domingo, 25 de março de 2018

Ceará vai usar água do mar para consumo

seca histórica que há seis anos não dá trégua à Região Nordeste levou o governo do Ceará a adotar uma medida extrema para garantir o abastecimento humano de água. O governo cearense decidiu instalar, no litoral de Fortaleza, uma unidade de dessalinização da água do mar, para complementar o atendimento à população. O plano é que, até 2020, parte dos habitantes da cidade passe a matar a sede bebendo água do mar.

Até maio, o Estado vai receber dois estudos técnicos sobre o projeto, que tem orçamento estimado em cerca de R$ 500 milhões. Uma empresa sul-coreana e outra espanhola foram escolhidas no fim de 2017 para apresentar propostas de engenharia, com indicação do melhor modelo tecnológico para retirar o sal da água e o melhor local para sua instalação.
A meta do governo é de que a água retirada do Oceano Atlântico atenda pelo menos 720 mil habitantes de Fortaleza. A capital consome hoje cerca 8 m³ de água por segundo. A planta de dessalinização tem projeção de entregar 1 m³ de água tratada por segundo, o equivalente a 12% do consumo na cidade.

A reportagem é de André Borges, publicada por O Estado de S. Paulo, 21-03-2018.
Ao Estado, o secretário de Recursos Hídricos do CearáFrancisco Teixeira, disse que o empreendimento vai a leilão no segundo semestre, com previsão de entrar em operação em dois anos. “Vivemos em uma cidade do tamanho de Fortaleza, que tem 9 milhões de habitantes, em um Estado do Semiárido, olhando para o mar. A alternativa de futuro que temos é complementar o abastecimento humano com a dessalinização da água do mar. Não temos mais dúvidas disso”, disse ele, ex-ministro da Integração Nacional.
O plano do governo é contratar uma empresa para construir e ficar responsável pela operação. A contrapartida estadual será a de comprar toda água tratada por essa empresa, que se ligará a um ponto de distribuição da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece).
O governo vai estabelecer uma tarifa máxima que pretende pagar para cada litro de água dessalinizada. Vencerá a licitação a companhia que apresentar a menor tarifa, que será paga pelo consumidor final.
Experiências internacionais apontam que cada metro cúbico de água dessalinizada teria um custo médio de U$ 1 (cerca de R$ 3,31). Hoje, o valor médio praticado pela Cagecepara tratar cada metro cúbico de água doce é de cerca de R$ 3, segundo Francisco Teixeira.
“Veja que, portanto, não devemos ter aumento muito grande nos preços da água”, declarou. “Plantas de dessalinização de maior porte, como as de Israel, por exemplo, conseguem chegar a US$ 0,60 para cada metro cúbico de água tratada”, disse.
Numa segunda etapa, a ideia é fazer uma segunda unidade de tratamento, dobrando a capacidade de dessalinização.
Escassez. O objetivo é reduzir a dependência de Fortaleza das águas do Açude do Castanhão, que fica a 280 quilômetros da capital. Principal caixa d’água que abastece a cidade, o reservatório vive sua pior situação desde 2002, quando entrou em operação, com apenas 3% do que teria capacidade de armazenar.
Em 2017, o governo do Ceará entrou em conflito com usinas térmicas de energia instaladas no Porto de Pecém, que vinham utilizando muita água do Castanhão para resfriar suas turbinas. O governo acusou ainda as empresas de terem abandonados planos de dessalinizar a água do mar para usar em suas operações. Hoje, porém, a ideia é que essas termoelétricas passem a utilizar águas de reúso em suas atividades. Para a população, a fonte será o oceano.

Para entender: 150 países usam o método

Pelo menos 150 países utilizam processos de dessalinização para produzir água potável, segundo estimativa mais recente da Associação Internacional de Dessalinização. Entre as nações que mais exploram a técnica estão países desérticos ou com dificuldades em oferecer abastecimento regular para a sua população, como os do Oriente Médio e os do norte da África.
Países desenvolvidos, como Austrália, também têm centros de dessalinização. Um dos líderes nessa tecnologia é Israel, onde cerca de 80% da água potável consumida pela população é proveniente do mar.
Atualmente, cerca de 300 milhões de pessoas no mundo dependem de água dessalinizada para algumas ou todas as suas necessidades. Ainda de acordo com a associação, já são mais de 18 mil usinas em todo o mundo capazes de dessalinizar a água do mar. Juntas, elas geram 86,8 milhões de metros cúbicos de água por dia.
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/577216-ceara-vai-usar-agua-do-mar-para-consumo)

Como o deserto do Saara participa do regime de chuvas da Amazônia, a 5 mil km de distância

