo a sobriedade da ordem. A ordem que subjaz em todo pensamento fácil, pois onde tudo está antecipadamente posto em seu devido lugar não há espaço para a desordem, que é confundida com a multiplicidade. Para os desnudamentos dos problemas já temos os intelectuais de youtube. Agora, a massa fascistóide busca o líder. Em verdade, já o encontraram, mas como sua mediocridade oratória é gritante, seu poder de convencimento e de adesão é baixo. Todavia, não se devem subestimar as capacidades do pensamento fácil, pois seu grau de difusão é crescente, expande-se junto com o virtual.

Resta-nos perguntar se nós, que estamos à esquerda, vamos endossar a acomodação ao pensamento fácil, nós que sempre buscamos desmascarar as contradições que perfazem a desigualdade do mundo, portanto que opomos a complexificação à naturalização do âmbito histórico-social. Se também nós nos acomodarmos ao pensamento fácil, cada vez mais perderemos a capacidade de realizar a crítica do presente, pois enquanto nos dão a facilidade como regra, o mundo se complexifica, nos pedindo cada vez mais o forjar de alternativas novas. Estas demandam sempre esforço, pertinácia e tempo. Um tempo que não é o das facilidades e um pensamento que não se contenta com simplismos. O desafio é, então, atuar no virtual sem se deixar seduzir pelo pensamento fácil, nem endossá-lo.
(fonte: http://outraspalavras.net/uncategorized/a-internet-e-as-artimanhas-do-pensamento-facil/

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Agrotóxicos deixam rastro de câncer e morte pelo interior de São Paulo

Estado consome 4% da produção mundial e índices de doenças e mortes bem acima das médias estaduais


Cidades médias e pequenas do interior do estado de São Paulo, localizadas em meio a grandes extensões de terra com monocultura da cana e banana, entre outras, apresentam taxas de incidência de malformações congênitas e diversos tipos de câncer acima da média estadual.

Em Ribeirão Corrente, na região de Franca, o índice de malformações é 26 casos para grupos de 100 mil nascidos vivos – mais de três vezes maior que a do estado, que é de 8.2. Em Sandovalina, na região do Pontal do Paranapanema, onde há ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o índice é 21. Na cidade de São Paulo, totalmente urbanizada, a taxa é de 9.5.

"Em Franca, uma mulher que engravida tem 50% a mais de chances de ter um filho com malformação do que uma moradora de Cubatão, por exemplo. E nem precisa ser agricultura. Está comprovado por estudos que em 70% dos casos de malformação congênita as causas são ambientais", diz o defensor público Marcelo Novaes, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo em Santo André, no ABC Paulista.
A incidência de câncer também é alta na zona rural. Em Bento de Abreu, na região de Araçatuba, há 18 óbitos por câncer cerebral para cada 100 mil habitantes. A taxa estadual é 6.6. "Essas cidades pequenas são fronteira entre o urbano e rural. Você sai da igreja matriz e já está numa plantação de cana, onde há pulverização aérea ou por tratores", diz o defensor.

Ainda segundo ele, as taxa de mortes causadas por câncer de fígado é de 6.94 por 100 mil pessoas no estado, de 7.43 na capital paulista e de 20 em Turmalina, na região de São José do Rio Preto. Quase três vezes mais. "São cidades pequenas, com menos de 20 mil habitantes. Temos uma tragédia no interior paulista. As pessoas estão morrendo pelo veneno. Se antes se fazia excursão para o Paraguai, para compra de muamba, ou para Aparecida, para rezar na catedral, hoje se faz aos centros oncológicos", compara.
Novaes se baseia no Observatório de Saúde Ambiental, uma plataforma de dados completos sobre utilização de agrotóxicos no estado, os tipos, as regiões, as culturas onde são empregados, bem como grupos populacionais afetados por doenças reconhecidamente desencadeadas pela exposição a esses produtos. O site interativo, que permite a criação de mapas em que é possível visualizar a distribuição das informações sobre o território paulista, foi desenvolvido por professores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

"O mapa mostra o rastro de câncer em cidades em torno da via Anhanguera afora. Basta checar", aponta Novaes, destacando que a Secretaria Estadual de Saúde, porém, nega todas essas evidências.
Conforme ressaltou ainda, o problema das pequenas cidades de São Paulo se repete no Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Paraná e outros estados com grandes áreas onde o agronegócio se instalou. Por isso, conforme acredita, agrotóxicos não deve ser tema limitado aos ambientalistas, e sim de conselhos tutelares, de defesa dos direitos da pessoa com deficiência, das mulheres e de toda a sociedade. "Precisamos fazer uma análise conjuntural desse projeto assassino que está em gestão em nosso país", alerta.

