Ao abrir hoje cedo o boletim do Observatório da Imprensa, deparei-me com o artigo de minha conterrânea, amiga e colaboradora Ana Cláudia Vargas. Apesar do grande número de parentêses, tema que já mereceu um puxão de orelhas carinhoso e - acreditem! - ela já conseguiu reduzir, o texto é gostoso de se ler e merece aprofundamento. Candidatos e candidatas, aproveitem o Comentários, lá embaixo, para darem seus pitacos. Eu e a autora agradecemos!
Ah... e quem gostou e quer conhecer mais a autora, vá até o blog dela:
Na senzala com Danuza
Por Ana Claudia Vargas em 04/12/2012 na edição 723
E então Danuza Leão meio que reclamou, na Folha de S.Paulo, do fato de que agora até porteiro de prédio pode viajar para o exterior pagando em não sei quantas vezes a viagem e diante dessa (suposta) facilidade concedida aos seres dessa categoria, ela pergunta: “Qual é a graça?”
E aí ela destrincha uma lista de coisas que antes eram ambições somente dos que tinham grana, mas que hoje estão disponíveis para qualquer um que esteja disposto a parcelar e parcelar. Além das viagens, há os apartamentos, os carros, os brinquedinhos tecnológicos e tudo o mais que pode ser parcelado para que a gente tenha a ilusão de que faz parte disso “tudo”, digo, das benesses da modernidade.
E então, primeiro (guiada pelo senso comum) achei extremamente preconceituosa e fiquei pensando “também sendo ela quem é, só poderia escrever esse tipo de coisa mesmo” etc. (A gente não pode esquecer que ela só se tornou colunista porque há mil anos foi casada com o Samuel Wainer etc. É mais ou menos isso: “Diga-me com quem fostes casada e eu te direi que cargo ocuparás no jornal X.” Apesar disso, se ela está aí há tantos anos e já escreveu até livros, e se seu texto faz com que as pessoas o discutam e escrevem sobre ele é porque ela tem algum talento pra coisa, devo dizer.
Assim, pensando pelo lado do “talento”, acho que ela conseguiu até soar um pouco irônica em alguns trechos e daquele seu modo “carioca burguês” de ser – ela faz uma leve criticazinha à onda consumista que parcela desde alimentos até viagens para África em trocentas vezes e nisso eleva à condição de consumidores não refinados, pessoas que vão à Paris não para apreciar a verdadeira obra de arte a céu aberto que (dizem) é aquela cidade, e sim, para comprar lembrancinhas para os parentes que moram nas periferias paulistanas, cariocas, mineiras e/ou soteropolitanas. Gente que nunca leu Proust ou Flaubert, ora essa!
De cima pra baixo
Enfim, há um bando (e bando é a palavra certa) de gente viajando e consumindo desesperadamente porque é também cada vez maior o desapego das pessoas por coisas como livros (como ela fala no finalzinho, aliás), pela apreciação do “mundo” a partir dos lugares em que moram – por que ser um pé rapado na Europa ainda é mais chique do que ser pé rapado no Brasil? Pois é isso o que (imagino) pensa quem parcela viagens em 250 vezes para a Inglaterra, quando poderia (por que não?) conhecer o interior do Brasil (não estou falando dos lugares turísticos, e sim, de qualquer lugar porque qualquer lugar na França ainda parece valer mais do que os melhores lugares de São Paulo ou Salvador) – digo, serem capazes de “olhar” para seus bairros e cidades com algum apreço e desejo de conhecer mais sobre a história desse lugar.
Talvez a gente ainda precise é aprender a ser brasileiro com alguma estima pelo fato de ter nascido aqui neste país (nada a ver com orgulho e/ou isso de futebol + carnaval + novela brasileira e de achar que nós sempre precisamos criar uma imagem legal para eles, os estrangeiros; quando se sabe que eles vendem a imagem que querem pro resto do mundo e não estão nem aí). Mas quem não enxerga seu próprio país é certo que vai sair aí pelo mundo não enxergando muita coisa. Aliás, na atual conjuntura, quem é que está querendo enxergar alguma coisa, não é mesmo? O importante é consumir bastante, viajar e postar no Face as fotos diante dos pontos turísticos: “ver e ser visto”.
