Tantas pessoas analisaram os protestos que marcaram o mês de junho! Sociólogos, politicólogos, economistas, jornalistas, pseudojornalistas... Hoje eu trago um artigo do historiador Jaime Pinsky, o olhar do historiador sobre os eventos de junho.
O pecado original
artigo do
historiador Jaime Pinsky publicado originalmente no jornal
Para uns é a questão toda
refere-se à precariedade do transporte urbano. Para outros, a saúde pública. Há
quem diga que o problema maior é a educação, universal, mas de má qualidade. A
corrupção e a violência também têm sido apontadas como razões para as
manifestações recentes em todo o Brasil. Pode parecer que há motivos variados e
até mesmo conflitantes. Errado. Todos os protestos decorrem do
indiscutível e inaceitável distanciamento que existe no Brasil entre a
Nação e o Estado.
A Nação, constituída
pelos cidadãos concretos, pelas pessoas reais, não reconhece nos poderes
constituídos, todos eles (executivo, legislativo e judiciário) seus
representantes. “Nós” somos nós e “eles” são eles. Expressar-se, como tem se
expressado a sociedade, é mais sintomático ainda em se tratando de gente que
poucas vezes sai às ruas (todos observamos o deslumbramento de muitos que as
frequentavam pela primeira vez). Mas, como escreveram em seus cartazes Lívia e
Ana Paula, desde os primeiros dias, “são quinhentos e treze anos e vinte
centavos”. Cabe-nos ler e entender o que elas queriam dizer com isso.
Somos fruto de um “pecado
original”, aquele que criou o Estado brasileiro em 1822 sem que houvesse, de
fato, uma Nação que o reivindicasse - o contrário do que aconteceu na maioria
dos países em que a estrutura jurídico política surge como decorrência dos
anseios de uma nação já constituída (nação aqui definida como o povo com
consciência de sua identidade). Pelo fato de, entre nós, criarmos um Estado com
todo seu aparato (exército, burocratas, cobrança de tributos e impostos,
controle social, sistema prisional, imposição linguística, sistema educacional,
dezenas de ministérios, mordomias inexplicáveis, etc.) que não respondia a
anseios da população, esta nunca o reconheceu, tratando-o sempre na terceira
pessoa do plural.
É verdade que
governantes, legisladores e juízes não têm facilitado. Ao assumirem papéis na
estrutura jurídico-política deixam de ser povo e se transformam em
“autoridades”. Claro que em qualquer país há rituais inerentes a funções
públicas, mas o exagero entre nós é evidente. Nossos supostos representantes vão
muito além de cumprimento de obrigações protocolares: as “autoridades” exigem
“respeito” equivalente ao que o Faraó, seus funcionários e sacerdotes exigiam
dos súditos. São automóveis com motoristas à disposição de toda a família, são
diárias de viagem superiores ao salário mensal de professores, é o uso de aviões
de serviço para conforto pessoal (e até da sogra), é cabeleireiro que cobra 5
salários mínimos por hora de trabalho, tudo isso às custas dos nossos impostos
diretos e indiretos.
Entre nós, ao contrário
do que acontece na maioria das democracias, o modo como se exerce o poder
distancia os representantes dos representados. Cidadãos brasileiros são
percebidos pelos poderosos de plantão (ou os vitalícios, que os há) não como
cidadãos, mas como súditos, simples massa de manobra, gente para ser enganada a
cada eleição.
Talvez por isso nossos
governantes quase não governem: uma vez no poder dedicam-se a criar as bases de
sua permanência (e da corriola, é claro) na função obtida, preparando-se para a
próxima eleição. Não querem perder o direito ao uso (e abuso) das vantagens
conquistadas. Detestariam voltar a ser apenas parte da Nação.
Por outro lado, povo nas
ruas pode ser bom, mas substituir a democracia representativa pela direta é
inviável em uma sociedade complexa como a nossa. Afinal, não estamos na Grécia
Clássica, não cabemos todos em uma praça. Precisamos, pois, de representantes.
Porém, chegou a hora destes mudarem sua forma de fazer política, criar leis,
promover justiça. Temos que melhorar nossa democracia. Estamos todos de acordo
com penas mais severas e sentenças rápidas para os que confundem patrimônio
público com o privado. Concordamos também que não tem sentido arrotar prioridade
de transporte público e manter um modelo que isenta de impostos os automóveis
privados. Não há dúvidas ainda sobre a necessidade de uma ampla reforma
política. Mas, antes que o abismo cresça ainda mais, precisamos reaproximar o
Estado da Nação.
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