por Leonardo Wexell Severo
Uma denúncia sobre “explosivos mal armazenados” fez com que no dia 5 de
julho de 2005 funcionários da Procuradoria de Direitos Humanos (PDH)
entrassem em um velho paiol abandonado, infestado de ratos, no centro da
capital guatemalteca. Então, o que era para ser uma investigação de
rotina se transformou na maior descoberta sobre a política de terrorismo
de Estado praticada pela oligarquia, com apoio da CIA, contra
“subversivos”, “esquerdistas” e “comunistas” no continente. A
verdadedocumentada em 80 milhões de páginas continha os pormenores de
décadas de perseguições, torturas, desaparecimentos e assassinatos de
oposicionistas.
A memória do crime estava ali, abandonada para
ser decomposta pela umidade e pelo tempo. A recordação depositada em
pilhas de mais de três metros de altura, nos cinco edifícios antes
pertencentes à Polícia Nacional. A rica trajetória da resistência
popular deixada ao léu para ser roída. A lembrança escondida pela
principal “seção” das “forças de segurança” durante os 30 anos da guerra
suja que deixou mais de 250 mil mortos. “Forças” desmanteladas por
exigência do acordo de paz de 1996 firmado pelo governo com a guerrilha.
Retrato de um país convertido “numa imensa sepultura sem nome”, nas
palavras da analista Kate Doyle, diretora do Projeto de Documentação da
Guatemala.
“Quando visitei o lugar no começo de agosto, vi
armários inteiros classificados segundo o tema: ‘Assassinatos’,
‘Desaparecidos’ e ‘Homicídios’, assim como expedientes assinalando nomes
de pessoas internacionalmente conhecidas, de vítimas de assassinato
político”, descreve a arquivista-chefe e conselheira do Arquivo de
Segurança Nacional dos EUA, Trudy Huskamp Peterson. Conforme relatou
Peterson, nos “Arquivos da Polícia”, “havia fotografias de corpos e
presos, listas de informantes da polícia com nome e foto, montes de
habilitações de motorista, fitas de vídeos e disquetes de computadores”.
E mais, listas com nomes de filhos de guerrilheiros mortos e das
famílias que os adotaram como seus ou simplesmente para servi-los.
HERÓIS ANÔNIMOS
Desafiadora, a verdade sobreviveu, em meio à
manipulação midiática, ao pó, aos insetos e às fezes de morcegos.
Dezenas de milhares daqueles homens e mulheres que posteriormente iriam
ser reduzidos à sigla NN (nome nenhum) estão ali muito bem
identificados, com sobrenome, endereço, telefone, hábitos, preferências.
Também há gente de renome, como o advogado trabalhista Mario López
Larrave, assessor do Comitê Nacional de Unidade Sindical (CNUS),
metralhado quando saía do seu escritório em 8 de junho de 1977; o
ex-prefeito da capital guatemalteca e líder oposicionista Manuel Colom
Argueta, assassinado em 22 de março de 1979, uma semana após registrar
seu novo partido; e a jovem antropóloga Myrna Mack, que auxiliava os
maias sobreviventes de massacres, apunhalada 27 vezes por um esquadrão
da morte das Forças Armadas da Guatemala, no centro da capital, no dia
11 de setembro de 1990.
Nas cidades, lembra Kate Doyle, a
repressão havia buscado desmembrar a oposição sem deixar rastros
oficiais. “Esquadrões da morte atuavam sem uniformes, em veículos sem
identificação. Os jornais faziam o seu jogo noticiando cada novo cadáver
como ‘homens sem identificação com roupas de civil’. Assassinos
anônimos retiravam a identidade de suas vítimas, deformando
completamente rostos e cortando as mãos, ou os sequestravam e jogavam
seus corpos no esquecimento de barrancos, lagos e fossas comuns”.