A Danuza talvez esteja certa ao olhar pra tudo isso com o velho desdém (como disse, não podemos esperar muito dela, não é o caso) de quem sempre “viu” (?) este país de cima pra baixo (como acontece com quase todos os nossos colunistas), afinal, para quem esteve sempre acostumada a ser especial saber que essa frágil condição está cada vez mais ameaçada nesse nosso pós-moderno, pré- apocalíptico e suspenso em ondas de violência lá na Faixa de Gaza e aqui, na perifa paulistana não deve ser fácil.
Todo ser humano deveria ser especial
Para terminar: que bom seria se todos os humanos – afinal, não somos todos “humanos”? Ou uns são mais humanos que outros? – pudessem sempre e sempre viajar para a Europa ou pra Quixeramobim, comer em lugares refinados, estudar em boas escolas, ouvir boa música, mas para isso precisaríamos nos humanizar (estranho isso, visto que a priori já somos humanos) e querer criar guetos e separações – como estamos vendo isso não tem dado certo com os palestinos e israelenses, eles também se acham uns mais especiais que os outros; do mesmo modo que os alemães em relação aos judeus e etc. – não é a melhor saída, penso eu.
E, apesar da ironia e de ter sido capaz de “ver” isso no texto com uma ajudinha (é bom ter amigos inteligentes, rs) eu ainda acho que a Danuza, bem lá no fundo, deve ter uma baita saudade dos tempos em que cada pessoa sabia “o seu lugar”. Do tempo em que empregadas domésticas eram obrigadas a dormir no emprego, do tempo em que brancos e negros eram somente brancos e negros e por aí afora. Talvez ela devesse se mudar pra Índia porque apesar das mudanças (ah, pós-modernidade, quantas guerras étnicas e outras ainda vais causar?!) lá as tais castas ainda insistem e resistem e foi há pouco que (por exemplo) o estupro de mulheres de certas castas por homens de castas superiores se tornou crime (quer dizer as mulheres estão batalhando para que isso ocorra, de fato).
Viajei? Acho que um pouquinho, né? É que ainda acho que todo ser humano deveria ser especial e enquanto a gente não souber enxergar isso uns nos outros, o mundo vai continuar sendo isso aí que tem sido e eu não vejo graça nenhuma em saber disso.
Com ou sem ironia.
***
[Ana Claudia Vargas é escritora e jornalista, Osasco, SP]
E aí ela destrincha uma lista de coisas que antes eram ambições somente dos que tinham grana, mas que hoje estão disponíveis para qualquer um que esteja disposto a parcelar e parcelar. Além das viagens, há os apartamentos, os carros, os brinquedinhos tecnológicos e tudo o mais que pode ser parcelado para que a gente tenha a ilusão de que faz parte disso “tudo”, digo, das benesses da modernidade.
E então, primeiro (guiada pelo senso comum) achei extremamente preconceituosa e fiquei pensando “também sendo ela quem é, só poderia escrever esse tipo de coisa mesmo” etc. (A gente não pode esquecer que ela só se tornou colunista porque há mil anos foi casada com o Samuel Wainer etc. É mais ou menos isso: “Diga-me com quem fostes casada e eu te direi que cargo ocuparás no jornal X.” Apesar disso, se ela está aí há tantos anos e já escreveu até livros, e se seu texto faz com que as pessoas o discutam e escrevem sobre ele é porque ela tem algum talento pra coisa, devo dizer.
Assim, pensando pelo lado do “talento”, acho que ela conseguiu até soar um pouco irônica em alguns trechos e daquele seu modo “carioca burguês” de ser – ela faz uma leve criticazinha à onda consumista que parcela desde alimentos até viagens para África em trocentas vezes e nisso eleva à condição de consumidores não refinados, pessoas que vão à Paris não para apreciar a verdadeira obra de arte a céu aberto que (dizem) é aquela cidade, e sim, para comprar lembrancinhas para os parentes que moram nas periferias paulistanas, cariocas, mineiras e/ou soteropolitanas. Gente que nunca leu Proust ou Flaubert, ora essa!
De cima pra baixo
Enfim, há um bando (e bando é a palavra certa) de gente viajando e consumindo desesperadamente porque é também cada vez maior o desapego das pessoas por coisas como livros (como ela fala no finalzinho, aliás), pela apreciação do “mundo” a partir dos lugares em que moram – por que ser um pé rapado na Europa ainda é mais chique do que ser pé rapado no Brasil? Pois é isso o que (imagino) pensa quem parcela viagens em 250 vezes para a Inglaterra, quando poderia (por que não?) conhecer o interior do Brasil (não estou falando dos lugares turísticos, e sim, de qualquer lugar porque qualquer lugar na França ainda parece valer mais do que os melhores lugares de São Paulo ou Salvador) – digo, serem capazes de “olhar” para seus bairros e cidades com algum apreço e desejo de conhecer mais sobre a história desse lugar.