Pouco mais de 5,3 mil km e o Oceano Atlântico separam as cidades de Manaus (AM) e Nouakchott, a capital da Mauritânia, no deserto do Saara. Apesar da distância, o deserto do norte da África e a floresta amazônica têm uma relação mais estreita do que senso comum nos leva a acreditar.
A reportagem é de Evanildo da Silveira, publicada por BBC, 19-03-2018.
Tão inesperado quanto esta ligação é o fato de ser o deserto que beneficia a mata, e não o contrário – sendo responsável pela maior parte das chuvas torrenciais que caem sobre a região, mantendo sua exuberância e biodiversidade. Além de enviar toneladas de nutrientes para sua vegetação, como o fósforo.
Os “núcleos de condensação”, a parte da nuvem em que o vapor de água se condensa, são formados, entre outros elementos, por partículas em suspensão no ar – poeira, por exemplo. No caso da floresta amazônica, uma parcela desses aerossóis é proveniente do Saara.
“Este fenômeno de transporte ocorre principalmente na parte norte da Amazônia, mas já foi registrado também na área central da região, como, por exemplo, ao sul de Manaus”, explica o físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).
Ele é um dos integrantes de uma equipe de pesquisadores do Brasil, dos Estados Unidos e da Alemanha que vem desenvolvendo, há uma década, um trabalho que levou à descoberta de que a poeira do deserto ajuda a formar nuvens sobre a Amazônia Central, onde se localiza Manaus, que são responsáveis por cerca de 80% das chuvasque caem na região.
Mas como o deserto cria precipitações a milhares de quilômetros de distância?
Segundo Artaxo, o fenômeno ocorre todos os anos. Ele começa com as tempestades no Saara, que levantam toneladas de poeira e areia. Esse material é transportado de lá, por cima do Oceano Atlântico, até a floresta amazônica, numa distância mínima de pelo menos 5 mil km – entre a parte mais ocidental do deserto e Manaus. “Isso ocorre de fevereiro a maio, pois, nesta época, a chamada Zona de Convergência Intertropical (ITCZ, na sigla em inglês), fica ao sul de Manaus, favorecendo o transporte de massas de ar do hemisfério Norte para a Amazônia Central”, explica Artaxo.
Ele diz que, para que haja chuva, são necessários três ingredientes básicos: vapor de água, condições termodinâmicas ideais e as partículas que servirão de meio para que o vapor possa se condensar. “Os grãos de poeira do Saara, que também podem ser chamados de aerossóis, operam como uma destas partículas em que o vapor de água se condensa”, explica Artaxo, mencionando a hipótese mais aceita para a explicação do fenômeno.
“Ou seja, eles atuam como núcleos de condensação de gelo, fazendo com que gotas líquidas, ao atingirem altas altitudes e temperaturas menores que 10ºC negativos, congelem e formem gotas de gelo, que são eficientes no processo de formação de chuvana Amazônia.”
Artaxo conta que as medidas da concentração de partículas do Saara foram feitas na Amazon Tall Tower Observatory (ATTO), ou Torre Alta de Observação da Amazônia, com 325 metros altura, o equivalente a um prédio de 80 andares. Erguida na reserva ambiental do Uatumã, no município de São Sebastião do Uatumã, a cerca de 180 km de Manaus, é a maior torre de monitoramento ambiental e atmosférico do mundo. O objetivo dela é coletar dados sobre a interação entre a vegetação e atmosfera.

Teste químico

Para testar sua hipótese, os pesquisadores realizaram experimentos em laboratório. Parte das partículas coletadas na torre ATTO foi injetada em uma câmara, na qual é possível simular a formação das nuvens convectivas – nuvens com grandes altitudes verticais, que podem chegar a 15 km da base ao topo, responsáveis chuvas torrenciais e rápidas.
Segundo Artaxo, essa câmara reproduz as condições da atmosfera a até 18 km acima do solo, onde prevalecem as baixas pressões e temperaturas – de até 70ºC negativos. Na natureza, é num ambiente parecido que se formam as nuvens convectivas.
A certeza de que a poeira encontrada no local vem do Saara e não de um terreno próximo à torre é dada pela sua composição química, mais especificamente, pela presença e proporção de alguns elementos, como alumínio, manganês, ferro e silício. De acordo com Artaxo, a quantidade desses elementos nas partículas coletadas na Amazônia é igual a encontrada na poeira do Saara. “Além disso, há a correlação entre a presença desses aerossóis e o movimento das massas de ar”, diz. “Isso prova que eles vieram mesmo do deserto africano.”
Os cientistas ainda não têm 100% de certeza sobre o mecanismo pelo qual os aerossóis do Saara ajudam a formar as nuvens e, por consequência, as chuvas que caem torrencialmente na região. A hipótese mais provável é que o ferro, presente na poeira do deserto, pode funcionar como um suporte, sobre o qual o vapor d’água se condensa, formando núcleos de gelo, que depois se transformam em gotas de chuva.

Fertilizante natural

Não são apenas simples grãos de poeira, entretanto, que o Saara manda para a Amazônia.
Em 2015, a Nasa, a agência espacial americana, divulgou um estudo segundo o qual todos os anos o deserto envia, junto com o pó, 22 mil toneladas de fósforo, nutriente encontrado em fertilizantes comerciais e essencial para o crescimento da floresta. É quase a mesma quantidade que a mata produz, com a decomposição das árvores caídas e, em seguida, perde com as chuvas e inundações.
Segundo o levantamento da Nasa, todos os anos 182 milhões de toneladas de poeira – mais ou menos o equivalente a 690 mil de caminhões de areia – saem do Saara para as Américas do Sul e Central. Desse total, cerca de 28 milhões de toneladas – ou 105 mil caminhões – caem na Bacia Amazônica, e, junto com elas, o fósforo.
Mais de 5 mil km separam a borda do deserto da floresta amazônica (Foto: Reprodução/Google Maps)
A poeira mais rica em fósforo vem da depressão de Bodélé, no Chade, que é um antigo leito de lago, hoje seco.
Devido a sua geografia, o local é atingido por constantes e gigantescas tempestades, que levantam a areia, que depois é transportado para o outro lado do Oceano Atlântico. A descoberta é parte de uma pesquisa maior para compreender o papel da poeira e dos aerossóis no meio ambiente, no clima local e global.
Os pesquisadores da equipe da qual Artaxo faz parte estão agora empenhados em descobrir se o aquecimento global pode interferir no fenômeno do transporte de poeira do Saara para a Amazônia e, consequentemente, na formação e no volume de chuva na região da floresta brasileira.
“Um dos efeitos do aquecimento global é mudar a dinâmica da atmosfera, e o transporte em larga escala”, diz. “Isso pode, sim, afetar o transporte de partículas do Saara para a Amazônia, pois toda a dinâmica atmosférica pode ser alterada”. Mas são necessários mais estudos para saber como isso ocorrerá.
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/577239-como-o-deserto-do-saara-participa-do-regime-de-chuvas-da-amazonia-a-5-mil-km-de-distancia)

