por Antônio de Paiva Moura
O sistema judiciário brasileiro na atualidade,
abrangendo todas as instâncias hierárquicas, perdeu o caráter de imparcialidade
e lisura nas decisões. Aqui ou em qualquer lugar do mundo, em todos os tempos a
magistratura é formada por elementos engajados nas causas das elites do poder
econômico e do poder político.
A desigualdade jurídica (Celmir Silva, especial para este artigo) |
Olhando o sistema jurídico do
período colonial passando pelo período monárquico até os primórdios do século
XX houve um relativo progresso democrático nas cartas constitucionais, nos
códigos de processo penal e civil.
No período colonial a coroa
portuguesa usava dois métodos para assegurar a lealdade, a imparcialidade e a
eficiência administrativa dos juízes. Primeiro, já que os desembargadores
representavam a autoridade real, foi feito um grande esforço para elevá-los
acima da sociedade e para garantir-lhes uma posição de respeito inabalável,
através de prestigio, riqueza e status social. A sociedade colonial dava muita
importância ao status. Um rico proprietário de terra, com pretensão à nobreza,
não aceitava obedecer à lei se fosse imposta por homens considerados
socialmente seus inferiores. Poucos desembargadores eram de ascendência
fidalga, faltando-lhes, assim, proeminência social natural à nobreza. A coroa
portuguesa, portanto, fez tudo que estava ao seu alcance para assegurar e
fortalecer a dignidade e a posição dos juízes. Os desembargadores recebiam
altos salários, gratificações financeiras e gozavam da isenção de certos
impostos. Bastaria uma ofensa física a um desembargador para que o agressor
fosse punido com a pena de morte. Uma ofensa verbal era punida com o exílio. Frequentemente
os magistrados recebiam o hábito de uma ordem militar, em especial da cobiçada
Ordem de Cristo
Na colônia os desembargadores tinham
lugares de honra em vários acontecimentos civis e religiosos. Figuras vestidas
de preto, marchando logo atrás do governador da capitania. Por outro lado, os
magistrados deveriam evitar as atividades de negócios ou propriedades
fundiárias. (SCHWARTZ, 1979) Longe de manter distância do negócio, os
magistrados acabavam adquirindo propriedades e participando de negócios
ilícitos, inclusive tráfico de escravos.
O período regencial do Império,
durante a menoridade de D. Pedro II, foi marcado pela extinção das antigas
figuras dos ouvidores, corregedores e chanceleres como magistrados,
universalizando-se a figura do juiz como magistrado de primeira instância, em
suas diversas modalidades: Juiz Municipal, em substituição ao juiz ordinário
local; Juiz de Paz, eleito, com a função de julgar pequenas causas; Juiz de
Direito, nomeado pelo imperador, em substituição ao Juiz de Fora. Esse sistema
judicial visava aplacar os distúrbios regionais.
O cientista alemão Hermann Burneister, em
1853, observou que o estudo da estratificação social da província de Minas
devia começar pela cor da pele, visto que a posição de cada um e seu nível de
vida dependiam grandemente dessa circunstância. Os proprietários de terra e
minas eram na quase totalidade de brancos. Era difícil ver-se um branco casado
com uma mulher de cor, pois cada um tratava de conservar na família a pureza de
sua raça, evitando qualquer parentesco com gente de outra. Nos lugares onde
havia brancos e gente de cor, os primeiros representavam sempre a classe
dominante. Entre os funcionários e os comerciantes, foram encontrados, em
regra, brancos; somente pequenas vendas pertenciam, por vezes, a gente de cor.