COMISSÃO DA VERDADE
Se
chegaram tarde para contribuir com a “Comissão da Verdade” -
patrocinada pela ONU, em 1997 – os “Arquivos da Polícia” auxiliam no
restabelecimento da verdade histórica, fundamental para a vitória da
Justiça e a derrota da impunidade. A Comissão foi inviabilizada pelos
militares, serviços de Inteligência e Segurança, que alegavam que tais
documentos tinham sido destruídos ou simplesmente nunca haviam existido.
E foi deliberadamente sabotada pelo governo dos Estados Unidos – que
liberou apenas 1.400 das cerca de 100 mil páginas de documentos sobre a
atuação da CIA no país centro-americano. Sem ter acesso ao conjunto das
informações, a avaliação apresentada pela Comissão no final de 1999
ficou extremamente limitada.
Concluído em 2011, o informe “Do silêncio à memória: revelações do
Arquivo Histórico da Polícia Nacional” contou com o apoio do Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pôde avançar,
explicitando alguns pormenores da participação estadunidense. Entre
eles, a atuação do governo dos EUA para assegurar a coordenação entre as
diversas - e dispersas – forças da repressão guatemaltecas: as polícias
Nacional, Judicial, Militar e o Exército. “Tal coordenação surgiu com a
assessoria da Oficina para a Segurança Pública (OPS) da USAID (Agência
dos Estados Unidos para o Desenvolvimento), estabelecida pelo governo
norte-americano como mecanismo para supervisionar o treinamento das
forças policiais a nível internacional”, assinala o documento. Como
revelou a jornalista e escritora argentina Stella Caloni, “a USAID foi
utilizada durante o governo Reagan para dar uma fachada de legalidade às
ações encobertas da CIA, que transformou a Guatemala em laboratório do
terrorismo direitista”.
O informe mensal de Segurança Pública de
março de 1966, desclassificado (um documento secreto, tornado público)
pelo Departamento de Estado dos EUA, mostra que a parceria
policial-militar foi iniciada muito antes e descreve os “vários tipos de
formação policial dada pela OPS para o controle de multidões, uso de
gás lacrimogêneo e emprego de armas antimotins”.
Outro documento
desclassificado na mesma data, confirma o envolvimento da CIA na
“Operação Limpeza” contra expoentes da oposição ao regime. Entre outros,
revela o texto, “os seguintes comunistas e terroristas guatemaltecos
foram executados secretamente pelas autoridades guatemaltecas na noite
de 6 de março de 1966: Víctor Manuel Gutiérrez Garbin, líder do grupo
PGT que vivia no exílio no México; Francisco ‘Paco’ Amado Granados,
líder do Movimento Revolucionário 13 de Novembro (MR-13) e Carlos
Barillas Sosa, meio-irmão de Yon Sosa, dirigente do MR-13”.
MEMÓRIA, ESPAÇO DE LUTA POLÍTICA
Frisando que “a memória é um
espaço de luta política”, o advogado e intelectual paraguaio Martín
Almada recorda que as ditaduras da região agiram como “gestoras da
instalação das multinacionais, que criaram as condições para a entrada
do modelo neoliberal”. Por isso, avalia, “foram capatazes dos Estados
Unidos, mordomos dos terroristas”. Com o mesmo intuito das atrocidades
na América Central, esclarece Almada, “tivemos no Cone Sul a Operação
Condor, por meio da qual as ditaduras estabeleceram um sistema de
controle, espionagem e prisões ilegais que levou à tortura e ao
assassinato de centenas de milhares de civis”. Foi ele quem descobriu os
“Arquivos do Terror” paraguaios, no dia 22 de dezembro de 1992, em um
departamento da Polícia nas imediações de Assunção. Mais de 700 mil
documentos comprovando o “pacto criminoso”. “Encontramos documentação da
CIA desde seu primeiro dia em 1956 até 1992”, relatou. Prêmio Nobel
Alternativo da Paz, Almada acredita que o momento é de ação para
“superar um modelo que gera riqueza e distribui pobreza, e é isso o que
eles temem”. “Nossos sonhos de liberdade seguem sendo seu maior
pesadelo”, enfatiza.
