Entrevista concedida em agosto de 2011 à repórter Joana Tavares, do
Brasil de Fato. Vale a pena ler.
“O socialismo é uma doutrina triunfante”
Aos 93 anos, Antonio Candido explica a sua
concepção de socialismo, fala sobre literatura e revela não se
interessar por novas obras
por Joana Tavares, Brasil de Fato, 08/08/2017
Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo
sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para o
Brasil.
Considerado um dos principais intelectuais do país, ele mantém a
postura socialista, a cordialidade, a elegância, o senso de humor, o
otimismo.
Antes de começar nossa entrevista, ele diz que viveu praticamente
todo o conturbado século 20. E participou ativamente dele, escrevendo,
debatendo, indo a manifestações, ajudando a dar lucidez, clareza e
humanidade a toda uma geração de alunos, militantes sociais, leitores e
escritores.
Tão bom de prosa como de escrita, ele fala sobre seu método de
análise literária, dos livros de que gosta, da sua infância, do começo
da sua militância, da televisão, do MST, da sua crença profunda no
socialismo como uma doutrina triunfante. “O que se pensa que é a face
humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele”, afirma.
Brasil de Fato – Nos seus textos é perceptível a intenção de
ser entendido. Apesar de muito erudito, sua escrita é simples. Por que
esse esforço de ser sempre claro?
Antonio Candido – Acho que a clareza é um respeito
pelo próximo, um respeito pelo leitor. Sempre achei, eu e alguns
colegas, que, quando se trata de ciências humanas, apesar de serem
chamadas de ciências, são ligadas à nossa humanidade, de maneira que não
deve haver jargão científico.
Posso dizer o que tenho para dizer nas humanidades com a linguagem
comum. Já no estudo das ciências humanas eu preconizava isso. Qualquer
atividade que não seja estritamente técnica, acho que a clareza é
necessária inclusive para pode divulgar a mensagem, a mensagem deixar de
ser um privilégio e se tornar um bem comum.
O seu método de análise da literatura parte da cultura para a
realidade social e volta para a cultura e para o texto. Como o senhor
explicaria esse método?
Uma coisa que sempre me preocupou muito é que os teóricos da
literatura dizem: é preciso fazer isso, mas não fazem. Tenho muita
influência marxista – não me considero marxista – mas tenho muita
influência marxista na minha formação e também muita influência da
chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por
socialistas.
Parti do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento
sociológico para ver como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo
de uma obra literária.
No começo eu era um pouco sectário, politizava um pouco demais minha
atividade. Depois entrei em contato com um movimento literário
norte-americano, a nova crítica, conhecido como
new criticism. E
aí foi um ovo de colombo: a obra de arte pode depender do que for, da
personalidade do autor, da classe social dele, da situação econômica, do
momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua
própria individualidade.
Então a primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra.
Isso ficou na minha cabeça. Mas eu também não queria abrir mão, dada a
minha formação, do social.
Importante então é o seguinte: reconhecer que a obra é autônoma, mas
que foi formada por coisas que vieram de fora dela, por influências da
sociedade, da ideologia do tempo, do autor. Não é dizer: a sociedade é
assim, portanto a obra é assim. O importante é: quais são os elementos
da realidade social que se transformaram em estrutura estética.
Me dediquei muito a isso, tenho um livro chamado “Literatura e
sociedade” que analisa isso. Fiz um esforço grande para respeitar a
realidade estética da obra e sua ligação com a realidade. Há certas
obras em que não faz sentido pesquisar o vínculo social porque ela é
pura estrutura verbal. Há outras em que o social é tão presente – como
“O cortiço” [de Aluísio Azevedo] – que é impossível analisar a obra sem a
carga social.
Depois de mais maduro minha conclusão foi muito óbvia: o crítico tem
que proceder conforme a natureza de cada obra que ele analisa. Há obras
que pedem um método psicológico, eu uso; outras pedem estudo do
vocabulário, a classe social do autor; uso. Talvez eu seja aquilo que os
marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco
eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de
obras.