O artesanato, contava, em geral, com elevado número de mulatos, como os
marceneiros, carpinteiros, alfaiates e seleiros, enquanto os pedreiros,
ferreiros, funileiros e sapateiros eram negros livres. Nas cidades
encontravam-se alguns estrangeiros, mestres em seus ofícios, tendo sob suas
ordens certo número de auxiliares e aprendizes. O poder
judiciário merecia pouca confiança da população, de vez que todos sabiam que
boas relações pessoais e dinheiro conseguiam vencer mesmo os maiores
obstáculos. Tal lacuna não se devia tanto ao funcionalismo e nem aos jurados
que não recebiam vencimentos. O hábito inveterado das decisões injustas fez com
que ninguém se preocupasse mais com o direito, mas antes com as condições que
prevaleceram para as deliberações. Desta forma, o mais rico ganhava do mais
pobre; o branco do homem de cor e, no caso de processo entre brancos, vencia o
que tivesse mais prestígio ou posição social. O mau exemplo era dado pelo
próprio governo, que nobilitava pessoas ricas, cuja fortuna provinha, na
maioria dos casos, de fraudes cometidas contra o fisco, concedendo-lhes até o
baronato. (MOURA, 1983)
Nos primórdios do período republicano (1889
a 1930) verifica-se que o sistema jurídico do período imperial facilitou a
formação das oligarquias regionais e do fenômeno coronelismo. O sociólogo
francês Jean Blondel caracteriza o “coronel” pelo seu poder político, pela
capacidade de manter sob seu controle, os redutos eleitorais, sendo a quantidade
de votos a medida de seu poderio. Papel importante é o cabo eleitoral, cujo
título parece derivar da escala hierárquica, conferido pelo contingente da
Guarda Nacional. A este é atribuído o dever de controlar a massa eleitoral de
modo a não permitir a evasão de votos. O cabo eleitoral é uma espécie de
“vassalo” intransigente, disposto a lançar mão de qualquer meio para coibir a
infidelidade ao seu coronel. O poderio econômico do coronel caracterizava-se
pela capacidade de explorar as imensas terras disponíveis, para manter o
latifúndio e a monocultura, (café ou pecuária), o coronel lançou mão de algo
que substituía a mão-de-obra de baixo custo e com reminiscências da escravidão.
O agregado, substituto do escravo, não tendo outra opção, entregava o seu
trabalho, em troca da necessária proteção e do indispensável favoritismo
oferecido pelo coronel paternalista. O menor fato que contrariasse esta ordem
ou estado de coisas, fugindo à regra, era respondido com o crime. Com outras
palavras, o crime era a resposta a qualquer ameaça à segurança do sistema
coronelista. (MOURA, 1983)
As oligarquias detinham integralmente os
poderes do estado: executivo, legislativo e judiciário. Nessa circunstância
mantinham privilégios e oprimiam o restante da população, gerando reação dos
fora da lei. O cangaço e a bandidagem manifestaram-se como uma forma de
protesto diante das injustiças observadas no Nordeste do Brasil e no Norte de
Minas, como nos contos de Guimarães Rosa. O historiador inglês Eric Hobsbawm
(2010) criou o termo bandido social para caracterizar aquele que vem de uma
camada pobre da população rural, com a qual distribui o produto do seu roubo,
como fez o lendário Robim Hood. No Nordeste ficou célebre a atuação de
Virgulino Ferreira da Silva, Lampião. No Norte de Minas Antônio Antunes de
França, com a alcunha de Antônio Dó, era pequeno proprietário de terra e de
gado. Após ser preso por demarcação de terra, em 1909, fugiu da delegacia na
firme decisão de vingar a morte de seu irmão e mostrar a indignação pela perda
injusta de sua propriedade. Formou um numeroso bando e teve muitos confrontos
com a polícia de Minas Gerais.
No final do século XX e início do atual, a
situação social e cultural mudou muito. De sociedade agrária e rural para
sociedade urbana. Ao invés da disputa pela terra, a luta pela aquisição do dinheiro.
As instituições financeiras são as mais visadas pelas organizações criminosas.
As quadrilhas de assalto a bancos estão sendo chamadas de “novo cangaço”. O chamado tráfico
de drogas ilícitas é utilizado para encobrir interesses geoeconômicos das
potências imperialistas e de estado com governos a eles subservientes, como
sucede com a Colômbia de Álvaro Uribe. Segundo Maierovitch (2009), somente 10%
das drogas circulantes no mundo são apreendidas pela polícia. Os 90% que
circulam pelo mundo, continuam movimentando cerca de 300 bilhões de dólares ao
ano, no sistema bancário financeiro internacional.