No caso da Operação Condor, recorda o
advogado, os EUA colocaram seus especialistas em “serviços técnicos” da
CIA para subministrar “equipamentos de tortura elétrica, com
assessoramento até mesmo sobre o grau de choques que o corpo humano
poderia resistir”. Afinal, conforme advertiam os professores dos
torturadores, “o ser vivo pode dar informação e um cadáver não”.
Representante
do Ministério Público da Guatemala na acusação movida contra Ríos
Montt, o promotor Orlando López teve a responsabilidade de apresentar as
provas que condenaram o fiel aliado de Washington.
Superando os
traumas e enfrentando as ameaças de morte, mulheres indígenas
sobreviventes foram até o júri dar o seu testemunho dos massacres
ocorridos contra a população maia. Inúmeros fuzilamentos ocorridos nas
suas aldeias, documentados pelo próprio Exército, que os mantinha como
troféus de guerra, já comprovavam. “Abriram fogo contra os adultos e
jogaram bebês no rio para que se afogassem, acusando a todos de
guerrilheiros”, relatou uma. “Fui estuprada por cerca de 20 soldados,
até que perdi a consciência”, declarou outra. E outra mais acrescentou
que num destacamento militar em Visan, Nebaj, presenciou “os soldados
tirarem a cabeça de uma anciã e brincarem com ela”. “Isso jamais poderei
tirar da minha mente”, sublinhou.
Sobre a responsabilidade de
Ríos Montt nos crimes, lembra o promotor, “além de ser presidente da
República e comandante geral do Exército, ele conservou o cargo de
ministro da Defesa”.
Para López, embora o cumprimento da
sentença esteja sendo postergado devido às articulações mantidas pela
extrema direita na Corte de Constitucionalidade, o impacto na sociedade
guatemalteca foi “muito positivo”. “Tanto a impunidade como a corrupção
são dois flagelos que estão enraizados e que caminham de mãos dadas”.
Mas agora, a partir deste julgamento, acredita o promotor, “se envia uma
mensagem de não à impunidade, de que se podemos julgar fatos que
ocorreram há trinta anos, também se deveriam julgar ou esclarecer
acontecimentos ocorridos recentemente”.
Diante do risco de que a
Justiça, enfim, prevaleça, a mídia guatemalteca ligou sua metralhadora
giratória, fazendo abundar factóides contra o promotor e a Promotoria,
na tentativa de que a sua massificação possa desqualificar o julgamento e
fazer o processo retroceder.
Diferente dos “equipamentos”
utilizados para dobrar com sangue e dor a resistência dos povos,
assinala Stella Caloni, o bombardeio midiático tem se revelado mais
sofisticado e sistemático, pois se multiplica via jornais e revistas,
emissoras de rádio e televisão e portais de internet que elevam à
enésima potência a propaganda do inimigo como verdade absoluta.
Mas,
felizmente, Goebbels e os nazistas estavam completamente errados e uma
mentira, apesar de contada mil vezes, jamais se tornará verdade.
O
fato, frisa a jornalista argentina, “é que os grandes conglomerados de
comunicação são hoje instrumentos do governo de Washington para apagar a
memória, desvirtuar a cultura e estimular a submissão à lógica
neoliberal, de privatização e desmonte do Estado”. Daí a importância de
ampliarmos a denúncia da ação dos monopólios midiáticos e de
fortalecermos a mobilização pela regulação e democratização dos meios de
comunicação. Porque, mais do que nunca, enfatiza Caloni, “a
desinformação é uma arma de guerra do Pentágono”.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/A-verdade-ainda-que-tardia-a-descoberta-dos-arquivos-do-terror-na-Guatemala/6/33888)
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