Como um príncipe audacioso e temerário assumiu na prática o poder
na Arábia Saudita. Por que ele ameaça prolongar a agressão ao Iêmen e
incendiar o Oriente Médio, com o apoio de Washington
Por Miguel-Anxo Murado, em Contexto y Acción | Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel
A princípio parecia um revoltante caso de overbooking:
em plena noite do sábado, 4 de novembro, os respeitáveis clientes do
Hotel Ritz-Carlton, de Riad, na Arábia Saudita, se viram obrigados a
abandonar apressadamente os seus quartos de diárias entre 1.000 e 14.000
dólares. Tinham que deixar seus lugares para outros não menos ilustres
(ainda que involuntários) hóspedes. Entre eles se incluíam uma dúzia de
príncipes, dezenas de ministros e ex-ministros e algumas centenas de
empresários. Todos eles haviam sido detidos ao longo daquele dia, no
maior expurgo que se tem notícia na não tão longa nem tão pacífica
história da Arábia Saudita. Mesmo que seja só dessa vez, os que dizem
que há prisões que parecem hotéis de cinco estrelas agora estão
literalmente certos.
Ainda que as autoridades insistam em
apresentar a blitz como uma campanha contra a corrupção [versão
imediatamente comprada pela grande mídia brasileira], trata-se, a bem da
verdade, de episódio de uma encarniçada luta pelo poder. Em termos
concretos, trata-se de uma tentativa do poderoso príncipe herdeiro,
Mohammed bin Salman (MbS), para se consolidar no caminho do trono, que
em breve pode vir a ser rematado. Não obstante, a escalada dessa “noite dos longos punhais”
foi de tal magnitude que coisa assim ainda não tinha sido vista no país
― e não porque a Arábia Saudita seja algum poço de tranquilidade. Seus
desdobramentos na política externa, que já alcançam o Líbano, podem vir a
ser consideravelmente desestabilizadores.
Para se entender a
estranha política desse país é preciso, antes de mais nada, ir à árvore
familiar, porque os conflitos aí são mais genealógicos que ideológicos.
Não é por acaso que o nome do país seja um sobrenome familiar. Arábia
Saudita é, de fato, a propriedade da família al-Saud; e ela deteve o
poder no curso de não mais que três gerações. Ainda que pareça um país
“antigo”, a Arábia Saudita só existe a partir de 1932. Esse curto
período, no entanto, foi suficiente para dar à luz uma família de tal
forma extensa que a partilha dos frutos do poder pode não ser sempre
satisfatória. Abdulaziz Ibn Saud, o fundador da dinastia, teve, só ele,
uma centena de filhos, metade deles homens. Atualmente, entre os 15 mi
membros da família real, há coisa de 5.000 príncipes de sangue, que
consomem o equivalente a 40 bilhões de dólares por ano. Isso significa
uma carga cada vez mais pesada sobre a riqueza do país, em especial
depois de vários anos de baixos preços do petróleo.
Os mecanismos de poder, ou a falta deles, agravam a rivalidade
implícita. A Arábia Saudita não faz uso de um sistema de primogenitura
estrita, e menos ainda de instituições democráticas, de modo que a
sucessão dos reis sempre foi traumática. A do príncipe (MbS), quando
chegue sua hora, não vai a ser uma exceção. Seu pai, o ancião rei
Salman, colocou-o em uma boa posição de saída, não só ao nomeá-lo
herdeiro como também ao lhe dar o ministério da Defesa. No entanto, o
jovem príncipe desperdiçou esse crédito ao lançar o país em uma
desastrosa guerra no Iêmen. Seus tios e primos, com o apoio de setores
importantes do exército e do empresariado, já planejavam sua queda desde
a última primavera. É essa a origem da tal “campanha contra a
corrupção”: trata-se do contragolpe com o qual o príncipe pretende
assegurar a própria sobrevivência.
A personalidade de MbS é a
chave de tudo. A mídia ocidental se esforça para pintá-lo como um
reformista. Os críticos insistem na sua ambição desmedida. O que melhor o
caracteriza, no entanto, é a temeridade, o excesso de imprudência.
Muitos a imputam à sua juventude (nasceu em agosto de 1985), mas parece
que, da maneira como as coisas andam, não teremos a oportunidade de
comprovar se isso vai mudar com os anos. A intervenção no Iêmen teria
sido um desastre mesmo que alcançasse sucesso. E até suas mais bem
intencionadas ideias reformistas até agora não foram mais que impulsivas
e erráticas. Iniciativas como a autorização [extremamente limitada e
condicionada] para que as mulheres dirijam 130 anos depois da invenção
do automóvel [N. do T.: algo que deixara horrorizado e sem ação
o falecido rei Abdalá, ao ser conduzido pela rainha Elizabeth II, em
uma visita ao Reino Unido em 2003, quando esta o levou para passear no
seu Land Rover pelo castelo de Balmoral], ou ainda a limitação do poder
da polícia religiosa, podem até parecer medidas positivas, mas, isoladas
e condescendentes, não constituem parte de qualquer plano efetivo de
transformação de uma sociedade medieval.
