"Em meados de 2017, a crise teve que ser admitida, e em janeiro de 2018 foi determinado que residências que utilizassem mais que 350 litros de água por dia seriam multadas. Além disso, a água para abastecimento da cidade não será compartilhada com os agricultores da região, o que provavelmente vai causar um grande aumento nos preços de alimentos nos próximos meses. Ou seja, a crise hídrica vai desencadear outras crises, como a de abastecimento, a econômica e a sanitária.", escreve Maurício Dziedzic, engenheiro civil, mestre em Recursos Hídricos e doutor em Engenharia Hidráulica, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Gestão Ambiental (mestrado e doutorado) da Universidade Positivo (UP), em artigo publicado por EcoDebate, 28-02-2018.
Eis o artigo.
Ao pensar na África, geralmente formamos imagens com exuberância de recursos naturais. Falta de água nos remeteria aos desertos daquele continente, especialmente o Saara, no Norte. No Sul, ficam os desertos do Kalahari e da Namíbia. De resto, não se imaginaria escassez hídrica. Todavia, no extremo sul, a Cidade do Cabo, capital legislativa da África do Sul, está vivendo uma das piores crises hídricas urbanas que se tem notícia nos tempos modernos.
A cidade de cerca de meio milhão de habitantes foi apontada pelo New York Times em 2014 o melhor lugar do mundo para visitar. Hoje, sua população vive em contagem regressiva para o “Dia Zero”: o dia em que a água da cidade vai acabar. Esta data já foi estimada em abril, passou para maio, e atualmente é 04 de junho de 2018! Em Curitiba, se parasse de chover, considerando cheios os quatro principais reservatórios de abastecimento, teríamos água suficiente para abastecer a população por cerca de dois anos. Isso sem considerar outros usos da água.
Na região da Cidade do Cabo, choveu muito pouco nos últimos três anos e seus habitantes vivem a realidade do racionamento: 50 litros por dia por pessoa, desde o início de fevereiro, e volumes pouco maiores há alguns meses. Esse valor é muito próximo ao considerado mínimo necessário para não aumentar riscos de doenças de veiculação hídrica. Inclui 3 litros para beber, 20 litros para descarga sanitária, 15 litros para banho e 10 litros para cozinhar. Seria possível diminuir esse volume implementando, por exemplo, tecnologias que economizam água na descarga. Entretanto, não estão instaladas na cidade toda, não sendo alternativa viável no presente.
Além das alterações climáticas, responsáveis pela falta de chuva, outros fatores contribuíram para a crise atual. Os técnicos responsáveis pelo planejamento da cidade vêm advertindo os governantes há quase três décadas que a infraestrutura existente não seria suficiente para manter o abastecimento de água da Cidade do Cabo em caso de secas prolongadas. O principal reservatório de abastecimento da cidade fica em uma área em processo crescente de desertificação, claro indicador de mudanças no clima da região. Os governantes optaram por ignorar o aviso, não promover melhorias na infraestrutura, e continuar fomentando o desenvolvimento econômico não sustentável. Em meados de 2017, a crise teve que ser admitida, e em janeiro de 2018 foi determinado que residências que utilizassem mais que 350 litros de água por dia seriam multadas. Além disso, a água para abastecimento da cidade não será compartilhada com os agricultores da região, o que provavelmente vai causar um grande aumento nos preços de alimentos nos próximos meses. Ou seja, a crise hídrica vai desencadear outras crises, como a de abastecimento, a econômica e a sanitária.
Ironicamente, a Cidade do Cabo vai sediar, em maio próximo, a Conferência Internacional sobre Perdas de Água. Essas perdas, principalmente devido a vazamentos nas tubulações de redes de abastecimento, se constituem em um grande vilão hídrico. O percentual de perdas varia bastante entre as cidades e países. Na África do Sul, são da ordem de 30%. Em Curitiba, da ordem de 40%. A crise hídrica de São Paulo, por exemplo, seria resolvida, ou bastante aliviada, com a diminuição das perdas de mais de 30%. No Brasil, a variação é grande, chegando a cerca de 70% em algumas cidades, e com uma média de cerca de 37%. É muito desperdício que, se evitado, pode descartar a necessidade de exploração de outros mananciais.
Tanto aqui, quanto na África do Sul, uma gestão pública séria e preocupada com o bem-estar da população, o que inclui a sustentabilidade, é fundamental para evitar vários tipos de crise. Infelizmente, o que se vê é pouca ou nenhuma preocupação com a questão pública. Os governantes e seus burocratas associados se colocam em luta constante pelo poder e vantagens pessoais – e desdém pela situação alheia. Esquecem que estão forçosamente inseridos na realidade coletiva, e que um dia a corda arrebenta para todos. Aqui, ainda há tempo para agir. Na Cidade do Cabo, vão ter que colar os cacos.
E por onde começar? Pela educação de qualidade e acessível a todos. Além disso, é fundamental mudar o paradigma educacional do Brasil. Precisamos educar visando ao desenvolvimento de capacidade de análise crítica, ao contrário do que se pratica hoje, que é a cultura da memorização e da resposta a perguntas prontas. Os egressos de nossas escolas precisam ser capazes de questionar a pergunta, de investigar os motivos para que ela seja feita. Dessa forma, teremos cidadãos mais conscientes e menos fáceis de manipular. Ao mesmo tempo, é essencial desenvolver no aluno/cidadão os princípios éticos, principalmente pelo exemplo, na escola, em casa e na sociedade.
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/576491-crises-hidricas-a-corda-arrebenta-para-todos)
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