Um policial inglês, especializado em tráfico de drogas chegou à
conclusão que o perfil do traficante é muito semelhante ao dos executivos das
transnacionais. Ambos visam o lucro acima de tudo. A diferença é que o
empresário tem uma atividade legal e o traficante é uma atividade ilegal, mas a
ambição é a mesma. O empresário usa meios lícitos e ilícitos, com o poder que
tem, para remunerar mal seus servidores visando acumular os lucros. O
traficante usa a mão de ferro para impor o terror e a disciplina em seus
subordinados. A acumulação de fortunas do traficante, ao contrário do bandido
social, é para ostentar luxo; aumentar seu poderio sobre os rivais; remunerar
autoridades policiais e jurídicas que lhe acoberta. É tudo que se observa em um
executivo legal. (MANO, 2009)
Em avaliação feita em 2003, a ONU classificou o
judiciário brasileiro de lento, com tendência ao nepotismo, machista e pouco
acessível à população carente. O relatório apontou diversas recomendações para
melhorar o quadro, entre elas, maior participação de mulheres, negros e índios
na justiça. A avaliação da ONU apontou 95% dos casos de assassinatos de
trabalhadores rurais no Pará, entre 1985 e 2001, que ficaram sem
esclarecimento. Além da ONU, a revista The
Economist criticou o judiciário brasileiro classificando-o de antiquado e
disfuncional. Os juízes brasileiros são
inalcançáveis e impassíveis de prestar contas aos cidadãos a que servem (DOMENICI,
2005: 21). Os magistrados brasileiros, na maioria absoluta, não são de classes
médias e não têm afinidades com as classes inferiores. Um juiz fazendeiro tem dificuldade de se colocar ao lado de um
sem-terra. Uma juíza que tem problema com sua empregada doméstica tende a se
solidarizar com a patroa. O juiz que lê crítica contra o judiciário vai se
identificar com quem for à justiça reclamar da imprensa (IDEM, p.22). Em abril de 2007, a Polícia Federal e o
Ministério Público empreenderam a operação “Têmis”, para investigar uma
quadrilha que negociava sentenças judiciais. Foram cumpridos diversos mandados
de busca em residências privadas e gabinetes de juízes e de desembargadores. Os
juízes dificultaram, ao máximo a ação policial contra seus pares. O Supremo
Tribunal Federal não permitiu nem a prisão temporária de 43 investigados, nem o
bloqueio de suas contas bancárias (VASCONCELOS, 2007).
Para responder ao estado de
privilégio das classes superiores remuneradas pelo erário público e pela
exagerada lucratividade, na atualidade, restam poucas alternativas às classes
subalternas. O neoliberalismo tratou de destruir as instituições sociais e as
políticas de bem-estar social conquistadas na segunda metade do século passado
e promulgação da Constituição de 1988.
Antes de ser instituído o direito de
greve, os trabalhadores faziam paralisações desobedecendo à lei e se
confrontando violentamente com a polícia. No período de 1964 a 1984, na
vigência da ditadura militar, muitos grupos clandestinos de resistência se
formaram. Embora tenham ocorrido muitas mortes a atuação de tais grupos foi
fundamental para a restauração do estado democrático. Diante dos últimos acontecimentos políticos
do Brasil a jornalista francesa Évelyne Pieller (2018) traz à nossa lembrança o
Wikileaks, fundado por Julian Assange, em 2006, que deseja dar visibilidade a
vazamentos de informações, como objetivo de expor uma realidade social e
política oculta.
Referências
DOMENICI, Thiago. Justiça tarda e
falha. Caros Amigos, São Paulo, n.26, dez. 2005.
HOBSBAWM,
Eric. Bandidos. Tradução de Donaldson
M. Garschagem. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
MARIEROVITCH, Walter Fanganielloo. O tráfico salvou o interbancário. Carta
Capital. São Paulo, n. 577, 23 dez. 2009.
MOURA,
Antônio de Paiva. História da violência
em Minas. Belo Horizonte: Autor, 1983.
MANO,
Maira Kubik. Droga e violência: uma
questão de classe. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, n. 26, set. 2009.
PIELLER,
Évelyne. Antígona e os piratas:
desobediência civil. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, n. 126,
janeiro de 2018.
SCHWARTZ,
Stuart B. Burocracia e sociedade no
Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.
VASCONCELOS, Frederico. Operação
da Polícia Federal investiga venda de sentenças em São Paulo. Folha de São
Paulo, São Paulo, 21 abr. 2007.
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