Mudanças climáticas aumentam disputas judiciais por água e desafiam juízes


Em todo o mundo, juízes se deparam com a difícil tarefa de conciliar a aplicação de leis com a complexidade de decidir quem tem mais direito sobre a água em uma disputal judicial.
A reportagem é publicada por Agência Brasil, 21-03-2018. 
“Cada vez vemos mais leis da água que estão fortemente subsidiadas pelos avanços científicos, no entendimento dos fenômenos naturais, que envolve o complexo meio ambiente onde a água está inserida”, disse o presidente executivo da Associação Internacional para Direito da Água (Aida), Stefano Burchi, durante a conferência de juízes e promotores no 8º Fórum Mundial da Água.
Pela primeira vez, juristas estão reunidos no fórum para tratar das perspectivas, desafios e soluções no âmbito do direito para problemas envolvendo a água e seus usos. O evento começou no dia 18 e vai até 23 de março, em Brasília.
Para Burchi, nesse contexto, as mudanças climáticas aumentam os conflitos judiciais – por causa de escassez ou excesso de água, a concorrência pelo uso do recurso e o impacto sobre os bens materiais. “As águas subterrâneas, por exemplo, são um recurso complexo e se tornam mais importantes de forma estratégica quando se conjugam com os recursos hídricos superficiais. Trata-se de algo que está assumindo um valor. E tenho testemunhado gerações de juízes que tem tentado decifrar os meandros das evidências hidrogeológicas”, contou.
Com essa demanda crescente, juízes têm de tomar decisões, recorrendo não somente às leis, como também à ciência. “Não tenho inveja de vocês juízes que serão convocados a interpretar a lei, principalmente nesse ambiente contemporâneo, quando as leis se tornam mais complexas, expostas a desafios complexos ocasionados pela mudança do clima”, disse Burchi.

“Corrupção no setor hídrico”

O representante do Programa de Governança da Água da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Hakam Tropp, alerta que esse cenário exige de governo, instituições públicas, setor privado e organizações civis ações que priorizem a transparência, responsabilização e participação. E, para ele, a Justiça ainda tem pela frente a missão de impedir “a corrupção no setor hídrico”.
“Algo que estamos observando é que há um risco grande de corrupção no setor hídrico e ela pode se dar em diferentes níveis. Já somos testemunhas da corrupção em pequena escala, como, por exemplo, fazer um gato no hidrômetro”, disse. “Isso é algo que torna o setor menos capaz de responder aos desafios da água e que leva à falta recursos financeiros para investimentos”, ressaltou.
Para Tropp, é possível intensificar o trabalho de prevenção em relação à corrupção, por exemplo, a partir dos princípios da governança. “Agimos só depois do fato acontecido, mas como colaborar para evitar que esses problemas aconteçam? Com transparência, responsabilização e participação”, disse, chamando o Judiciário para participar e complementar o trabalho de profissionais do setor de recursos hídricos.

Resiliência

Para o diretor do Programa Global da Água da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), Mark Smith, a Justiça pode ajudar na adaptação para o enfrentamento das mudanças climáticas com infraestrutura e tecnologias sustentáveis; aspectos sociais e políticos; e aprendizado e conhecimento.
“São os quatro elementos da resiliência no enfrentamento às mudanças climáticas”, disse. Para Smith, a resiliência é fortalecida pela biodiversidade e diversidade econômica e toda lei ambiental que protege a biodiversidade e a Justiça ambientalmerece esforços.
No âmbito da infraestrutura, é preciso considerar obras concluídas como barragens e transposições, além da infraestrutura natural, como alagadiços e florestas. “O direito ambiental e sua aplicação é um componente crítico na avaliação de impactos ambientais para que a infraestrutura seja construída de maneira adequada e transparente”, explicou.
Sobre os aspectos sociais, políticos e de conhecimento, Smith explicou que as comunidades precisam reagir aos impactos das mudanças. Para isso, precisam participar do processo de governança em diferentes instituições. “O aspecto legal tem a ver com garantir que as organizações sejam equipadas para adaptar-se à medida que as mudanças climáticas causam impacto”, disse.

Injustiça ambiental

Para o juiz norte-americano Michael Wilson, da Suprema Corte do Havaí, não é possível falar em Justiça, mas sim em injustiça ambiental. “Trata-se de uma emergência declarada. Estamos criando a maior injustiça internacional e ambiental por causa do planeta que estamos passando adiante”, disse, sobre os estudos que mostram que não será possível limitar o aquecimento global e como isso impactará as gerações futuras.
Segundo Wilson, os juristas reunidos no fórum estão na vanguarda da Justiça ambiental. “O mundo com aumento de 2 ou 3 graus [Celsius] é ilegal. Onde vocês veem na lei que isso é condizente com as condições de vida?”, questionou. “O nosso juramento é de resgatar as espécies, de constituir uma Justiça verde, para assegurar que pelo menos tentamos mudar o futuro”, disse, criticando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que defende a economia do carbono e diz que o aquecimento global é um mito.
O juiz da Suprema Corte criticou ainda o alto número de assassinatos de ativistas ambientais, quatro por semana, segundo ele, fazendo um paralelo ao assassinato da vereadora Marielle Franco, do Rio de Janeiro, defensora dos direitos humanos. “Pessoas perdem suas vidas quando defendem seus valores”, disse.
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/577315-mudancas-climaticas-aumentam-disputas-judiciais-por-agua-e-desafiam-juizes)

Brasileiros não sabem se tem agrotóxicos na água que bebem

por RICHARD PEARSHOUSE E JOÃO GUILHERME BIEBER, EL PAÍS


No mês passado, visitamos uma pequena comunidade rural no norte do Brasil para ver como os agrotóxicos afetam as pessoas no campo. O Brasil, uma potência em agriculturaindustrial, é um dos maiores consumidores de agrotóxicos no mundo. Culturas como a de soja, de milho, de algodão e de cana-de-açúcar são cultivadas com enormes quantidades de agrotóxicos: cerca de 400 mil toneladas por ano. Dos 10 agrotóxicos mais utilizados no Brasil, 4 são proibidos na Europa, indicando quão prejudiciais são considerados para alguns padrões.

Moradores que conhecemos temem os danos que podem decorrer dos agrotóxicos e a retaliação que podem sofrer caso denunciem essa situação. Pediram-nos inclusive para não publicar o nome da comunidade – disseram que um fazendeiro, dono da plantação nas redondezas, havia ameaçado um membro da comunidade por organizar um abaixo-assinado pela redução da pulverização de agrotóxicos. A plantação do fazendeiro alcança casas, seus pequenos jardins e um pequeno campo de futebol; e a área termina a apenas cinco metros do poço utilizado pela comunidade para obter água potável.