Teria um tipo de abordagem estética que seria melhor?
Não privilegio. Já privilegiei. Primeiro o social, cheguei a
privilegiar mesmo o político. Quando eu era um jovem crítico eu queria
que meus artigos demonstrassem que era um socialista escrevendo com
posição crítica frente à sociedade. Depois vi que havia poemas, por
exemplo, em que não podia fazer isso. Então passei a outra fase em que
passei a priorizar a autonomia da obra, os valores estéticos. Depois vi
que depende da obra.
Mas tenho muito interesse pelo estudo das obras que permitem uma
abordagem ao mesmo tempo interna e externa. A minha fórmula é a
seguinte: estou interessado em saber como o externo se transformou em
interno, como aquilo que é carne de vaca vira croquete. O croquete não é
vaca, mas sem a vaca o croquete não existe. Mas o croquete não tem nada
a ver com a vaca, só a carne. Mas o externo se transformou em algo que é
interno. Aí tenho que estudar o croquete, dizer de onde ele veio.
O que é mais importante ler na literatura brasileira?
Machado de Assis. Ele é um escritor completo.
É o que senhor mais gosta?
Não, mas acho que é o que mais se aproveita.
E de qual o senhor mais gosta?
Gosto muito do Eça de Queiroz, muitos estrangeiros.
De brasileiros, gosto muito de Graciliano Ramos… Acho que já li “São
Bernardo” umas 20 vezes, com mentira e tudo. Leio o Graciliano muito,
sempre. Mas Machado de Assis é um autor extraordinário. Comecei a ler
com 9 anos livros de adulto. E ninguém sabia quem era Machado de Assis,
só o Brasil e, mesmo assim, nem todo mundo.
Mas hoje ele está ficando um autor universal. Ele tinha a prova do
grande escritor. Quando se escreve um livro, ele é traduzido, e uma
crítica fala que a tradução estragou a obra, é porque não era uma grande
obra. Machado de Assis, mesmo mal traduzido, continua grande. A prova
de um bom escritor é que mesmo mal traduzido ele é grande. Se dizem: “a
tradução matou a obra”, então a obra era boa, mas não era grande.
Como levar a grande literatura para quem não está habituado com a leitura?
É perfeitamente possível, sobretudo Machado de Assis. A Maria Vitória
Benevides me contou de uma pesquisa que foi feita na Itália há uns 30
anos. Aqueles magnatas italianos, com uma visão já avançada do
capitalismo, decidiram diminuir as horas de trabalho para que os
trabalhadores pudessem ter cursos, se dedicar à cultura.
Então perguntaram: cursos de que vocês querem? Pensaram que iam pedir
cursos técnicos, e eles pediram curso de italiano para poder ler bem os
clássicos. “A divina comédia” é um livro com 100 cantos, cada canto com
dezenas de estrofes. Na Itália, não sou capaz de repetir direito, mas
algo como 200 mil pessoas sabem a primeira parte inteira, 50 mil sabem a
segunda, e de 3 a 4 mil pessoas sabem o livro inteiro de cor.
Quer dizer, o povo tem direito à literatura e entende a literatura. O
doutor Agostinho da Silva, um escritor português anarquista que ficou
muito tempo no Brasil, explicava para os operários os diálogos de
Platão, e eles adoravam. Tem que saber explicar, usar a linguagem
normal.
O senhor acha que o brasileiro gosta de ler?
Não sei. O Brasil pra mim é um mistério. Tem editora para toda parte,
tem livro para todo lado. Vi uma reportagem que dizia que a cidade de
Buenos Aires tem mais livrarias que em todo o Brasil. Lê-se muito pouco
no Brasil. Parece que o povo que lê mais é o finlandês, que lê 30
volumes por ano. Agora dizem que o livro vai acabar, né?
