Corria o ano de 1968. Leitor assíduo do Jornal do Brasil, me deparei com uma crônica de Clarice Lispector sobre... futebol! Incrível! Ela estava respondendo a um desafio de Armando Nogueira, que escrevia todos os dias a coluna Na grande área, no mesmo JB.
Armando dissera que trocaria tudo por uma crônica sobre futebol escrita pela Clarice. Ela escreveu e lançou um novo repto: queria ver Armando escrever sobre a vida.
Guardei as duas crônicas por anos a fio. Numa das últimas mudanças, elas acabaram desaparecendo. Talvez ainda estejam aqui em casa, solertes, à espreita. Não faz mal. Graças à internet, acessei o acervo do JB e as recuperei. Aqui estão elas. Não deixem de ler!
ARMANDO NOGUEIRA, O FUTEBOL E EU, COITADA
Clarice Lispector
E o título sairia muito maior, só que não
caberia numa única linha. Não leio todos os dias Armando Nogueira – embora
todos os dias dê pelo menos uma espiada rápida – porque “meu futebol” não dá
pra entender tudo. Se bem que Armando escreve tão bonito (não digo apenas “bem”),
que às vezes, atrapalhada com a parte técnica de sua crônica, leio só pelo
bonito. E deve ser numa das crônicas que me escaparam que saiu uma
frase citada pelo Correio da Manhã, entre frases de Robert Kennedy,
Fernandel, Arthur Schlesinger, Geraldine Chaplin, Tristão de Athayde e vários
outros, e que me leram, por telefone. Armando dizia: “De bom grado eu trocaria a
vitória de meu time num grande jogo por uma crônica…” e aí vem o surpreendente:
continua dizendo que trocaria tudo isso por uma crônica minha sobre futebol.
Meu primeiro impulso foi o de uma vingança
carinhosa: dizer aqui que trocaria muita coisa que me vale muito por uma
crônica de Armando Nogueira sobre digamos a vida. Aliás, meu primeiro impulso,
já sem vingança, continua: desafio você, Armando Nogueira, a perder o
pudor e escrever sobre a vida e você mesmo, não posso perdoar que você
trocasse, o que significaria a mesma coisa.
Mas, se seu time é Botafogo, não posso perdoar que você
trocasse, mesmo por brincadeira, uma vitória dele nem por um meu romance
inteiro sobre futebol.
Deixe eu lhe contar minhas relações com
futebol, que justificam o coitada do título. Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que
não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha
tendência ao excessivo. É o seguinte: não me é fácil tomar partido em
futebol – mas como poderia eu me isentar a tal ponto da vida do Brasil? –
porque tenho um filho Botafogo e outro Flamengo. E sinto que estou traindo o
filho Flamengo. Embora a culpa não seja toda minha, e aí vem uma queixa contra
meu filho: ele também era Botafogo, e sem mais nem menos, talvez só para
agradar o pai, resolveu um dia passar para o Flamengo. Já então era tarde demais para
eu resolver, mesmo com esforço, não ser de nenhum partido: eu tinha me dado
toda ao Botafogo, inclusive dado a ele minha ignorância apaixonada por futebol. Digo
“ignorância apaixonada” porque sinto que eu poderia vir um dia apaixonadamente
a entender de futebol.
E agora vou contar o pior: fora as vezes que vi
por televisão, só assisti a um jogo de futebol na vida, quero dizer, de corpo
presente. Sinto que isso é tão errado como se eu fosse uma brasileira errada.
O jogo qual era? Sei que era Botafogo, mas não
me lembro contra quem. Quem estava comigo não despregava os olhos do campo,
como eu, mas entendia tudo. E eu de vez em quando, mesmo sentindo que estava
incomodando, não me continha e fazia perguntas. As quais eram respondidas com a
maior pressa e resumo para eu não continuar a interromper.
Não, não imagine que vou dizer que futebol é um
verdadeiro balé. Lembrou-me foi uma luta entre vida e morte, como de
gladiadores. E eu – provavelmente coitada de novo – tinha a impressão de que a
luta só não saía das regras do jogo e se tornava sangrenta porque um juiz
vigiava, não deixava, e mandaria para fora de campo quem como eu faria, se
jogasse (!). Bem, por mais amor que eu tivesse por futebol, jamais me ocorreria
jogar… Ia preferir balé mesmo. Mas futebol parecer-se com balé? O futebol tem uma beleza
própria de movimentos que não precisa de comparações.
Quanto a assistir por televisão, meu filho
botafoguense assiste comigo. E quando faço perguntas, provavelmente bem tolas
como leiga que sou, ele responde com uma mistura de impaciência piedosa que se
transforma depois em paciência quase mal controlada, e alguma ternura pela mãe
que, se sabe outras coisas, é obrigada a valer-se do filho para essas lições.
Também ele responde bem rápido, para não perder os lances do jogo. E se
continuo de vez em quando a perguntar, termina dizendo embora sem cólera: ah,
mamãe, você não entende mesmo disso, não adianta.
O que me humilha. Então, na minha avidez por
participar de tudo, logo de futebol que é Brasil, eu não vou entender jamais? E
quando penso em tudo no que não participo, Brasil ou não, fico desanimada com
minha pequenez. Sou
muito ambiciosa e voraz para admitir com tranquilidade uma não participação do
que representa vida. Mas sinto que não desisti. Quanto a futebol,
um dia entenderei mais. Nem que seja, se eu viver até lá, quando eu for
velhinha e já andando devagar. Ou você acha que não vale a pena ser uma
velhinha dessas modernas que tantas vezes, por puro preconceito imperdoável
nosso, chega à beira do ridículo por se interessar pelo que já devia ser um
passado? É que, e não só em futebol, porém em muitas coisas mais, eu não queria
só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha
de futuro.
