"A indústria está fazendo uma festa de ultraprocessados no Brasil, e com certeza tem que ter um olhar mais firme do governo para limitar esses excessos. As multinacionais fazem no Brasil coisas que não se permitiriam fazer em outros países".
A reportagem é de Camilla Costa, publicada por BBC Brasil, 28-07-2018.
Deram é nutricionista, engenheira agrônoma e especializada em obesidade infantil, nutrigenômica, transtornos alimentares e neurociência do comportamento. Autora do livro O Peso das Dietas (Ed. Sextante), defende que uma alimentação com menos processados evita a adoção das dietas da moda que são, segundo ela, "um gatilho para engordar".
"Acho que, como brasileiros, devemos pedir uma melhora na qualidade dos alimentos, tanto processados quanto in natura. Mais vigilância sobre os agrotóxicos, mais alimentos in natura dentro dos processados, menos conservantes." O Guia Alimentar para a População Brasileira define alimentos ultraprocessados como aqueles que "são formulações industriais feitas totalmente ou em grande parte de substância extraídas de alimentos, derivadas de constituintes de alimentos, sintetizadas em laboratório, realçadores de sabor e aditivos". Por exemplo, refrigerante e macarrão instantâneo.
Outros, como atum enlatado e frutas em calda são considerado processados. Já cortes de carne congelados e leite pasteurizado são considerados minimamente processados.
"Vemos que 95% das pessoas que fazem dieta fracassam. Quer dizer, todo mundo fracassa. A dieta restritiva abre a rodovia do engordar", afirma.
Eis a entrevista.
A alimentação do brasileiro piorou?O que piorou não foi a nossa alimentação, foi a neura das pessoas. Elas estão com uma neura absurda. Dá para comer de maneira super adequada indo na feira, cozinhando e comendo alimentos menos processados.
Mas todo mundo está sempre de dieta, muitos profissionais fazem o que eu chamo de "terrorismo alimentar", e a indústria coloca produtos carregados de açúcar e adoçantes nas prateleiras, por exemplo. Hoje os estudos já sugerem que essa troca de açúcar por adoçante não é nada saudável.
Enfim, tem um conjunto de forças que vão contra a boa alimentação apesar de no Brasil haver uma abundância de frutas e verduras.
Que tipo de forças?
O Brasil passou pelo que se chama de transição nutricional, uma mudança cultural da alimentação. Vemos isso em todos os países, e tem a ver com a globalização e a urbanização acelerada. Isso muda completamente o modelo.
Mulheres, homens, inclusive os educadores, muitas vezes não tiveram uma infância na cidade e agora tem que inventar um novo modelo de viver. Muitos tinham as mães na casa cozinhando, pegando legumes na feira ou no quintal. De repente, têm que viver na cidade e compram tudo no supermercado sem nem saber o que há em cada pacote.
Essa transição fez com que a população começasse a consumir cada vez mais alimentos processados e ultraprocessados. Em 2007 e 2008, o Brasil foi apontado como um dos países em que a indústria de alimentos e bebidas mais crescia no mundo.
Houve um investimento muito grande de marketing dessa indústria aqui. As pessoas que foram viver nas cidades acabaram sendo educadas pelo marketing da indústria, pela televisão. Vejo isso no meu consultório: muitas dessas pessoas acreditam que o suco em caixa é melhor porque dá mais energia ao filho ou porque na embalagem diz que ele tem cálcio e outras vitaminas.
Mas você defende que dá para comer bem cozinhando mais, comprando mais produtos in natura na feira e menos processados. Em uma sociedade em que cada vez mais mães, além dos pais, trabalham fora e o trabalho doméstico está mais caro, como é possível manter essa rotina?
É um desafio cozinhar, é verdade, mas é também uma questão de planejamento.
Trabalhei em um laboratório de obesidade infantil, e muitas mães de baixa renda faziam um trabalho ótimo de cozinhar no fim de semana para ter comida pronta. Mas muitas achavam que era mais saudável comprar pronto porque a comida pronta continha mais vitaminas.
Vale lembrar que esse papel também é dos pais, não só das mães. Temos que reorganizar a sociedade, aprender a lidar com a realidade de hoje, em que todo mundo trabalha e almoça fora.
Você lançou a campanha #queromaisqualidade, e afirmou que os brasileiros precisam exigir alimentos melhores, tanto in natura quanto processados. O que exatamente significa exigir mais qualidade?
No caso dos alimentos in natura, precisamos de mais vigilância sobre os agrotóxicos. Mas é preciso ter cautela com os números divulgados por aí dizendo, por exemplo, que o brasileiro consome cinco a sete litros de agrotóxico por ano.
Esses números são divulgados por habitante, mas não devemos esquecer que o Brasil é o maior exportador do mundo de produtos agrícolas. Então nem tudo o que é produzido aqui é consumido pela população brasileira. Esses dados nem sempre são adequados. Acho que deveríamos saber a quantidade de agrotóxicos por quilos de alimento produzidos.