O senhor acha que vai?
Não sei. Eu não tenho nem computador… as pessoas me perguntam: qual é o seu… como chama?
E-mail?
Isso! Olha, eu parei no telefone e máquina de escrever. Não entendo
dessas coisas… Estou afastado de todas as novidades há cerca de 30 anos.
Não me interesso por literatura atual. Sou um velho caturra. Já doei
quase toda minha biblioteca, 14 ou 15 mil volumes. O que tem aqui é
livro para visita ver. Mas pretendo dar tudo. Não vendo livro, eu dou.
Sempre fiz escola pública, inclusive universidade pública, então é o que
posso dar para devolver um pouco.
Tenho impressão que a literatura brasileira está fraca, mas isso todo
velho acha. Meus antigos alunos que me visitam muito dizem que está
fraca no Brasil, na Inglaterra, na França, na Rússia, nos Estados
Unidos… que a literatura está por baixo hoje em dia. Mas eu não me
interesso por novidades.
E o que o senhor lê hoje em dia?
Eu releio. História, um pouco de política… mesmo meus livros de
socialismo eu dei tudo. Agora estou querendo reler alguns mestres
socialistas, sobretudo Eduard Bernstein, aquele que os comunistas tinham
ódio. Ele era marxista, mas dizia que o marxismo tem um defeito, achar
que a gente pode chegar no paraíso terrestre.
Então ele partiu da ideia do filósofo Immanuel Kant da finalidade sem
fim.
O socialismo é uma finalidade sem fim. Você tem que agir todos os
dias como se fosse possível chegar no paraíso, mas você não chegará. Mas
se não fizer essa luta, você cai no inferno.
O senhor é socialista?
Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma
doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o
socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na
revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo.
Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de
madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí
começou a aparecer o socialismo.
Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que
caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser
explorado.
Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo,
cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a
lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não
trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez,
oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores
terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são
banais.
Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial,
ele disse: “o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face
humana”.
O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na
mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter
sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a
mais-valia não tem limite.
Marx diz na “Ideologia Alemã”: as necessidades humanas são
cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda
descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço.
Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a
meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo
está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o
que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue.
Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é
conquista do socialismo.
O socialismo só não deu certo na Rússia.
Por quê?
Virou capitalismo. A revolução russa serviu para formar o
capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao poder. O socialismo
hoje está infiltrado em todo lugar.
O socialismo como luta dos trabalhadores?
O socialismo como caminho para a igualdade. Não é a luta, é por causa
da luta. O grau de igualdade de hoje foi obtido pelas lutas do
socialismo. Portanto ele é uma doutrina triunfante. Os países que
passaram pela etapa das revoluções burguesas têm o nível de vida do
trabalhador que o socialismo lutou para ter, o que quer. Não vou dizer
que países como França e Alemanha são socialistas, mas têm um nível de
vida melhor para o trabalhador.
Para o senhor é possível o socialismo existir triunfando sobre o capitalismo?
Estou pensando mais na técnica de esponja. Se daqui a 50 anos no
Brasil não houver diferença maior que dez do maior ao menor salário, se
todos tiverem escola… não importa que seja com a monarquia, pode ser o
regime com o nome que for, não precisa ser o socialismo!
Digo que o socialismo é uma doutrina triunfante porque suas
reivindicações estão sendo cada vez mais adotadas. Não tenho cabeça
teórica, não sei como resolver essa questão: o socialismo foi
extraordinário para pensar a distribuição econômica, mas não foi tão
eficiente para efetivamente fazer a produção. O capitalismo foi mais
eficiente, porque tem o lucro.
Quando se suprime o lucro, a coisa fica mais complicada. É preciso
conciliar a ambição econômica – que o homem civilizado tem, assim como
tem ambição de sexo, de alimentação, tem ambição de possuir bens
materiais – com a igualdade. Quem pode resolver melhor essa equação é o
socialismo, disso não tenho a menor dúvida.
Acho que o mundo marcha para o socialismo. Não o socialismo acadêmico
típico, a gente não sabe o que vai ser… o que é o socialismo? É o
máximo de igualdade econômica.
Por exemplo, sou um professor aposentado da Universidade de São Paulo
e ganho muito bem, ganho provavelmente 50, 100 vezes mais que um
trabalhador rural. Isso não pode. No dia em que, no Brasil, o
trabalhador de enxada ganhar apenas 10 ou 15 vezes menos que o
banqueiro, está bom, é o socialismo.
O que o socialismo conseguiu no mundo de avanços?
O socialismo é o cavalo de Troia dentro do capitalismo. Se você tira
os rótulos e vê as realidades, vê como o socialismo humanizou o mundo.
Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma
coisa formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a
China, o Camboja. No comunismo tem muito fanatismo, enquanto o
socialismo democrático é moderado, é humano.
E não há verdade final fora da moderação, isso Aristóteles já dizia, a
verdade está no meio. Quando eu era militante do PT – deixei de ser
militante em 2002, quando o Lula foi eleito – era da ala do Lula, da
Articulação, mas só votava nos candidatos da extrema esquerda, para
cutucar o centro.
É preciso ter esquerda e direita para formar a média. Estou
convencido disso: o socialismo é a grande visão do homem, que não foi
ainda superada, de tratar o homem realmente como ser humano.
Podem dizer: a religião faz isso. Mas faz isso para o que são adeptos
dela, o socialismo faz isso para todos. O socialismo funciona como
esponja: hoje o capitalismo está embebido de socialismo. No tempo que
meu irmão Roberto – que era católico de esquerda – começou a trabalhar,
eu era moço, ele era tido como comunista, por dizer que no Brasil tinha
miséria. Dizer isso era ser comunista, não estou falando em metáforas.
Hoje, a Federação das Indústrias, Paulo Maluf, eles dizem que a
miséria é intolerável. O socialismo está andando… não com o nome, mas
aquilo que o socialismo quer, a igualdade, está andando. Não aquela
igualdade que alguns socialistas e os anarquistas pregavam, igualdade
absoluta é impossível. Os homens são muito diferentes, há uma certa
justiça em remunerar mais aquele que serve mais à comunidade. Mas a
desigualdade tem que ser mínima, não máxima. Sou muito otimista.
(pausa).
O Brasil é um país pobre, mas há uma certa tendência igualitária no
brasileiro – apesar da escravidão – e isso é bom. Tive uma sorte muito
grande, fui criado numa cidade pequena, em Minas Gerais, não tinha nem 5
mil habitantes quando eu morava lá.
Numa cidade assim, todo mundo é parente. Meu bisavô era proprietário
de terras, mas a terra foi sendo dividida entre os filhos… então na
minha cidade o barbeiro era meu parente, o chofer de praça era meu
parente, até uma prostituta, que foi uma moça deflorada expulsa de casa,
era minha prima. Então me acostumei a ser igual a todo mundo. Fui
criado com os antigos escravos do meu avô. Quando eu tinha 10 anos de
idade, toda pessoa com mais de 40 anos tinha sido escrava. Conheci
inclusive uma escrava, tia Vitória, que liderou uma rebelião contra o
senhor.
Não tenho senso de desigualdade social. Digo sempre, tenho
temperamento conservador. Tenho temperamento conservador, atitudes
liberais e ideias socialistas. Minha grande sorte foi não ter nascido em
família nem importante nem rica, senão ia ser um reacionário. (risos).
A Teresina, que inspirou um livro com seu nome, o senhor conheceu depois?
Conheci em Poços de Caldas… essa era uma mulher extraordinária, uma
anarquista, maior amiga da minha mãe. Tenho um livrinho sobre ela. Uma
mulher formidável. Mas eu me politizei muito tarde, com 23, 24 anos de
idade com o Paulo Emílio. Ele dizia: “é melhor ser fascista do que não
ter ideologia”. Ele que me levou para a militância. Ele dizia com razão:
cada geração tem o seu dever. O nosso dever era político.