Sistema excludente

Para Marcelo Novaes, a realidade dos agrotóxicos constitui a espinha dorsal de um "sistema excludente e prospectório da vida e da natureza". E o avanço de projetos nocivos como o PL do Veneno, o PL 3.200/15, ocorre numa perspectiva não de mudanças, mas de retrocessos. "No arcabouço jurídico, há o direito dos códigos que conversa com os poderosos e o direito da prática que oprime os oprimidos, ou seja, a população. A engenharia disso é o ilegal que para os poderoso passa a ser legal", diz.

"É por isso que são autorizados o corte de árvores centenárias, num prejuízo ambiental irreversível, sem um plano de manejo. É por isso que a mineradora Samarco matou um rio, as praias e continua com todo o vazamento; que há falta água em São Paulo enquanto a Sabesp paga dividendos aos acionistas, que o Código Florestal tão discutido com a sociedade está sendo esculachado aqui em São Paulo, fora a privatização de áreas florestais, que permite a extração de madeira. E a população se vê diante da ameaça crescente dos agrotóxicos", aponta.

"O ilegal passa a ser legal e há apropriação do bem público pelo privado num processo de mudança das regras do jogo em pleno jogo. É como se, num jogo de xadrez, o cavalo passasse a ser movimentado como se fosse um bispo, uma torre. A gente vai ter de encarar isso."

Marcelo Novaes participou da audiência pública promovida ontem (12), em São Paulo, pelo mandato do deputado federal Nilto Tatto (PT-SP). O parlamentar integra a comissão especial da Câmara que analisa o PL 3.200/2015.
(fonte: https://www.brasildefato.com.br/2016/08/13/agrotoxicos-deixam-rastro-de-malformacoes-cancer-e-morte-pelo-interior-de-sao-paulo/)

sábado, 13 de agosto de 2016

Deus e o Diabo na Terra de Tio Sam?


Desconfie das análises simplórias, segundo as quais Hillary é menos perigosa que Trump. O mais rico é ele; mas ela tem a campanha mais cara e o apoio do “establishment” — inclusive da indústria de armas
Por Hugo AlbuquerqueEdemilson Paraná