O responsável por manter o poço nos contou que estava preocupado com a possibilidade de que os agrotóxicos pulverizados nas plantações de soja afetem o abastecimento de água da comunidade. Ele não sabe se sua preocupação é fundada, porque o governo não fez testes com a água desde que o poço foi instalado há três anos. “Estamos preocupados com a pulverização de agrotóxicos, mas também nos preocupamos com as ameaças, por isso não queremos falar muito sobre isso”, ele disse com um riso sem jeito. “Isso é o que enfrentamos aqui".

Hoje é o Dia Mundial da Água. Água potável segura é um direito humano, incluindo o direito das pessoas saberem o que tem na água que estão bebendo. Sabemos que os resíduos de agrotóxicos podem escoar com a água da chuva pela superfície e atingir aquíferos que são muitas vezes fonte de água potável.

Alguns países testam regularmente o abastecimento de água potável para verificar a presença de agrotóxicos e disponibilizam os resultados para a população. No Brasil, na prática, isso não ocorre. Fizemos um pedido com base na lei de acesso à informação para obter os resultados dos testes nacionais de resíduos de agrotóxicos na água potável realizados entre 2014 a 2017. Descobrimos que, apesar das obrigações legais, sistemas de abastecimento de água raramente são testados.

Por lei, os fornecedores de água – sejam eles empresas estatais, privadas ou governos municipais – são responsáveis por testar 27 agrotóxicos específicos, a cada seis meses, nos sistemas de água que gerenciam e devem relatar esses resultados ao governo federal. Mas, a cada ano, uma média de 67% dos municípios em todo o país não envia nenhuma informação ao governo federal – e isso em um país que é um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo. O governo federal não tem ideia de quão contaminada pode estar a água potável no Brasil, ou mesmo sobre os males que pode estar causando a sua população.

Mesmo nos municípios que enviam as informações, a maioria dos testes está incompleta. Dos resultados apresentados em 2014, apenas 18% refletiam testes completos, realizados duas vezes por ano para detectar todos os 27 agrotóxicos, conforme exigido por lei.

Simplificando: o sistema brasileiro de monitoramento de água potável é vergonhosamente inadequado para detectar a ameaça de perigosos agrotóxicos.

Mesmo com este sistema mal estruturado, as autoridades brasileiras conseguem identificar alguns municípios onde a água potável contém resíduos de agrotóxicos acima dos limites legais. Na verdade, 15% do pequeno número de municípios que apresentaram os resultados dos testes durante este período de quatro anos encontraram pelo menos uma substância acima do limite legal.

Que tipo de substâncias são encontradas? Os agrotóxicos mais comuns não têm nomes muito conhecidos – aldrin, dieldrina, clordano e endrina –, mas todos são danosos à saúde humana. Essa vasta gama de inseticidas foi banida no Brasil na década de 1990, mas são tão persistentes que aparecem na água potável mesmo depois de décadas.

Quem se preocupa com o que está na água conta com poucas opções. Sem um sistema de teste abrangente, a melhor informação vem de estudos acadêmicos. Em 2016, pesquisadores publicaram o primeiro levantamento nacional brasileiro de contaminantes emergentes na água potável. Depois de cafeína – substância que indica a existência de esgoto não tratado –, o segundo contaminante mais comumente encontrado na água foi o herbicida atrazina, presente em 75% das amostras de todo o país.

A atrazina é legalmente permitida no Brasil. Seus níveis residuais na água estavam bem abaixo do limite legal, mas estudos recentes em animais mostram que, mesmo em baixas doses durante longos períodos, a atrazina pode ser um disruptor endócrino, interferindo nas funções reprodutiva, neural e de imunidade.

Pesquisadores detectaram a atrazina acima do limite permitido na água potável em dois municípios rurais no estado de Mato Grosso – Lucas do Rio Verde e Campo Verde. E o carbofurano, outro componente químico perigoso para a saúde humana, foi encontrado acima dos níveis permitidos em amostras de poços de água em Quitéria, uma área rural perto de Rio Grande, uma cidade no sul do país.

O que tudo isso significa? O Brasil usa grandes quantidades de agrotóxicos que comprometem o meio ambiente de seus cidadãos, e as autoridades têm fracassado em garantir que o abastecimento de água potável não esteja contaminado com níveis prejudiciais desses agrotóxicos. E isso é perigoso. O Brasil precisa adotar um sistema de monitoramento eficaz de água potável para garantir que seu abastecimento seja devidamente testado contra agrotóxicos e que os resultados sejam disponibilizados ao público.

 * Richard Pearshouse é diretor-adjunto para a divisão de meio ambiente e direitos humanos da Human Rights Watch. João Guilherme Bieber é consultor da Human Rights Watch.


(fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Mae-Terra/Brasileiros-nao-sabem-se-tem-agrotoxicos-na-agua-que-bebem/3/39664)

Água: 27 teses subversivas

Mercantilização avança e multiplica as crises hídricas. Há alternativa: tratar abastecimento como direito universal e converter as fontes em Bens Comuns Globais. Eis um possível caminho
Por Riccardo Petrella | Tradução: Inês Castilho