De maior calado parecem
ser as mudanças que o príncipe pretende introduzir na economia saudita,
mas nem os objetivos soam realistas, nem os resultados, satisfatórios.
Príncipes e mendigos – Se é preciso buscar
no sangue e no parentesco a lógica das lutas pelo poder na Arábia
Saudita, seu motor, no entanto, está no petróleo e na economia. A Arábia
Saudita é um “Estado do Mal-Estar”: uma espécie de Estado do Bem-Estar
intrinsecamente falido. O setor privado representa a metade do PIB, mas é
controlado de forma rentista pelos príncipes, e emprega quase
exclusivamente imigrantes estrangeiros e sauditas residentes no
exterior, o que mal permite produzir benefícios para a população em
geral, de 32,2 milhões de habitantes. Os sauditas locais trabalham
majoritariamente no setor público, onde os salários são três vezes mais
altos que os dos trabalhadores da iniciativa privada. No entanto, o
mercado de trabalho é de tal forma ineficiente e a sociedade tão
desigual que pelo menos 30% da população vive em estado de pobreza. Em
boa medida para controlar descontentamentos, a energia e outros bens
básicos, como a água, são subsidiados. Uma vez que o petróleo atualmente
não garante mais que uma renda média de 5.000 dólares per capita ao
ano, compreende-se que esse sistema não é sustentável. E provavelmente
não seja reformável, como é usual acontecer com os sistemas rígidos e
hipertrofiados.
O plano de MbS consiste em igualar o mercado de
trabalho, rebaixando em um terço o salário do funcionalismo, reduzir o
gasto público eliminando os subsídios da energia, e privatizar parte da
petroleira pública Aramco, abrindo 5% do seu capital em bolsa, para, com
isso, criar uma “cidade da tecnologia” [comprada como um irreal “pacote
pronto”] nas margens no Mar Vermelho, visando, assim, diversificar a
economia.
Essa “ponte para o futuro” foi batizada de Visão 2030.
Entretanto, não como “visão”, ela está se revelando, antes, como uma
miragem no deserto. Ao se implementarem os cortes nos subsídios da
eletricidade e da água, a resposta da população obrigou seus gestores a
darem marcha a ré. Em abril último, diante dos protestos dos
funcionários, também foi preciso levantar as reduções salariais
impostas. E, finalmente, no que respeita à “cidade da tecnologia”, ela
parece, antes, um reconhecimento das insuficiências da economia saudita
que a sua solução. NEOM, como ficou conhecida, custará 500 bilhões de
dólares e será pilotada por meio de robôs. Pode-se dizer que ela é uma
metáfora do que o reino se tornou: um grande desperdício gerido por
autômatos.
Isso nos leva de volta ao Ritz-Carlton. Foi lá onde se
fez a apresentação, solene e triunfalista, do projeto NEOM. Ao redor
dos canapés se reuniram a elite do empresariado saudita e os rostos mais
conhecidos da família real. Menos de um mês mais tarde, muitos deles
encontram-se compulsoriamente “hospedados” nesse mesmo hotel. No salão
de baile onde foram apresentados os vídeos em 3D do projeto, dormem
agora, sobre colchonetes, os policiais encarregados de vigiá-los.
A obsessão com o Irã – a
política exterior saudita tem muito a ver com a economia, mas esta
última não é determinante da primeira. A guerra do Iêmen, por exemplo,
pode ser explicada em parte pela necessidade de explorar ― dado o
esgotamento virtual dos atuais campos sauditas ― a assim chamada Zona
Vazia, uma vasta área rica em petróleo, que está na fronteira entre os
dois países. No entanto, na geoestratégia regional, falam mais alto os
imperativos religiosos que os interesses econômicos concretos. O Irã, a
grande fixação de Riad, pode até ser uma ameaça real, mas o elemento
chave para explicar a hostilidade saudita é de que se trata de uma
potência xiita, e não uma potência sunita. Isso faz com que, ainda que
não estejam desprovidas de elementos racionais, as estratégias
exteriores sauditas se inclinem mais para a paranoia e para a falta de
comedimento.
Mais uma vez, a personalidade de MbS agrava essa
deriva. A iniciativa que produziu a guerra do Iêmen baseou-se no temor
de que o Irã pudesse convertê-lo em sua base ― algo sobre o quê parece
haver muito poucos indícios. A pressão sobre o Catar, que chegou à beira
da própria guerra, se justificava pela atitude mais amistosa desse
emirado com o Irã. A confrontação acabou tendo o efeito de transformar
aquela amizade em aliança. O mesmo aconteceu na Síria, onde Riad
investiu uma enorme fortuna no apoio a grupos jihadistas sunitas, e o
que conseguiu foi jogar Damasco nos braços de Teerã.
