por Priscila Villela
A principal marca do governo Trump tem sido os seus apaixonados discursos grosseiros. Sem ‘papas na língua’, o atual presidente norte-americano tem quebrado protocolos atribuídos à sua posição, na medida em que qualifica imigrantes como aqueles que “trazem as drogas, trazem o crime, são estupradores”, contra os quais propôs a construção de um muro. Mais recentemente, ao se referir a países africanos, ao Haiti e a El Salvador, Trump se perguntou: “por que essas pessoas de países de merda vêm para cá?”.
Seus discursos têm chamado a atenção de jornalistas e analistas, que tem atribuído à sua gestão uma postura preconceituosa e intolerante muito diferente daquela adotada pela gestão anterior de Barack Obama. Carismático, despojado e com uma retórica atraente, o último presidente parece ter feito bom uso daquilo que Joseph Nye tem chamado de ‘soft power’.
Donald Trump, por outro lado, tem gerado desconforto entre membros do governo e da comunidade internacional com seus discursos, conforme noticiado nos jornais. Endossando sua visão sobre o tema, o atual presidente anunciou uma nova lei de imigração que suspende o programa Daca (Ação Deferida para Chegadas na Infância), promulgado por Obama em 2012, que concede vistos de estadia e de trabalho, por dois anos, renováveis, aos que chegaram aos Estados Unidos ilegalmente quando crianças. O programa contava, em 2017, com 800 mil beneficiários.
Democratas tem reagido a tais medidas. Ao ouvir o discurso de Trump sobre o tema na ocasião do Estado de União, os democratas acusam o presidente de ferir o ideal americano. “Nós acreditamos que todos são dignos. Essa é a promessa americana”, afirmou o deputado Joe Kennedy, do Partido Democrata. Crime de ódio contra estrangeiros nos Estados Unidos tem sido atribuídos, por Hillary Clinton, às medidas adotadas por Trump.
Ainda assim, cabe a pergunta: em que medida podemos considerar as ações de Trump uma novidade de fato na política migratória norte-americana? Os trechos que destacamos a seguir expressam um pouco o espírito por trás das políticas dos EUA neste campo, que enfatizam políticas de segurança e de fronteira para o controle sobre os imigrantes, bem como o “encargo que os estrangeiros impõem sobre o real cidadão norte-americano”.
“Todos os americanos, não só nos estados mais afetados, mas em todos os lugares do país, são justamente perturbados pelo grande número de estrangeiros ilegais que entram em nosso país. Os empregos que tomam podem estar nas mãos de cidadãos ou imigrantes legais. O serviço público que eles usam impõem encargos aos nossos contribuintes. Por isso, nossa administração se moveu agressivamente para garantir nossas fronteiras através da contratação de um número recorde de novos guardas de fronteira, deportando o dobro de estrangeiros criminosos como nunca antes, reprimindo a contratação ilegal, bloqueando benefícios para o bem-estar a estrangeiros ilegais. No orçamento que eu apresentarei, tentaremos fazer mais para acelerar a deportação de estrangeiros ilegais que são presos por crime. É errado e, em última instância, autodestrutivo para uma nação de imigrantes permitir o tipo de abuso de nossa lei de imigração que vimos nos últimos anos, e devemos fazer mais para detê-la”. (tradução livre, grifos nossos).
“Uma real reforma significa uma segurança de fronteira mais forte e podemos construí-la a partir do progresso que minha administração já alcançou – colocando mais homens na fronteira do Sul do que em qualquer momento da nossa história e reduzindo o cruzamento ilegal para os níveis mais baixos em 40 anos, estabelecendo um caminho responsável para obter a cidadania, um caminho que inclui uma verificação de antecedentes, pagamento de impostos e penalidades significativas, aprendizado de inglês e indo para trás da linha atrás a qual as pessoas tentam cruzar ilegalmente” (tradução livre, grifos nossos)*.
Os discursos proferidos em tais trechos parecem alinhar-se à abordagem de Trump dada ao tema da imigração, mas foram, na verdade, proferidos, respectivamente, por Bill Clinton e Barack Obama.
Uma eventual surpresa em relação aos autores da mensagem revela muito sobre como temos olhado de maneira simplista para as atuais políticas norte-americanas, assumindo como pressuposto o Trump ser um ‘louco’ ou ‘desequilibrado’ para sua função. Os discursos de Clinton e Obama passam uma mensagem muito parecida, com talvez uma certa diferença no tom; são mais finos, elegantes e recorrem menos a adjetivos e termos agressivos.
Vale ainda ressaltar que ambos foram presidentes democratas. Ou seja, ainda que os temas de controle das fronteiras e das imigrações nos Estados Unidos seja usualmente tido como uma pauta conservadora e, portanto, atribuída aos republicanos, de maneira mais ampla, e a Trump de maneira específica, os democratas gabam-se de recordes de fechamento para imigrantes. Vale destacar que Obama encerrou seu mandato com um memorável recorde de deportações, recorde outrora batido no mandato de Clinton. Obama chegou a deportar 2,5 milhões de pessoas entre 2009 e 2015 e chegou a ser apelidado de “deportador chefe” por líderes da comunidade italiana.
Os discursos apaixonados que Trump dedica a seu eleitorado conservador e raivoso atinge o campo de análise sobre o qual nos debruçamos. Sua falta de modos e pudor tem sobressaído como objeto de análises na área, o que, de certa maneira absolve ações tão conservadoras e preconceituosas patrocinadas por seus antecessores, seja na proteção que Clinton prega contra a autodestruição de uma visão sua da “nação de imigrantes”, seja para a limitação do que Obama considerava a responsável forma de “obter a cidadania”. De uma forma geral, há um consenso sobre quem pode fazer parte do “sonho americano”. Você deve estar se perguntando se “é tudo a mesma coisa?” ao se referir a republicanos e democratas. Podemos dizer que em algumas questões, como essa, por exemplo, as diferenças são mínimas e em outros temas, como seguridade social e questões econômicas, as diferenças entre os partidos se apresentem de maneira mais marcante. O importante é que lancemos um olhar cuidadoso na forma como cada um apresenta suas agendas e não assumamos, a priori, um posicionamento conservador aos republicados e outro, que consideremos liberal, aos democratas.
* Acesse aos discursos pelo link
** Priscila Villela é pesquisadora do GECI, doutoranda do Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e professora de relações internacionais na PUC-SP.
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