Talvez a gente ainda precise é aprender a ser brasileiro com alguma estima pelo fato de ter nascido aqui neste país (nada a ver com orgulho e/ou isso de futebol + carnaval + novela brasileira e de achar que nós sempre precisamos criar uma imagem legal para eles, os estrangeiros; quando se sabe que eles vendem a imagem que querem pro resto do mundo e não estão nem aí). Mas quem não enxerga seu próprio país é certo que vai sair aí pelo mundo não enxergando muita coisa. Aliás, na atual conjuntura, quem é que está querendo enxergar alguma coisa, não é mesmo? O importante é consumir bastante, viajar e postar no Face as fotos diante dos pontos turísticos: “ver e ser visto”.
A Danuza talvez esteja certa ao olhar pra tudo isso com o velho desdém (como disse, não podemos esperar muito dela, não é o caso) de quem sempre “viu” (?) este país de cima pra baixo (como acontece com quase todos os nossos colunistas), afinal, para quem esteve sempre acostumada a ser especial saber que essa frágil condição está cada vez mais ameaçada nesse nosso pós-moderno, pré- apocalíptico e suspenso em ondas de violência lá na Faixa de Gaza e aqui, na perifa paulistana não deve ser fácil.
Todo ser humano deveria ser especial
Para terminar: que bom seria se todos os humanos – afinal, não somos todos “humanos”? Ou uns são mais humanos que outros? – pudessem sempre e sempre viajar para a Europa ou pra Quixeramobim, comer em lugares refinados, estudar em boas escolas, ouvir boa música, mas para isso precisaríamos nos humanizar (estranho isso, visto que a priori já somos humanos) e querer criar guetos e separações – como estamos vendo isso não tem dado certo com os palestinos e israelenses, eles também se acham uns mais especiais que os outros; do mesmo modo que os alemães em relação aos judeus e etc. – não é a melhor saída, penso eu.
E, apesar da ironia e de ter sido capaz de “ver” isso no texto com uma ajudinha (é bom ter amigos inteligentes, rs) eu ainda acho que a Danuza, bem lá no fundo, deve ter uma baita saudade dos tempos em que cada pessoa sabia “o seu lugar”. Do tempo em que empregadas domésticas eram obrigadas a dormir no emprego, do tempo em que brancos e negros eram somente brancos e negros e por aí afora. Talvez ela devesse se mudar pra Índia porque apesar das mudanças (ah, pós-modernidade, quantas guerras étnicas e outras ainda vais causar?!) lá as tais castas ainda insistem e resistem e foi há pouco que (por exemplo) o estupro de mulheres de certas castas por homens de castas superiores se tornou crime (quer dizer as mulheres estão batalhando para que isso ocorra, de fato).
Viajei? Acho que um pouquinho, né? É que ainda acho que todo ser humano deveria ser especial e enquanto a gente não souber enxergar isso uns nos outros, o mundo vai continuar sendo isso aí que tem sido e eu não vejo graça nenhuma em saber disso.
Com ou sem ironia.
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[Ana Claudia Vargas é escritora e jornalista, Osasco, SP]
Acho um tanto quanto doyleana essa "vontade" que algumas pessoas tem de retornar à "Inglaterra Vitoriana" - ou o "Brasil do cacau", ou a época da ditadura, ou da pré-ditadura, ou da pós-ditadura, enfim. O mundo era mais simples, é fato. Mas esse doyleanismo só ocorre em quem estava "por cima da carne seca" e perdeu (se é que perdeu) algo. É patético, de fato. Me lembra a expressão "geração ponche-e-conguinha" (ou "os que estão voltando a pé do Woodstock"), referindo-se às pessoas que pararam no tempo. Bacana o texto, bela reflexão!
ResponderExcluirMuito gostoso o texto mesmo.
ResponderExcluirMas eu acredito que é bem a´lida essa vontade de sair do Brasil. Inclusive de qualquer um sair do Brasil, mesmo pagando 250 prestações de não sei quanto.
Explico!
Por que ao sair do Brasil e indo para um país onde as coisas funcionem melhor, transporte por exemplo, se aprenda a QUERER fazer melhor para termos igual.
Quem sabe que ao sair do país a pessoa aprenda, ou melhor, entenda que somos um povo que temos tudo de melhor, mas que não compreendemos essa questão!