As eleições para a presidência dos Estados Unidos em 2016 agitam o mundo. Não apenas por decidirem os rumos do país mais poderoso da Terra, mas também pelas forças supostamente antagônicas em disputa. Hoje, a novidade é a ascensão da direita populista via Donald Trump, o candidato ungido dos republicanos, em uma disputa pintada em tons maniqueístas contra a ex-senadora, ex-primeira dama e ex-secretária de Estado Hillary Clinton. Existe um esquematismo maniqueísta pronto, não muito diferente de 2008. Mas o polo forte da questão, desta vez, é o medo de Trump e não a esperança em um Obama.
Há oito anos, nos escombros da Era Bush, progressistas do mundo inteiro ficaram eufóricos com a possibilidade de Obama mudar os rumos dos Estados Unidos e do mundo. Obama tinha os jovens e o apoio de uma novíssima esquerda norte-americana, articulada nas redes – e, também, em rede, fazendo crowdfundings enquanto subvertiam o jogo partidário clássico. Obama veio e venceu, mas nem precisamos dizer que sua presidência esteve, para usar aqui um eufemismo, longe de promover as mudanças que prometeu.
Passados oito anos, os rumos dos EUA continuam em suspenso, com uma sociedade mais polarizada, esgarçada e desesperada do que nunca. Se o país não faliu, tampouco sua posição no mundo e as relações internas foram reformadas. Obama, um Nobel da Paz, foi o presidente americano a estar mais tempo em guerra durante os oito anos de seu mandato, o que não é um fato trivial. A tensão racial chega às raias da loucura, como denunciam inúmeros movimentos, dentre eles o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), algo tristemente irônico de ter acontecido sob o governo do único presidente negro da história daquele país.
Seus adversários, os republicanos passaram todos esses anos varrendo a era Bush para o tapete, fazendo uma oposição à direta – e se apoiando em movimentos mais à direita ainda – enquanto ganhavam posições valiosas. Hoje, o partido de Trump tem maioria no congresso norte-americano, entre os governos estaduais e legislativos estaduais.
Nada a espantar, portanto, que as últimas primárias republicanas foram as maiores em números absolutos, da história do partido — E também uma das raras primárias na qual o comparecimento republicano às urnas foi superior ao dos democratas, ainda que por pequena vantagem: mais precisamente, foram 31,1 milhões de republicanos contra 30,5 milhões dos democratas. Levando em consideração que, pelo menos há quatro anos atrás, os republicanos tinham apenas 30 milhões de eleitores registrados e os democratas 43 milhões, os números de participação nas urnas nas primárias deste ano são um sinal melhor ainda para o partido de Trump.
Hillary e Trump venceram no voto popular e também entre os delegados, em primárias que a despeito da presença maciça são, à imagem das eleições presidenciais, eleições indiretas. Mas para cada uma das vitórias teve, para seus partidos, significados opostos: Hillary marcou o triunfo da estrutura partidária e a derrota de candidaturas dissidentes como a de Bernie Sanders, enquanto com Trump ocorreu o exato inverso com a vitória de um outsider.
Sim, Hillary foi beneficiada por um inegável favorecimento da direção nacional democrata durante processo de escolha. Longe de ser teoria da conspiração, isso foi comprovado no episódio do vazamento de milhares de e-mails do Partido Democrata – mas o triunfo da burocracia democrata foi tamanho que a revelação do escândalo, apesar de ter levado à renúncia da presidente do partido, Debbie Wasserman Schultz, não impediu sequer que Bernie pedisse votos para Hillary, o que lhe valeu uma vaia de seus apoiadores.
No mais, a ex-presidente democrata continuará na campanha nacional de Hillary e em vez de debater o processo viciado de escolha, o escândalo ficou por conta da acusação de que hackers ligados ao governo russo teriam invadido os computadores do diretório nacional democrata – valendo até teorias de que Putin e Trump estariam juntos, enquanto a questão da fraude interna desaparecia convenientemente.
Enquanto isso, Trump simplesmente atropelou a cúpula do seu partido, afundou candidatos como Jeb Bush, filho e irmão de dois ex-presidentes, e mesmo de figuras como Ted Cruz, senador texano ligado ao Tea Party, movimento da extrema-direita americana. Jeb Bush, por sinal, foi forçado a desistir pelas acachapantes derrotas no início das primárias embora arrecadasse quase o dobro de Trump. Por sinal, perfil e quantidade de arrecadação e a característica de campanha são elementos centrais para entender o xadrez eleitoral.
Vejamos como isso se expressa no financiamento de campanha.
Trump gastou 76 milhões de dólares nas primárias, o que o fez ser o quarto republicano em gasto de campanha – e o sexto no total, uma vez que ele gastou menos do que Hillary e, pasmem, Bernie Sanders. Para se ter uma ideia, cada voto de Trump custou 5,42 dólares, o que representa uma eficiência muito maior do que a de seus adversários republicanos ou mesmo que Hillary (13,15 dólares/voto) e Sanders (16.85 dólares/voto). Metade dos recursos de Trump vieram de sua fortuna pessoal, mas a outra metade tem mais dinheiro de doadores comuns do que de corporações. Usando frases de efeitos, provocando setores antagônicos e nunca passando desapercebido, Trump seguiu o velho script do “falem mal, mas falem de mim” e, assim, atraiu para as primárias republicanas um eleitor que, no máximo, só iria às urnas nas eleições presidenciais propriamente ditas. Em resumo, Trump é um fenômeno político.