Tese 1. A água é um elemento natural indispensável e insubstituível para todas as formas de vida, todas as espécies vivas (seres humanos, espécies microbianas, vegetais e animais). A água é a própria vida. Enquanto tal ela deve ser salvaguardada e protegida. A vida tem em si um valor absoluto. Ela vale porque ela é. Isso significa que quando se entra no domínio dos direitos não se deve apenas falar do direito humano à água, mas também do direito da própria água à vida, à sua regeneração, sua integridade, seu bom estado ecológico. Fonte de vida, a água é também, não nos esqueçamos, fonte de doenças, de calamidades e de cada vez mais antróprica.
Tese 2. Nenhuma forma de vida pode manter-se sem água. A vida sobre a Terra começou pela água, no meio aquático e só depois fora dele. No plano humano, o recurso à água não é uma questão de escolha ou de preferência em função de necessidades individuais diversas ou modos de vida coletiva, mas uma necessidade vital a ser satisfeita, na igualdade e responsabilidade. A água não é e nem pode ser considerada uma mercadoria, um “recurso”/coisa que se vende ou se compra, apropriável a título privado (quer seja de natureza privada ou pública ou mista). Todo Estado ou organização política internacional intergovernamental que reconheça ou trate a água (e os serviços hídricos) como uma mercadoria apropriável posiciona-se fora do campo do respeito à água como vida e do Estado de direitos. O direito de propriedade privada e pública existe mas estimamos que, no caso da água para a vida, ninguém, nem mesmo o Estado, pode considerar-se proprietário. É necessário sobretudo falar de responsabilidade e de garantia. A constituição do Chile, herdada do regime ditatorial de Pinochet e ainda em vigor, estipula que a água no Chile é de propriedade privada. Trata-se de fato único no mundo, inaceitável.
Tese 3. Todos os seres humanos e todas as outras espécies vivas têm direito à água na quantidade e qualidade suficientes para a vida. Da mesma forma, para além de qualquer abordagem antropocêntrica e tecnoprodutivista, a água também tem seus direitos à vida, ao seu bom estado ecológico. Daí a importância fundamental de uma política da água a serviço da salvaguarda, do cuidado e da defesa da vida e do direito à vida que vá além das concepções funcionalistas instrumentais da água a serviço da vida e do bem-estar dos seres humanos. Exemplo: o tratamento/descontaminação das águas usadas é essencial no quadro de um manejo sustentável das diferentes fases do ciclo longo da água. Significa não somente para permitir aos outros humanos recaptar a água “boa” regenerada para suas necessidades, mas também permitir a regeneração da água e da vida dos ecossistemas enquanto tais. Assim, é preciso que os investimentos coletivos no tratamento/saneamento da água sejam públicos e, no caso de capitais privados estarem associados, é preciso impedir que as prioridades de investimento nos diferentes setores de tratamento e reciclagem sejam definidos em função dos rendimentos financeiros dos capitais e do princípio “o poluidor paga”. Nesse caso, a tendência “natural”, em obediência ao princípio da rentabilidade, seria favorecer o tratamento e a reciclagem dos usos mais poluentes da água, o que é incompatível com o princípio da vida.
Tese 4. O princípio “o poluidor paga”, imposto e aplicado à água a partir do fim dos anos 1980 deve ser revisto. A experiência demonstra que é ineficaz, inadequado e mistificador. A maioria das poluições e contaminações das águas das últimas décadas fragiliza as estruturas microbianas dos seres vivos, em nível dos indivíduos (inclusive seres humanos), das espécies e dos ecossistemas. Os danos consequentes são em sua maioria irreversíveis, irreparáveis ou demandam longos períodos de tratamento e de custos consideráveis. Nesse caso, impor um pagamento ao poluidor para reparar um dano “existencial” irreparável faz pouco sentido. A opção mais sábia e coerente é simplesmente a proibção de usos poluentes e contaminações irreparáveis.
Tese 5. O direità água potável e ao saneamento foram reconhecidos pela Assembleia Geral da ONU em 28 de julho de 2010 e consolidados pela resolução do Conselho dos Direitos Humanos da ONU de 15 de setembro de 2010, que ratificou o direito à água no Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc), cuja justiciabilidade de direitos foi reconhecida alguns meses depois pelas Nações Unidas. O não cumprimento da resolução da ONU constitui uma violação do direito público internacional em vigor. É igualmente necessário denunciar o comportamento dos Estados membros da ONU que votaram contra a resolução (formalmente eles se abstiveram) e que, desde então, tentam regularmente, muitas vezes com sucesso, mencionar o reconhecimento desse direito em todo novo documento da ONU. Propomos que o dia 28 de julho seja declarado pela ONU “o dia do direito à água” em substituição ao dia internacional da água, 22 de março, instituído em 1993 — sob pressão, entre outros, do Banco Mundial. Este havia publicado, em 1993, o documento “Integrated Water Resources Management” (Gestão Integrada dos Recursos Aquáticos), que impôs como “Bíblia” da política mundial da água. Nesse documento, estipula-se que a água é um bem econômico, privado, e que a gestão ótima dos recursos hídricos passa pela gestão privada e pela fixação de um preço pela água, a ser pago pelo consumidor.
Tese 6. Existem diferenças inevitáveis nos dispositivos e modalidades de organização pelas quais as sociedades humanas concretizam o direito à água. Em geral, os Estados signatários das convenções dos direitos do homem têm a tripla obrigação de respeitar, proteger e cumprir o direito à água e ao saneamento. Nesse quadro, o direito humano à água significa concretamente a obrigação por parte dos Estados de criar as condições necessárias e indispensáveis para que cada ser humano possa utilizar 50 litros de água “boa” por dia, segundo as recomendações feitas pela Organização Mundial de Saúde e da Unicef. Ademais, conforme a resolução 70/169 da Assembleia Geral das Nações Unidas reconhecendo, em 17 de dezembro de 2015, o direito ao saneamento como um direito humano fundamental distinto do direito à água, este significa a implantação de um sistema de coleta, transporte, tratamento e eliminação ou reutilização de excrementos humanos, aos quais estão associados os dispositivos de higiene relacionados. Mais de 2,6 bilhões de pessoas não têm acesso a banheiros seguros e dignos de um ser humano.
Tese 7. O direito à água potável e ao saneamento não pode ser objeto de rivalidade e exclusão. Ninguém pode ser excluido pelas “razões” de nacionalidade, de raça, de sexo, de religião, de renda. A maior parte dos Estados atuais estão na ilegalidade em relação a esse direito no plano legislativo, ou pela políticas implementadas ou pelos comportamentos coletivos. O direito à água e ao saneamento deve ser consagrado nas cartas constitucionais de todos os Estados e regulamentado pelas leis estatais ad hoc (federais ou nacionais ou “regionais” ou comunitárias de base, dos povos indígenas…).
Tese 8. Cabe aos Estados, assumir a responsabilidade coletiva – em nome do povo, dos povos – da garantia do direito à água potável e ao saneamento, assegurando a cobertura do conjunto de custos monetários (e não-monetários) ligados à realização adequada do direito, segundo o princípio da gratuidade. No contexto da economia pública dos direitos humanos, a gratuidade não significa ausência de custos a serem cobertos, mas fica a cargo da comunidade através de tributação geral progressiva e redistributiva. É o caso dos custos, também consideráveis, do direito à segurança. As despesas militares estão a cargo do Estado. Predominante desde os anos 80, esse princípio foi gradualmente mas sistematicamente substituído pelo princípio do financiamento da água pelo preço pago pelo consumidor, como qualquer outro bem ou serviço mercantil, industrial, privado. O princípio “a água paga a água”, acoplado ao do “o poluidor paga”, demonstraram suas falhas estruturais e sua inadequação quanto à pretendida gestão eficaz e econômica da água, que eles prometeram e asseguraram. Contribuíram unicamente para assegurar os lucros que importam aos capitais privados, aumentando o nível dos custos para os consumidores e deteriorando as finanças das coletividades territoriais cada vez mais escravizadas à busca contraditória de “lucros pela água” e derrotados em termos de sua autonomia política. Além disso, não impediram o agravamento dos fenômenos de contaminação e poluição da água, bem como seu desperdício e escassez.