Outra coisa importante de lembrar é que estamos num país tropical, que tem menos facilidade de produzir alimentos orgânicos como os Estados Unidos ou a França. Um país tropical precisa de pesticidas.
Fazer agricultura orgânica no Brasil é uma arte, e nunca vamos conseguir ter uma quantidade plena para alimentar todo mundo. Sou engenheira agrônoma, também entendo a dificuldade dos agricultores. Temos que parar o terrorismo de acusar a agricultura dessa maneira, mas o governo precisa de mais vigilância. A atual não é adequada.
E o que significa exigir qualidade nos alimentos processados?
O iogurte vem com foto de morango, mas dentro dele quase não tem morango. Tem um xarope, um aroma. Porque a lei brasileira permite que não tenha nada de morango. Se você pega o mesmo produto na Europa, da mesma empresa, ele vai ter de 8 a 10% de fruta. Ou seja, o país maravilhoso de frutas permite comercializar um produto com foto de fruta sem exigir certa quantidade de fruta.
É impressionante como a qualidade dos alimentos processados aqui é pior do que a gente vê fora. Acho isso uma coisa inaceitável. Mais qualidade também significa ter menos aditivos, menos conservantes. Sabemos que eles são necessários para vender os alimentos, que precisam ser estáveis. Mas a indústria está colocando aqui muitos aditivos cosméticos. O Guia Alimentar brasileiro até nomeia alguns deles.
Dentro dos alimentos ultraprocessados, a maioria dos ingredientes são aditivos cosméticos, para dar um gosto e um aspecto bonitinho pra vender, ou mais açúcar ou gordura. E nosso cérebro adora açúcar e gordura. Esses alimentos ficam na nossa memória hedônica, a memória do prazer. Esses alimentos sequestram nosso sistema de recompensa.
Mas aí começa também um terrorismo de que não se deve comer nada processado, qualquer coisa da indústria vira vilão. Isso também não é verdade. Há muitos produtos que são interessantes, higienizados, práticos.
Esse terrorismo de pessoas querendo comer tudo fresco atrapalha o dia a dia, porque você demora muito para achar esses produtos. A comida deve ser, de preferência, in natura, mas também integrando alguns alimentos processados como base e, de vez em quando, ocasionalmente, alguns ultraprocessados. Mas não se deve viver disso.
Para crianças, as mães compram tudo empacotado. Suco de caixinha, bolo empacotado achando que é melhor porque alegam ser saudável, dizem ter cálcio, vitaminas. Mas o melhor seria um bolo caseiro, com ovo de verdade. A indústria é capaz de fazer bolo processado com manteiga, ovo, farinha e um conservante. Mas ela faz com mil xaropes e gorduras.
Mas, segundo os dados da última pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde, um em cada cinco brasileiros é obeso. E esse índice aumentou nos últimos 10 anos. Por que isso?
Esse levantamento mostrou que as pessoas de fato estão engordando mais e ficando mais obesas, mas também mostrou que as pessoas estão comendo mais verduras e legumes e fazendo mais exercícios físicos. Então não é tão simples assim.
A oferta de alimentos no Brasil não piorou, mas as pessoas estão escolhendo de maneira pior. Há muita esperança. A população brasileira ainda come muito alimento de verdade. Os EUA estão numa situação bem pior. Aqui, 60 a 70% do que comemos ainda é comida de verdade.
Mas esse índice de obesidade está crescendo de modo que ninguém sabe explicar. Está acontecendo no mundo inteiro. Um estudo publicado na (revista científica) Lancet em 2014 mostrou que nos últimos 30 anos, cerca de 149 países aumentaram o número de obesos e ninguém conseguiu diminuir. Estamos revendo até o tratamento. Será que o que estamos fazendo está ajudando? Provavelmente não.
Revendo o tratamento de que maneira?
Estamos vendo que as coisas que passam para obesos e pessoas acima do peso fazerem atrapalham o processo, em vez de ajudar. Quando você faz uma dieta muito restritiva você emagrece sim, no começo, mas seis meses a dois anos depois você volta a engordar.
Vemos que 95% das pessoas que fazem dieta fracassam. Quer dizer, todo mundo fracassa. A dieta restritiva abre a rodovia do engordar.
Infelizmente, há um entendimento errado de que quanto mais magro, mais saudável. A saúde não é avaliada pelo número na balança, mas por muitos fatores. O peso na balança é um deles. Há os níveis de colesterol, de insulina, muitos dados são importantes. Focar tudo no peso é um dos muitos erros da saúde atual.
Outro erro é achar que o corpo é uma máquina simples de calorias, que se trata do que entra e do que sai. Cada pessoa tem um corpo diferente e o que você come não é computado no corpo como calorias e sim como proteína, carboidrato, etc. A pessoa que só pensa em calorias não cuida da qualidade, e sim da quantidade.