Por sinal, ao contrário do que o imaginário mais elementar pode nos fazer crer, o socialista Bernie Sanders não teve uma campanha barata nem teve dificuldades para arrecadar. Ele levantou US$ 228 milhões, gastando 97% desse valor, sendo que 60% disso veio de pequenos doadores. Setores muito parecidos com os quais elegeram Obama há oito anos, que desta vez financiaram um candidato mais orgânico.
Hillary, por seu turno, gastou 212 milhões de dólares nas últimas prévias, mas sua nomeação a fez chegar a 374 milhões nos primeiros dias de agosto, enquanto Trump ainda só ameaçava chegar perto dos 100 milhões. Até agora, a candidata democrata gastou 220 milhões, considerando as primárias e a pré-campanha. Contudo, seu perfil de financiamento é oposto ao de Bernie: basicamente, 19% das doações para a campanha de Hillary em 2016 são de pessoas comuns, o resto fica por conta de corporações e grandes grupos.
Portanto, a aproximação de Hillary em relação a Bernie não se deve unicamente a uma tentativa de unificação da base democrata para o pleito – sobretudo porque as pesquisas apontam que, ainda que resignadamente, haverá uma alta transferência de votos de Bernie para ela –, mas sim conseguir recursos. Dinheiro é vital para uma campanha de um país como os EUA, sobretudo depois que a Suprema Corte liberalizou completamente o financiamento privado de campanha.
Uma análise fria dos números, portanto, mostra algo muito além de uma polaridade romântica: nem Hillary é uma pobre candidata liberal em guerra contra o poder econômico, nem Trump é o o candidato preferencial das grandes corporações — o que não o torna, por óbvio, o outsider que ele se vende. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra, ambos os candidatos representam vias conservadoras diferentes, embora Trump encarne um personagem populista e, afinal de contas, seja um rompimento na forma como o mando americano se exerce dentro de suas fronteiras e fora delas — talvez por isso, atraía eleitores ciosos por mudanças, sejam elas quais forem.
Bernie Sanders, o único candidato dentre os grandes que realmente estava fora do projeto tradicional, se rendeu a uma das principais tentações atuais da esquerda radical em vários lugares do mundo: contemporizar, diante da crise e desagregação política e social, com um pragmatismo que não encontra respaldo na velocidade acelerada da realidade presente. Ou melhor, ele optou pelo melhor discurso em vez de seguir um caminho independente. Dirão que não havia escolha dentre as coordenadas dadas, mas o fato é que nunca há.
No cômputo geral das pesquisas recentes, Hillary está ligeiramente à frente de Trump no voto popular e ainda à frente nos estados, muito embora ela ainda não tenha os votos necessários no colégio eleitoral para vencer em virtude do empate técnico em muitos estados. Ainda, a candidatura do Partido Libertário (ultra-neoliberal), encabeçada por Gary Johnson – um ex-governador do Novo México, pelo Partido Republicano, e hoje executivo de corporação de maconha medicinal – tem mais votos do que se poderia supor, tirando, inclusive, mais votos de Hillary do que de Trump. Jill Stein, candidata do Partido Verde, também poderá tirar votos preciosos de Hillary ao se lançar com uma plataforma progressista que pode atrair eleitores de Bernie.
Ainda que seja cedo para afirmar que Hillary irá perder, como profetizou o cineasta Michel Moore, sua análise tem razão em alguns fatos: essa eleição se definirá em certos estados chave em torno do Meio Oeste, sede da falida indústria automobilística americana, os quais apesar de uma tendência tênue a votar nos democratas, possuem governadores republicanos na sua maioria e, inclusive, questões de classe ligadas à emergência social da antiga classe média industrial — em suma, votaram baseados em necessidades imediatas.
A pergunta de um milhão de dólares, muito mais importante do que quem vencerá, é como o vencedor vai levar. O fantasma de uma vitória de pirro é inegável. Hillary, é certo, dificilmente superaria Trump caso não fosse capaz de arrecadar mais do que ele, mas o fato é que consegue — a questão é saber se será o suficiente, mas não se sabe a que custo.
Se a manutenção da postura imperial americana é certa, ainda não são conhecidos os exatos termos em que isso vai se dar sob o novo presidente. Ainda que o passado muito remoto de Hillary pudesse sugerir que ela é o Bem numa disputa contra o Mal, o fato é que os compromissos que ela terá de firmar, às portas fechadas, com grandes corporações doadoras entrarão em conflito com os que ela assumiu publicamente, antevendo uma crise de legitimidade no horizonte – em um Congresso que possivelmente lhe será hostil. Do lado de Trump, a questão é menos onde os ventos do financiamento o vão levar, e mais sobre os acordos que ele fará com o establishment político americano na sua agenda gatopardiana, de mudar tudo para que nada mude.
O futuro presidente americano terá dificuldades imensas para reconciliar o país e manter a hegemonia global, mas dependendo da natureza da crise que se instale no país, teremos muito mais do que um problema doméstico de uma potência. A própria possibilidade – ou necessidade – de buscar uma alternativa ao poder americano pode ser comprometida em meio ao caos.
Edemilson Paraná, pesquisador-bolsista no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mestre e doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), é autor do livro “A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional” (Ed. Insular, 2016).
Hugo Albuquerque é jurista, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e editor da Autonomia Literária.

(fonte: http://outraspalavras.net/capa/deus-e-o-diabo-na-terra-de-tio-sam/)