Tese 9. O princípio do direito à água “a preços acessíveis” é uma mistificação pois, além da insustentabilidade da tese sobre a obrigação do “consumidor” de pagar o direito à água definido nos termos acima especificados, ele consagra legalmente o fato de que a acessibilidade da água é determinada pelos critérios de rendimento financeiro fixados pelos mercados. Mistificação também no que concerne a “tarifação da água dita social” em favor de pessoas, famílias e categorias definidas como “desfavorecidas”, pobres, incapazes de pagar os custos e, portanto, com risco de cortes de água. Aqui, a mistificação é ainda maior porque significa que nossas sociedades se arrogam o poder de lançar no mercado o acesso à água em bases excepcionais, enquanto forçam as pessoas empobrecidas a pagar um preço, mesmo que simbólico. Em outras palavras, as autoridades públicas atuam na esfera da caridade, da assistência social, embora esta seja uma questão estritamente do campo dos direitos. Não se respeitam direitos fazendo caridade.
Tese 10. A monetização da natureza (nature pricingnature banking), ou seja, medir em termos monetários os chamados custos e benefícios ambientais de todos os seres vivos (incluindo os ecossistemas aquáticos), explicitamente aprovada durante a resolução final da 3ª Cúpula da Terra no Rio de Janeiro (2012), inscreve-se totalmente na lógica da mercantilização, privatização e financeirização da vida. Deve ser fortemente questionada, porque representa um novo passo adiante, inaceitável, na submissão do destino da água, da vida, às concepções extrativistas, financistas e predatórias da vida. Trata-se aqui de assegurar, também, o futuro da democracia e da justiça.
Tese 11. O direito humano universal à água para a vida deve ser garantido e assegurado segundo uma concepção dos direitos pluridimensionais. Ele se traduz por um sistema de regulação em quatro níveis:
– O nível do direito de até 50 litros por pessoa, por diaNeste nível, os custos envolvidos são atribuídos à coletividade por meio da tributação. Para isso, é preciso abolir os paraísos fiscais, acabar com as reduções e incentivos fiscais para as empresas privadas que atuam no mercado de ações, remunicipalizar os sistemas de poupança e bancos de crédito locais, colocar na ilegalidade os derivativos…
– O nível do bem-estar coletivo fundamentado, entre outros, na segurança hídrica das comunidades humanas e do consumo entre 50 e 120 litros por dia, por pessoa
Nesse nível, as autoridades públicas são autorizadas a demandar de todos os cidadãos a contribuição financeira dos custos de salvaguarda da água pelo pagamento de uma taxa anual fixa (a taxa de responsabilidade hídrica).
– O nível de bem-estar individual, entre 120 e 250 litros por dia, por pessoaNesse nível, tratando-se de uma quantidade de água individual importante, cujo impacto sobre o ambiente e o modo de vida deve ser rigorosamente controlado, os cidadãos devem contribuir com o financiamento com uma taxa progressiva cujo objetivo será, entre outros, aumentar a conscientização sobre a necessidade de um estilo de vida sóbrio, respeitando os imperativos ambientais e da vida em coletividade.
– O nível (além dos 250 litros por dia, por pessoa) do uso insustentável para o bom estado dos corpos hídricos e o bom funcionamento das bacias hídricasNesse nível, é preciso abandonar o princípio “o poluidor paga” e adotar o princípio da interdição. Mesmo quando se paga, não podemos prejudicar a integridade da água e sua regeneração (ver tese 4).
Tese 12. Em conformidade com as concepções e às práticas consolidadas no decorrer do tempo em todas as sociedades, propõe-se respeitar a seguinte hierarquia quanto aos usos da água:
1. Usos domésticos (água potável, higiene, alimentação, saúde…)
2. Usos na agricultura: essencialmente irrigação e criação de animais…
3. Atividades industriais, inclusive produção de energia
4. Atividades terciárias, especialmente turismo.
Tese 13. No caso de “estresse hídrico” – segundo a definição da ONU, trata-se da situação de uma comunidade humana dispondo de menos de 1000 m³ por ano por pessoa para todos os usos – não se pode estimar que a solução virá essencialmente do recurso às soluções tecnológicas visando o aumento da oferta de água, tais como a melhora da produtividade hídrica na agricultura, a redução de perdas e desperdícios de rede, a dessalinização da água do mar, a produção de água por meio da captura em grande escala da umidade, o transporte de água por longas distâncias (no mesmo modelo de petróleo e gás). Nem a solução deverá vir das técnicas de gestão capitalistas, como a gestão da demanda de água pelo preço ao consumidor, os bancos de água, os mercados de água. A cocacolização da água, usada para refrigerantes e águas minerais engarrafadas, demonstrou largamente sua inconsistência e seus riscos.
Tese 14. A mesma proposta vale no caso de “penúria de água” (definida como a situação de uma comunidade humana que disponha menos de 500 m³ por ano por pessoa para todos os usos). A monetização e a bancarização não passam de instrumentos inventados pelos grupos sociais fortes do sistema econômico e político dominante, que lhes permite dispor e ter acesso à água rara/escassa de modo a satisfazer unicamente suas necessidades vitais, seu bem-estar e seus interesses de poder.
Tese 15. As soluções devem vir essencialmente de uma mudança radical na maneira de “pensar a água”, segundo as linhas examinadas e propostas neste trabalho, em particular segundo os três princípios gerais mencionados:
– a água para a vida deve ser reconhecida e tratada como um bem comum público mundial
– a disponibilidade e o acesso/uso da água devem ser considerados e realizados concretamente como um direito universal para todos os habitantes da terra, todas as espécies vivas
– a água enquanto tal também tem direitos.
Tese 16. Todos os usos da água, segundo as prioridades acima, devem respeitar os princípios da sustentabilidade da vida (regeneração…), da responsabilidade coletiva e individual/comunitária, da justiça social e da igualdade em relação aos direitos, da democracia participativa efetiva, da sobriedade, da precaução.
Tese 17. A água de irrigação para produtos agrícolas de exportação e os hábitos alimentares esbanjadores e devastadores dos consumidores das classes sociais abastadas não podem ser uma prioridade, como ocorre hoje. Da mesma forma, a água usada para produzir vegetais destinados à produção de combustível para os transportes rodoviários não pode figurar entre os usos prioritários. É urgente reconstruir uma bio-agricultura que valorize localmente, de maneira sustentável, o capital de terra e de água para as necessidades vitais das populações locais no quadro de um sistema de cooperação, troca e partilha sem rivalidade e competição.
Tese 18. O mesmo princípio deve ser aplicado à construção das grandes barragens para a produção de água para a irrigação segundo os moldes de uso não sustentáveis atuais, ou para a produção de eletricidade para as indústrias de mineração, agroalimentar e química, ou atividades militares. É inaceitável que centenas de milhões de pessoas, na África, América Latina e Ásia não tenham acesso à eletricidade, pois suas terras e águas estão entre as principais fontes de produção de eletricidade do mundo, para alimentar as indústrias mencionadas.