E o dever da atual geração?
Ter saudade. Vocês pegaram um rabo de foguete danado.
No seu livro “Os parceiros do Rio Bonito” o senhor diz que é
importante defender a reforma agrária não apenas por motivos econômicos,
mas culturalmente. O que o senhor acha disso hoje?
Isso é uma coisa muito bonita do MST. No movimento das Ligas Camponesas não havia essa preocupação cultural, era mais econômica.
Acho bonito isso que o MST faz: formar em curso superior quem
trabalha na enxada. Essa preocupação cultural do MST já é um avanço
extraordinário no caminho do socialismo. É preciso cultura. Não é só o
livro, é conhecimento, informação, notícia…
Minha tese de doutorado em ciências sociais foi sobre o camponês
pobre de São Paulo – aquele que precisa arrendar terra, o parceiro. Em
1948, estava fazendo minha pesquisa num bairro rural de Bofete e tinha
um informante muito bom, Nhô Samuel Antônio de Camargos. Ele dizia que
tinha mais de 90 anos, mas não sabia quantos.
Um dia ele me perguntou: “ô seu Antonio, o imperador vai indo bem?
Não é mais aquele de barba branca, né?”. Eu disse pra ele: “não, agora é
outro chamado Eurico Gaspar Dutra”
Quer dizer, ele está fora da cultura, para ele o imperador existe.
Ele não sabe ler, não sabe escrever, não lê jornal. A humanização
moderna depende da comunicação em grande parte. No dia em que o
trabalhador tem o rádio em casa ele é outra pessoa. O problema é que os
meios modernos de comunicação são muito venenosos.
A televisão é uma praga. Eu adoro, hein? Moro sozinho, sozinho, sou
viúvo e assisto televisão. Mas é uma praga. A coisa mais pérfida do
capitalismo – por causa da necessidade cumulativa irreversível – é a
sociedade de consumo.
Marx não conheceu, não sei como ele veria. A televisão faz um
inculcamento sublimar de dez em dez minutos, na cabeça de todos – na
sua, na minha, do Sílvio Santos, do dono do Bradesco, do pobre diabo que
não tem o que comer – imagens de whisky, automóvel, casa, roupa, viagem
à Europa – cria necessidades. E claro que não dá condições para
concretizá-las. A sociedade de consumo está criando necessidades
artificiais e está levando os que não têm ao desespero, à droga,
miséria…
Esse desejo da coisa nova é uma coisa poderosa. O capitalismo
descobriu isso graças ao Henry Ford. O Ford tirou o automóvel da
granfinagem e fez carro popular, vendia a 500 dólares. Estados Unidos
inteiro começou a comprar automóvel, e o Ford foi ficando milionário. De
repente o carro não vendia mais. Ele ficou desesperado, chamou os
economistas, que estudaram e disseram: “mas é claro que não vende, o
carro não acaba”.
O produto industrial não pode ser eterno. O produto artesanal é feito
para durar, mas o industrial não, ele tem que ser feito para acabar,
essa é coisa mais diabólica do capitalismo. E o Ford entendeu isso,
passou a mudar o modelo do carro a cada ano. Em um regime que fosse mais
socialista seria preciso encontrar uma maneira de não falir as
empresas, mas tornar os produtos duráveis, acabar com essa loucura da
renovação. Hoje um automóvel é feito para acabar, a moda é feita para
mudar. Essa ideia tem como miragem o lucro infinito. Enquanto a
verdadeira miragem não é a do lucro infinito, é do bem-estar infinito.
(fonte: http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/aos-98-anos-morre-antonio-candido-leia-uma-de-ultimas-entrevistas-do-critico-socialista-amigo-do-mst.html)