O conflito
atual com o Líbano precisa ser visto nesse contexto de frustração diante
dos repetidos fracassos nesse embate, em parte real, mas em parte
imaginário, com o Irã. Riad interpreta a presença do partido xiita
Hezbolá no governo de Beirute como uma ingerência iraniana. Na
realidade, o Hezbolá participou de vários governos durante anos, sua
força eleitoral e o sistema libanês de governo a partir de quotas
faccionais tornam isso praticamente inevitável. Mesmo os sauditas têm
uma presença constante, provavelmente até maior, na política libanesa.
Eles a exerceram durante anos a fio através da família sunita Hariri;
primeiro por meio do empresário da construção Rafiq Hariri, até seu
ainda não elucidado assassinato em 2005, e a partir de então por seu
filho Saad.
Saad Hariri não é exatamente um entusiasta do
Hezbolá. Afinal, muitos creem que teria sido essa força [outros creem
que foi o Mossad, o serviço secreto de Israel] que teria dado cabo de
seu pai. Entretanto, a política libanesa, por assim dizer, é pragmática,
e em 2009 Hariri firmou um pacto de governo com a milícia xiita,
tornando a fazê-lo no ano passado. Por conta desse pacto, Michel Aoun,
um general cristão maronita, aliado do Hezbolá, tornou-se presidente e o
próprio Hariri tornou-se primeiro ministro. Naquele momento, o acordo
foi entendido como uma trégua entre a Arábia Saudita e o Irã. O que
aconteceu agora, em 4 de novembro, no mesmo dia da “noite dos longos
punhais”, foi que o príncipe MbS decidiu romper a trégua, forçando a
demissão de Hariri.
De que essa demissão tenha sido forçada dá
pistas o fato de que Hariri fez seu anúncio em Riad, por meio da
televisão saudita, e com um discurso de boneco de ventríloquo, no mesmo
estilo da retórica do reino sunita. Pouco antes, o celular do primeiro
ministro libanês ficou repentinamente sem cobertura; e pouco depois o
próprio Hariri desapareceu durante dias, em meio a rumores insistentes
de que teria sido, na verdade, sequestrado pelas autoridades sauditas. É
verdade que demitir-se em circunstâncias pitorescas parece ser uma
especialidade de Saad Hariri. No seu mandato anterior como primeiro
ministro, o fez durante uma reunião com o presidente Obama, no Despacho
Oval da Casa Branca. Dessa vez, no entanto, a coisa é mais grave.
Se
a família Hariri vem sendo testa de ferro de Riad na política libanesa,
o que ganhariam agora os sauditas obrigando-o a se demitir? Uma
hipótese é que Hariri irritou MbS ao se negar a expulsar o Hezbolá do
seu gabinete. Outra, é que se pretenderia substituir Saad por seu irmão
mais velho, Bahaa. Isso é pouco verossímil. Há vários anos, Bahaa
recusou-se a suceder o seu pai à frente do Movimento Futuro, com a
desculpa esfarrapada de que a política libanesa lhe parecia tediosa ―
ela pode ser qualquer coisa, menos isso! O mais provável é que MbS
esteja pondo em prática a sua tática preferida: criar uma situação
caótica, na esperança de que o rio revoltoso acabe lhe beneficiando.
Nesse caso, parece acreditar que, ao forçar uma crise em Beirute, a
instabilidade estimulará Israel a atacar novamente o Hezbolá, como em
2006. Seria melhor que o príncipe se lembrasse de que, naquela ocasião, o
Hezbolá ganhou a parada.
Semear o caos na política libanesa não
chega a ser algo difícil. Com efeito, poderia ser apenas redundante. Os
libaneses estão tão habituados com a instabilidade que, de imediato, não
parece sequer que notem a diferença. Além do mais, ficaram mais de dois
anos sem primeiro ministro, entre 2014 e 2016; alguns dias sem Hariri
não são lá grande coisa. MbS, no entanto, têm outros meios para causar
problemas ao Líbano: como ocorre com outros países do Oriente Médio e do
Norte da África, os sauditas controlam boa parte de sua dívida
nacional. Mesmo que o precedente do assédio ao Catar devesse ter-lhe
ensinado que esse tipo de tática pode ter efeitos francamente
indesejados, os precedentes a respeito do próprio MbS fazem crer que ele
não vai levar isso em conta.
Por outro lado, o contexto favorece
as decisões intempestivas, e outro hóspede recente do Ritz-Carlton tem
muito a ver com isso. Quando Donald Trump visitou a Arábia Saudita em
maio ― sua primeira viaje ao exterior como presidente ―, sua eterna
falta de caráter disfarçada de franqueza entrou em sintonia com a
irresponsabilidade disfarçada de espírito visionário de MbS. O resultado
foi que o príncipe ficou com a impressão de que Trump lhe deu luz verde
para fazer e desfazer no Oriente Médio, e pode até ser que assim seja.
Agora só resta ver até onde chega esse projeto pessoal e contraditório
do “príncipe louco”: uma teocracia com pretensão de parecer moderada;
uma economia do desperdício, reformada por meio de obras megalomaníacas;
e uma diplomacia guiada por medos, mais que por alianças.
(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/ambicao-e-conflito-sobre-um-mar-de-petroleo/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário