por Marcelo Gruman
Nesta semana, a escola do Miguel realizou suas Olimpíadas. Na cerimônia de abertura, cada uma das quatro equipes, representadas pelas cores azul, verde, amarelo e vermelho, desfilou com seus “atletas” e porta-bandeiras, observados de perto por quatro jurados responsáveis pela avaliação do desempenho da evolução dos componentes tal qual uma escola de samba. A nota foi somada àquela obtida pelos “atletas” nas respectivas modalidades olímpicas, dentre as quais, o tradicionalíssimo “totó” (ou pebolim, para certas regiões mais provincianas do país), determinando a posição de cada uma das cores no panteão olímpico. Em meio à euforia do acendimento da pira e das palavras da representante do comitê olímpico escolar, os porta-bandeiras, estudantes do ensino médio, puxaram o coro de “Fora Temer” e “Golpistas, fascistas, não passarão”, acompanhados por muitos dos adultos que ali estavam para prestigiar os filhos. Um dos mini-atletas brandia um cartaz em que se lia “escola sem pensamento crítico não é escola”. Na cerimônia de encerramento, entoaram-se os mesmos coros além de “machistas (…) a América Latina será das feministas”.
Em 2014, a escola do Miguel realizou a “descomemoração” do golpe que implantou a ditadura militar por mais de duas décadas em Pindorama. No folheto distribuído à época, intitulado “Para que nunca mais aconteça”, há explicação para a participação institucional da escola nesta “descomemoração”, qual seja, a de que ela nasceu de um sonho de liberdade e de justiça social, comprometida com a formação humana, “acreditando que o ser humano se faz historicamente, a partir de relações sociais e interpessoais” e apostando “que o presente pode fazer um futuro mais humano quando conhece, compreende o que se passou”. Alunos do ensino fundamental e do ensino médio participaram de diversas atividades, incluindo a coleta de depoimentos de pessoas que resistiram à opressão nos anos de chumbo. Chamava-nos muito a atenção a instalação, produzida pela Anistia Internacional, composta por grandes réplicas de escudos militares com informações sobre crimes cometidos durante a ditadura militar, bem na entrada da escola.
É comum vermos cartazes espalhados pelas paredes da escola com frases questionando a cultura do estupro e o machismo que ainda imperam na sociedade medieval brasileira. No inverno carioca, ainda que não chegue aos pés do de outras regiões do país, pedidos de doação de roupas para quem precisa. Em duas paredes, os alunos puderam intervir do jeito que bem quiseram, ao menos é esta a impressão. Um monte de desenhos e frases, boa parte delas exortando à liberdade de expressão e de criação, uma das minhas preferidas sendo a singela “menos tretas, mais tetas”. Tem de tudo. Bob Marley, Sigmund Freud, o onipresente Che Guevara, Bertolt Brecht, Sheldon Cooper, o personagem autista da sitcom The Big Bang Theory. Diversidade sexual, pois não. Aos mais atentos, observam-se casais homoafetivos circulando pela escola. Miguel teve uma professora lésbica (ou será bissexual? Na verdade, quem se importa?). Até aqui, nenhum trauma visível.
A escolha por colocar nosso filho numa escola que dá importância à discussão de temas que dizem respeito à cidadania e à história recente de nosso país, posicionando-se criticamente e tomando partido de um dos lados, politicamente, não é, obviamente, desprovida de interesse. Sabíamos, de antemão, que a orientação pedagógica primava, sobretudo, à formação do indivíduo dotado de massa crítica, inserido como sujeito ativo e responsável pela realidade que o circunda. Não concordamos, necessariamente, com tudo o que é transmitido a partir do projeto pedagógico nem com o posicionamento político, ainda que velado, do corpo docente e demais funcionários, mas concordamos com este projeto pedagógico de uma forma geral. Se não concordássemos, Miguel estaria estudando em outra escola. Muitos pais tiraram seus filhos porque, embora os pequenos estejam ainda no segundo ano do ensino fundamental, a preocupação com o ENEM é tamanha que a preferência é, desde cedo, acostumá-los à concorrência feroz a uma das vagas das universidades mais prestigiosas do país. Quilos de deveres de casa por semana, provas, pressão por desempenho desde já. É uma escolha, não a nossa.
O que me deixa feliz é a inserção crítica dos alunos em seu meio social. Goste-se ou na Dilma (eu não gosto da Dilma, tampouco gosto do Temer), goste-se ou não de homossexuais (eu não gosto nem desgosto, o mesmo com os heterossexuais, não é uma característica que se deva gostar ou desgostar), eles existem e devem ser compreendidos segundo um arcabouço teórico e valorativo cuja responsabilidade de transmissão é tanto dos pais quanto da escola. Meu filho tem a oportunidade de discutir temas que fazem parte de seu cotidiano, ainda que ele não tenha ainda muita consciência, coisa que eu não tive. Lembro-me perfeitamente do dia em que uma multidão de alunos descia a Rua das Laranjeiras em direção à Candelária para mais uma manifestação pelo impeachment de Fernando Collor, ouvíamos a rapaziada entoando slogans e nós numa aula qualquer, de matemática ou português, totalmente alheios ao que se passava à nossa volta. Importava mais quantos alunos entrariam na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fui o patinho feio da turma, único a seguir ciências sociais, isto e um punhado de alfafa dava na mesma para a coordenação pedagógica da minha escola.
Então nos vemos diante de um troço chamado “Escola sem Partido”, um “movimento” que prega o fim das “ideologias” dentro da sala de aula, especificamente, aquelas mais à esquerda que pregam o socialismo ou o comunismo. O foco, claro, é dirigido ao Partido dos Trabalhadores que, há muito tempo, nada tem de esquerda, sejamos sinceros. No entanto, os representantes deste “movimento” confundem, involuntariamente porque intelectualmente deficientes, “ideologia” com, digamos, “posicionamento político”. Erroneamente estigmatizado, o termo “ideologia” diz respeito à forma como interpretamos a realidade, são as lentes de aumento que usamos como referência valorativa, simbólica daquilo que nos cerca, daquilo que sentimos, daquilo que vivemos, daquilo que fazemos. Ela tem, inexoravelmente, relação com nossas convicções políticas, inclusive sermos seres apolíticos. Todos nós somos ideologicamente motivados.
Colocar o filho numa escola que preza a diversidade sexual, por exemplo, é uma opção ideologicamente orientada no sentido de estar consoante com os valores professados pelos pais (nós, neste caso) e compartilhados com a escola. Também são ideologicamente orientados os pais que colocam o filho numa escola religiosa ou que só quer saber de passar o maior número possível de alunos nas principais universidades do país, sem criar indivíduos que consigam pensar por si próprios, autocríticos, responsáveis e solidários com o outro. O filósofo italiano Nuccio Ordine lembra que “o estudo é, antes de mais nada, aquisição de conhecimentos que, livres de qualquer vínculo utilitarista, nos fazem crescer e nos tornam mais autônomos”. O projeto pedagógico utilitário é ideológico também. É uma escolha como qualquer outra. Escola sem partido, sim; escola sem tomar partido, não.
A impressão que tenho ao ouvir os defensores do fim das ideologias na escola é que querem, na realidade, a formação de autômatos idiotizados, incapazes de questionar o que quer que seja. A ignorância é método eficientíssimo de controle. Olha a ideologia de novo aí: a alienação intelectual como forma de controlar corações e mentes. Por isso minha emoção em ver o comportamento espontâneo dos alunos, tanto do ensino fundamental quanto do ensino médio, nas cerimônias de abertura e encerramento das olimpíadas escolares. Tive a certeza de que Miguel está no lugar certo.
Detalhe não menos importante: É CAMPEÃO!
* MARCELO GRUMAN é Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). Atualmente é administrador cultural da Fundação Nacional de Arte (Funarte). Blog: https://desconstruindomarcelo.blogspot.com.br/
(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2016/08/03/a-estupidez-da-escola-sem-partido/)
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