E agora repito meu desafio amigável: escreva
sobre a vida, o que significaria você na vida. (Se não fosse cronista de
futebol, você de qualquer modo seria escritor). Não importa que, nessa coluna
que peço, você inicie pela porta do futebol: facilitaria você quebrar o pudor
de falar diretamente. E mais, para facilitar: deixo você escrever uma crônica
inteira sobre o que futebol significa para você, pessoalmente, e não só como
esporte, o que terminaria revelando o que você sente em relação à vida. O tema
é geral demais, para quem está habituado a uma especialização? Mas é que me
parece que você não conhece suas próprias possibilidades: seu modo de escrever
me garante que você poderia escrever sobre inúmeras coisas. Avise-me quando
você resolver responder a meu desafio, pois, como lhe disse, não é todos os
dias que leio você, apesar de ter um verdadeiro gosto em ser sua colega no
mesmo jornal. Estou esperando.
(Jornal do Brasil, 30.3.1968)
Na Grande área
Armando
Nogueira
Clarice
Lispector: Há uma semana, não encontro no Rio uma pessoa amiga que não me
pergunte: “Então, quando é que você vai aceitar o desafio da Clarice
Lispector”?
(Permita,
leitor, explicar que eu tinha pedido, daqui, uma crônica de Clarice Lispector
sobre futebol. Ela escreveu, escreveu uma crônica admirável; mas, num impulso
de terna vingança, Clarice me multou: desafiou-me a perder o pudor e escrever
sobre a vida).
Agora, os cobradores de Clarice estão à
minha porta, carinhosamente, exigindo a resposta, mas com uma impaciência que
me angustia como a véspera de um grande jogo.
Que dizer de um jogo que ainda não terminou?
E mesmo quando
termine, Clarice, o match de minha
vida não justificará sequer resenha: é match-treino, sem placar, sem juiz, nem
multidão. Por tudo! Que está bom assim, embora melhor se fosse uma pelada – mil
meninos jogando a minha vida, alheios ao vento que às vezes persegue tanto o
time da gente.
Jamais seria
um bom depoimento de minha própria vida: jogo muito mal, sofro a imprecisão de
meus chutes. Tenho medo e respeito muito o julgamento da plateia. Embora também
já tenha tido vergonha da multidão. Eu te conto, Clarice: era um jogo de grande
importância, no Maracanã. O ídolo errou o primeiro passe, errou o segundo, o
terceiro. Deram-lhe uma vaia. O ídolo lutava, dignamente, mas seu esforço era
vão, a bola de ferro não lhe saía dos pés. A multidão já passava da reprovação
ao deboche; e o ídolo, ali, firme, correndo entre dois abismos – humilhação e
fadiga. Chamaram-no de venal; ele chorou em campo.
Depois do
jogo, a um canto do vestiário, ele me confessava, ainda em lágrimas:
- Armando, eu
sei que joguei muito mal. Mas eu não tinha cabeça para pensar. Essa gente não
sabe, mas eu vim jogar, deixando minha filha, de cinco anos em casa, com minha
mulher doente e uma irmã de minha mulher, louca, trancada no quarto. Mas, louca
de hospício. Louca de passar o dia jurando que ainda vai estrangular a minha
filha. E eu no campo, só pensava nisso: meu Deus, será que ela não está
estrangulando a minha filha?
Nesse dia, eu
descobri que nem sempre a voz do povo é a voz de Deus e que às vezes a multidão
é capaz até de torcer pelo estrangulamento de uma criança.
O match de minha vida, querida Clarice, tem sido um sofrido aprendizado de
todos os sentimentos que murcham e florescem num jogo de futebol: o amor, o
medo, o ódio, a inveja, a coragem ali estão, revestindo ou informando cada
gesto da bola, cuja meta é sempre o coração – para viver uma grande alegria ou
para morrer de infarto.
Infelizmente, jamais conquistei um lugar de
jogador nesse misterioso torneio que acompanho, há quarenta anos, como simples
espectador. Tentei ser goleiro. Queria sentir o único pedaço de campo em que a
grama verde não vinga jamais. Cheguei a mentir, enfiando joelheiras, um boné na
cabeça e dizendo aos outros meninos que era o Batatais. Deve ter me ficado da
experiência uma visão pessimista do campo. Mas, pelo menos duas lições aprendi
com dois goleiros: com Evutchenko, “que a vida não é só atacar, é também vigiar
os menores movimentos do adversário e conhecer suas artimanhas”; e com Albert
Camus que o futebol ensina tudo sobre a moral dos homens.
Por fim, Clarice, o match de minha vida não registra um instante
sequer de plena felicidade, embora alguns espectadores o vejam como um alegre
amistoso de portões abertos. Marca-me, cerrado, um sentimento de culpa, a
dividir comigo as bolas de sabão de cada gol perdido.
Se não deploro, também não tenho o que
festejar no match da minha vida: o
grito que glorifica o goleador é o mesmo que mortifica o goleiro.
Por isso, não vejo na vitória mais verdade
que na derrota.
O match de minha vida, Clarice, está por
ai, rolando numa bola que já não é de meia, nem de gude: bola de tantos sonhos
perdidos pela linha de fundo – círculo, inspiração do sol, forma perfeita,
esfera de fogo queimando, às vezes, a grama dos meus campos.
Que o match da minha vida possa ao menos terminar
em paz – empate.
(Jornal do
Brasil, 8.4.1968)
Muito bom, Ricardo! Adorei!
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