Tese 19. Apoiados no princípio da soberania, os Estados atuais são incapazes de reconhecer que as águas situadas sobre seu território devem ser salvaguardadas e valorizadas no que diz respeito à vida global sobre a Terra e aos direitos de todos seus habitantes. Isso se traduz hoje na impossibilidade de conceber, ou de realizar, uma política mundial cooperativa e solidária de água.
Tese 20. Face à crescente escassez de boa água, o conceito de segurança hídrica pensado e defendido pelos Estados é o da segurança nacional. O mesmo quanto à segurança alimentar, energética, econômica. É urgente e indispensável eliminar os obstáculos profundos construídos por tal visão de segurança, em favor da concepção e promoção da segurança coletiva mundial. Com esse objetivo, a proposta é criar um Conselho da Segurança dos Bens Comuns Públicos Mundiais, a partir da água, das sementes e do conhecimento.
Tese 21. Em vista da globalização desigual e predadora atual, a abordagem multilateral e interestatal aplicada à política da água tornou-se inadequada e inapropriada — ainda mais porque o poder político efetivo não está mais concentrado nos Estados, nas instituições políticas públicas. Após as sucessivas concessões feitas pelos Estados em todos os terrenos, o poder político real passou às mãos de grandes organizações privadas, empreendimentos multinacionais mundiais e mercados financeiros globais. Exemplo emblemático entre todos: o Forum Mundial da Água, organização privada dominada pelo mundo do business e das finanças, substituiu a ONU — com o acordo e a cumplicidade dos Estados — como a principal ágora do mundo para debates e propostas sobre questões relativas aos problemas, desafios e prioridades da água em escala mundial. É necessário que a ONU recupere seu papel de sujeito público “mundial” e que seja profundamente mudado o Pacto Global nesse domínio assinado em 2000 entre a ONU e as corporações multinacionais privadas.
Tese 22. É urgente construir um sistema planetário plural, participativo, em rede, para regulação política mundial da água, no quadro de uma regulação mais ampla que cubra a terra e as sementes, e o conhecimento (veja tese 20). Este sistema pode denominar-se Ágora Planetária, Conselho de Segurança Mundial ou o que seja. Sua missão, a definir de maneira clara e precisa, será tripla: legislativa, programática, judiciária. Essas competências e meios serão gradualmente colocados em prática com base na avaliação das experiências realizadas. É assim que o sistema poderá contribuir com o crescimento de uma regulação do futuro da vida em nome da humanidade e do conjunto da comunidade geral da vida na Terra, em alternativa à regulação atual imposta em nome do dinheiro e dos interesses de grupos sociais e de oligarquias dos Estados mais poderosos.
Tese 23. As experiências em andamento em matéria de governo cooperativo das águas transnacionais e interregionais – principalmente as dezenas de organizações de bacias hidrográficas pelo mundo – são de grande utilidade para definir as configurações possíveis das instituições de regulação mencionadas. Elas destacam o fato de que, para tornar-se aceitáveis e estáveis, as configurações deverão respeitar os princípios da vida em sua integridade e globalidade, o papel da autonomia complementar que liga as múltiplas entidades membros do sistema, cuja liberdade será real de acordo com sua cooperação com os outros, a primazia da segurança coletiva comum e, consequentemente, o privilégio da memória nacional, a justiça social, a não mercantilização da água e a não privatização do governo das diferentes fases do longo ciclo da água.
Tese 24. Um papel capital na pesquisa e na construção de uma regulação política, econômica e social da água deve ser desempenhado pelas cidades, particularmente as grandes cidades da África, América Latina e Ásia. Em 2050, segundo pesquisa publicada na Nature Sustainability (fevereiro de 2018), os habitantes de aproximadamente 300 a 482 cidades mais populosas do mundo não terão acesso à água potável e aos serviços higiênico-sanitários de base. Trata-se de um cenário absurdo. Nossas sociedades não podem deixar de reagir com força. É seu dever improcrastinável a produção de um programa de ação de envergadura planetária que possa chamar-se a Água urbana 2020, pois a proposição será lançada em 2020 por uma ágora de cidades, por ocasião do décimo aniversário do reconhecimento do direito universal à água pela ONU.
Tese 25. Nesse contexto, e fazendo referência à água potável, é indispensável opor-se à tendência que se afirma até hoje e que consiste na substituição, para beber, da água de torneira pela água mineral natural e de fonte em garrafa. Uma publicidade agressiva e enganosa conseguiu fazer as pessoas acreditarem que a água engarrafada é melhor para a saúde do que a água de torneira, o que é completamente falso. Na realidade, só a água de torneira é potável por definição — no sentido de que é tratada segundo os critérios de potabilidade definidos pelas autoridades públicas. Ao contrário, as águas minerais naturais em garrafa não são tratadas para tornar-se conformes aos critérios de potabilidade, pois sua estrutura bio-química é permanente, portanto não precisam ser engarrafadas ao sair da fonte. Elas podem ser bebidas, mas se usadas regularmente no lugar da água da torneira, isso deve ser feito ser sob supervisão médica. Depois de sua injustificável privatização – pelas concessões de exploração de longo prazo, remuneradas por uma taxa anual irrisória, seu uso comercial atingiu níveis muito altos, excedendo, em alguns países, o percentual de uso de água da torneira. Custam de 200 a 1000 vezes mais do que a água da torneira. Resultado: a água potável é usada nas casas e nos lugares públicos cada vez mais para funções não nobres (o vaso sanitário, os chuveiros, as máquinas de lavar, a lavagem de carros…). Uma situação inaceitável, devida unicamente a uma estratégia de altos lucros permitida pelos poderes públicos, em detrimento das coletividades locais. Os sinais de inversão de tendência parecem se manifestar. É tempo de republicizar e remunicipalizar as águas minerais naturais e de fonte e dar novamente prioridade ao uso da água potável nas casas e nos lugares públicos com o uso da água local.
Tese 26. Não se pode concluir sem mencionar a questão da água virtual, a saber a água necessária para produzir um bem ou um serviço que podemos substituir — seja comprando localmente ou tendo acesso aos bens e serviços de outros. Essa noção deu vida a reflexões importantes na questão de avaliação na escolha de prioridades a estabelecer entre produção direta ou compra/importação de bens e serviços em função da política de água (conservação, proteção da qualidade da água, objetivos ambientais, regimes de propriedade, participação dos cidadãos, cooperação entre os povos…). É lamentável que os aspectos comerciais e financeiros tenham dominado até agora os debates sobre a água virtual. Cabe aos poderes legislativos locais e regionais legislar sobre essa área e também enfatizar a importância de outros aspectos.
Tese 27. A água, como a terra, as sementes, as plantas, os animais, os seres humanos são parte da grande comunidade da vida na Terra. A essa comunidade corresponde um universo múltiplo e complexo de funções, direitos, responsabilidades em todos os níveis espaciais de organização da vida. Numa perspectiva humana, os princípios unificadores permitem a esse universo “viver bem” sem rupturas “existenciais” frequentes e sem conflitos destrutivos, uma vez que seu funcionamento é inspirado e guiado pelos princípios de complementariedade, cooperação, segurança comum, compartilhamento, solidariedade, tolerância, não violência, liberdade comum.
Isso significa que não podemos deixar o futuro do mundo e da vida sobre a Terra sob os princípios de rivalidade e de exclusão, de dominação e de predação, de escassez e apropriação autocrática, próprias do sistema econômico dominante hoje e principalmente de suas lógicas financeiras e mercantis. É preciso libertar a água e o direito à vida das finanças atuais e de seu controle mortal.
 (fonte: https://outraspalavras.net/destaques/agua-as-27-teses-subversivas/)

sábado, 17 de março de 2018

Novo número da revista Espaço Acadêmico

Revista Espaço Acadêmico
v. 17, n. 202 (2018): Revista Espaço Acadêmico, n. 202, março de 2018
Sumário
http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/issue/view/1490

antropologia
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O pensamento decolonial: análise, desafios e perspectivas (01-11)
        Maurício de Novais Reis,        Marcilea Freitas Ferraz de Andrade

arquitetura e urbanismo
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Los jardines históricos del periodo moderno de Brasil, las obras de Roberto
Burle Marx (12-32)
        Joelmir Marques da Silva

ciência política
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O que é Poder Político? (33-61)
        Antonio Ozaí da Silva

educação
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Cultura, Arte e Educação: identidades emancipatórias (62-73)
        Roney Gusmão,   Célio Meira

história do brasil
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"O Popular" e "Folha de Goiaz": o sucesso na produção de hegemonia e as
contribuições para a formação de uma sociedade civil em Goiás
(1930-1960) (74-84)
        Darlos Fernandes Nascimento

saúde
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O profissional de Educação Física na área da saúde (85-96)
        Danilo Lutiano Valerio, Luzia Mêire Ferreira Rall

sociologia
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Gilberto Gil e a reconstrução artística – política do conceito de
negritude em “Refavela”. (97-111)
        Christian Ribeiro
Introdução à teoria da democracia de conselhos (112-124)
        Natalia Scartezini
A criminalização dos movimentos sociais (125-136)
        Nildo Viana

sociologia da literatura
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Coronelismo e as mudanças identitárias na obra "O tempo é chegado", de
Euclides Neto (137-147)
        Juliana Cristina Ferreira

sociologia do trabalho
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Precarização e exploração do trabalho na (des)governança temerária
(148-154)
        Renato Nunes Bittencourt

resenhas & livros
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BARBOSA, Jefferson Rodrigues; GONÇALVES, Leandro Pereira; VIANNA, Marly de
Almeida; CUNHA, Paulo Ribeiro da. (Orgs.) Militares e política no Brasil.
São Paulo: Editora Expressão Popular, 2018 (500 p.) (155)
        REA Editor