Além disso, esse ganho de peso em excesso não é necessariamente o problema que você tem que atacar. Às vezes ele é consequência de um estilo de vida, um problema de saúde, um desrespeito ao corpo, que engorda para se defender. As pessoas precisam parar de fazer dieta e fazer as pazes com a comida.
Você diz que dietas da moda, como a low carb (com pouco consumo de carboidratos), jejum intermitente, sem glúten e sem lactose são "terrorismo nutricional". Por quê?
Deram - Por que quem ganha com isso é a indústria porque as pessoas ficam reféns de produtos ultraprocessados que não têm glúten ou lactose. Quando se começa a proibir alimentos básicos da nossa cultura, como pão e leite, é preciso se preocupar. Temos que repensar o comer, mas não proibir tudo o que era da nossa cultura.
Com certeza há cerca de 2% da população que precisa tirar o glúten, que é uma proteína, por causa das doenças celíacas. E algumas pessoas têm uma sensibilidade maior do que outras. Mas as pessoas tratam se isso fosse alergia ao glúten, e não é isso. Não é tão grave assim.
O que acontece é que no processo de panificação antigamente, a fermentação era natural e bem mais lenta. Os micro-organismos digeriam mais o glúten. Já a panificação industrializada de hoje é rápida, muito brutal. Eles até colocam como ingrediente dentro desses pães o glúten refinado, para crescer mais rápido. Isso sim pode irritar nosso sistema intestinal. Comendo mais alimentos in natura você já volta a uma alimentação mais tranquila.
A lactose, por sua vez, é o açúcar do leite. Quando viramos adultos, digerimos menos esse açúcar. Algumas populações de origem asiática ou africana nem conseguem digerir. Na Europa houve uma mutação genética que faz com que muitos adultos ainda produzam essa enzima. Muitas pessoas, mesmo com intolerância diagnosticada, toleram um pouco de lactose.
Low carb é mais um terrorismo, como se de repente o vilão fosse o carboidrato a todo custo. Tenho no meu consultório uma vibe de compulsão alimentar por causa desse low carb. O carboidrato é nossa gasolina para funcionar. Se você corta isso, claro que emagrece, mas seu cérebro não vai gostar e começa a pedir carboidrato.
As pessoas que ficam low carb muitas vezes desenvolvem a compulsão por carboidrato. É como se o cérebro valorizasse mais a comida que foi proibida. Depois da dieta, o cérebro não responde mais aos sinais simples de ansiedade. Ele mistura sinais de cansaço, tédio, tristeza, com sinais de fome. E nisso, a tendência é justamente comer alimentos com carga energética maior, que confortam mais o cérebro - açúcar e gordura. Aí ela fica com culpa porque fica low carb o dia inteiro e no fim da tarde come um pacote de bolacha.
Esse terrorismo faz com que as pessoas busquem mais ajuda de profissionais e de produtos industrializados. Há um mercado aí por trás disso. Já tive pacientes que estavam sem glúten, mas, para ser mais fácil, só compravam produtos empacotados onde estava escrito sem glúten. E eu dizia: "Mas gente, arroz e feijão são sem glúten. Mandioca, pão de queijo...".
Jejum intermitente já se mostrou interessante em adultos em pesquisa controlada, em laboratório, em hospital. Mas em casa, não faça. Você funciona no dia a dia com muitas cobranças. Se você não está alimentando seu corpo, vira uma bomba prestes a explodir. De início se emagrece, mas o problema é manter.
E existe algum tipo de dieta que valha a pena fazer?
As dietas ayurvédicas são muito interessantes, se são bem feitas. Mas é preciso tomar cuidado porque muitos usam esse termo para fazer dietas da moda.
Também é preciso combater o que chamo de "comer emocional". Quando você está triste, é melhor chorar do que comer uma barra de chocolate. Mas tudo isso pede um investimento de tempo, de energia, de concentração que as pessoas não querem fazer.
Seus avós sentavam à mesa e comiam mais ou menos em função da fome. Não tinham esse conhecimento de glúten, lactose, blá blá blá que atrapalha a alimentação. Se tinha uma goiabada, pegavam um pedaço. E hoje temos que treinar as pessoas a voltar a funcionar assim. Temos tudo dentro de nós para funcionar corretamente, mas terceirizamos nossa fome, olha que loucura.
É importante dizer às pessoas que emagrecer não é só questão de #foco, #força e #fé (hashtags populares para tratar do tema no Instagram). O interessante seria as pessoas tentarem manter o peso e mudar sua alimentação. É possível treinar mais o comer emocional antes de tentar emagrecer 10 quilos. Ou seja, comer porque está com fome ou vontade de comer. Quando está triste, chora. Quando está ansioso, liga para um amigo, sai com o cachorro.
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/581319-qualidade-dos-alimentos-processados-no-brasil-e-pior-que-em-outros-paises-diz-nutricionista-antidietas)
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