Burocratizadas e inertes, instituições entregam a Google e Microsoft serviços pedagógicos e comunicacionais estratégicos. Na era da Economia do Conhecimento, país pode conformar-se à submissão
Por Rafael Evangelista
Cansadas dos ataques e dos constantes
cortes de verba, as universidades públicas parecem não querer mais
existir. Mantêm o mínimo, mas vão fazendo cortes lentos que implicam, na
prática e no médio prazo, na cessão para parceiros privados de várias
coisas que as definem, que historicamente fazem parte da sua missão. Com
isso, vão abdicando de sua autonomia intelectual e de implementação de
tecnologias orientadas de acordo com seus princípios públicos.
O
exemplo mais recente e flagrante vem da área de tecnologia da
informação. Google e Microsoft vêm estabelecendo parcerias com diversas
universidades públicas brasileiras para oferecer “tecnologias
educacionais”. Na prática, as instituições vão abrindo mão de seu parque
computacional, ao mesmo tempo que promovem os produtos dos parceiros.
Os alunos, funcionários e docentes recebem, com frequência, e-mails
vindos dos centros de computação das universidades convidando para a
adesão aos serviços. Com o convite feito de maneira institucional é
fácil prever o resultado: adoção de tecnologias externas em detrimento
de algo produzido e gerenciado autonomamente.
Em
sua grande maioria, são aplicações que a universidade já oferece, como
serviço de e-mail e ferramentas tecnológicas de acompanhamento didático.
A Unicamp, uma das que estabeleceu acordos, oferece serviço de e-mail e
ferramentas como o Moodle, um software livre produzido
colaborativamente; e o Teleduc, ferramenta também livre mas concebida
pelo Núcleo de Informática Aplicada à Educação. Agora as inciativas
livres competem com a GAFE, Google Apps for Education, serviço da
empresa do Vale do Silício já altamente criticado por organizações
internacionais como a Electronic Frontier Foundation (EFF), que mantém a campanha “Espionando Estudantes: aparelhos educacionais e a privacidade dos estudantes”.
O
discurso oficial das universidades é o da liberdade de escolha. Cada
indivíduo seria livre para escolher qual tecnologia usar, pesando
individualmente as eventuais facilidades contra os riscos e prejuízos.
Dá até pra chamar de “falácia Microsoft”, de tanto que a empresa usou
esse tipo de argumento quando combatia as políticas de incentivo ao
software livre. Só que no mundo real as coisas não funcionam exatamente
assim, os indivíduos não seres independentes e absolutos num vácuo de
poder. O dinheiro pesa, assim como a publicidade e a interligação entre
os produtos. De um lado, temos universidades pressionadas sempre a
cortar custos. De outro, empresas bilionárias interessadas nos dados de
navegação e nos conteúdos produzidos pelos estudantes, capazes de
explorar economicamente essas informações (no mercado publicitário ou
onde a imaginação delas permitir). Tudo é oferecido gratuitamente mas,
se é verdade o dito neoliberal de que “não há almoço grátis”, só podemos
imaginar que as empresas sabem muito bem como extrair valor dessa massa
informacional.
O
desfecho não é difícil de imaginar. As instituições públicas tendem a
abandonar a prestação desses serviços de infraestrutura educacional,
fazendo cortes e reduzindo custos, mas ao mesmo tempo abdicando de sua
missão de produzir e aplicar tecnologias em seu corpo estudantil. Dá pra
se imaginar também que aqueles que não se juntarem à maioria, os
“chatos” que insistem em discutir e problematizar as decisões
tecnológicas, vão ter que conviver com um serviço cada vez mais
sucateado e abandonado. A estratégia aí se parece com a de outro gigante
da tecnologia, a Monsanto, que foi produzindo um fato consumado em
favor dos transgênicos, de modo a forçar a aceitação das variedades da
sua soja via contaminação.
E,
é claro, é preciso falar de privacidade e vigilância. Instituições
federais como a UFPE e a UTFPR já usam a GAFE (a sigla tem um efeito
cômico ótimo em português, registre-se) e outras, como a Unifesp, já
estudam sua adoção. Porém, na esteira das revelações de Edward Snowden,
há um decreto federal (8.135, de 2013) que diz, em seu artigo primeiro
que “as comunicações de dados da administração pública federal direta,
autárquica e fundacional deverão ser realizadas por redes de
telecomunicações e serviços de tecnologia da informação fornecidos por
órgãos ou entidades da administração pública federal, incluindo empresas
públicas e sociedades de economia mista da União e suas subsidiárias”.
Ao que tudo indica, os acordos não se conformam ao decreto, cuja
preocupação efetiva era a inviolabilidade das comunicações.
As
críticas da EFF, feitas no contexto dos EUA, vão nesse sentido. Ela já
apresentou queixa à Comissão Federal de Comércio (Federal Trade
Commission) acusando o Google de violar acordos que estabelecem a
proibição da venda de informações de alunos e a necessidade de políticas
transparentes sobre a coleta e uso de dados. Após as queixas, a Google
desativou a coleta de dados dos estudantes para fins publicitários nos
serviços do GAFE. Porém, em outras plataformas interconectadas pela
mesma senha usada no GAFE valem as mesmas regras de todos os outros
serviços como Drive, Blogger, YouTube e Gmail: os usuários são
monitorados e vigiados eletronicamente o tempo todos, para fins de
extração informações a serem usadas com objetivos publicitários, além de
serem submetidos a anúncios escolhidos a partir desses dados de
navegação.
O
uso do e-mail é, em particular, especialmente perigoso. No caso das
universidades, trata-se de uma massa especial de usuários, reunindo
pesquisadores ativos na produção de conhecimento e tecnologias
sensíveis. Essas informações não ficam em solo brasileiro, nem respondem
às leis brasileiras. Estão na Califórnia, regidas pelas leis daquele
estado norte-americano. Ao mesmo tempo que se omitem e não estimulam o
uso de dados criptografados por parte de seus usuários, as universidades
transferem as bases de dados para países que notoriamente abusam da
vigilância, também com fins econômicos.
E
há a questão da exploração econômica da base de dados em si mesma, como
recurso a ser minerado para a extração de informações que vão orientar o
desenvolvimento de produtos, campanhas de marketing, identificar
tendências de comportamento etc. A comunidade acadêmica peca em não
reconhecer o altíssimo valor econômico desses dados e, ingenuamente,
parece pensar estar fazendo uma boa troca. No curto prazo, facilita a
vida do administrador espremido com o encolhimento das verbas. No médio e
longo prazo, ameaça os empregos do corpo técnico da universidade e a
autonomia tecnológica. Terceirizada em sua estrutura — segurança,
limpeza, alimentação e em certo sentido até na docência, com professores
colaboradores e pós-graduandos –, esquálida, torna-se incapaz de
cumprir sua função social, que vai muito além da formação de mão de obra
para o mercado.
Desde
o inicio dos anos 2000, nas conflituosas disputas da Organização
Mundial do Comércio, os países ricos vêm tentando estabelecer regras que
lhes permitam vender serviços, como pacotes educacionais, aos países
pobres. Pelo visto, encontraram novas formas de lucrar com os mesmos
pacotes, na era da extração de valor em cima de bases de dados e
informações.
(fonte: http://outraspalavras.net/brasil/brasil-quando-as-universidades-desistem-da-tecnologia/)
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