A evasão somada à sonegação fiscal de empresas brasileiras chega a
27% do total que o setor privado deveria pagar em impostos no Brasil, o
equivalente a cerca de R$ 500 bilhões. O alerta faz parte do informe
anual da Organização das Nações Unidas (ONU) que
destaca que o fenômeno presente em toda a América Latina impede que
governos tenham acesso a recursos que poderiam ser usados para financiar
serviços públicos.
Na avaliação da entidade, para que os ganhos sociais possam ocorrer
até 2030, os governos latino-americanos terão de investir mais. E, para
isso, terão de elevar sua capacidade de arrecadação. Em alguns países da
região, porém, a receita com impostos ainda representa menos de 20% do
PIB.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a especialista em orçamento público do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc),
Grazielle David, aponta que os principais motivos para a sonegação
fiscal no Brasil ser tão elevada está nas leis flexíveis e na ausência
de investimentos no combate ao problema.
Segundo a especialista, os impostos mais sonegados no país são
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS), o
Imposto de Renda e as contribuições previdenciárias que, se
arrecadados, poderiam ser destinados à Previdência Social, por exemplo.
“Em 2015, a sonegação chegou a R$ 500 bilhões, o equivalente a 5
vezes o orçamento da Saúde ou todo o orçamento da Previdência Social. Em
um momento que se fala que a Previdência precisa ser completamente
reformada e os direitos negados, se todo o valor da sonegação fosse
recuperado, toda a Previdência poderia ser paga”, diz David.
Confira a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Quais as principais origens da sonegação fiscal no Brasil?
Grazielle David: Existem alguns estudos nacionais e
internacionais, além desse da ONU, que aprofundam um pouco essas
questões da evasão e da sonegação fiscal. Um grande grupo que sempre
pesquisa sonegação fiscal no Brasil é o Sinprofaz,
o Sindicato dos Procuradores da Fazenda. Há uns 10 anos eles divulgam
anualmente uma avaliação da sonegação no país. É interessante ver que
esse número da ONU está bem próximo das análises que o Sinprofaz já
fazia. O último estudo deles, em relação ao ano de 2016, diz que a
sonegação fiscal fica em torno de 25% a 28% da arrecadação, o que fica
na mesma linha da ONU. Além disso, quando se pensa, não por proporção da
arrecadação, mas pela proporção do PIB, o estudo do Sinprofaz diz que a
sonegação chega a 10% do PIB nacional. Nesse mesmo estudo foi
identificado ainda que os tributos mais sonegados são o ICMS, o
principal tributo estadual, o Imposto de Renda e as contribuições
previdenciárias.
Outro grupo, que é internacional, o TX Justice Network, uma rede de
justiça tributária, utiliza dados do Banco Mundial e observou que o
Brasil era vice-campeão mundial na sonegação de impostos, com algo em
torno de 13% do PIB. Um valor bem considerável.
Já o estudo do GFI, Global Financial Integrity, que trabalha com
informações de fluxos financeiros, conseguiu captar quais os mecanismos
utilizados para promover evasão fiscal. Eles observaram uma questão
muito interessante: a priori, sempre se pensava que o dinheiro que saía
de um país para um paraíso fiscal era fruto de corrupção ou dinheiro
puramente ilícito. Porém, eles puderam observar que grande proporção -
cerca de 80% dos fluxos financeiros - desse dinheiro tem relação com o
setor privado e que o principal mecanismo utilizado é o
sub-faturamento.
Isso significa que quando as empresas vão fazer as notas fiscais, ou
seja, informar seu faturamento, elas informam com um valor inferior e,
assim, conseguem pagar tributos menores, já que muitos deles são sobre o
valor de faturamento. Um grande exemplo prático disso é a Vale, que
está como uma das grande devedoras do país, inscrita na dívida ativa da
União. O Inesc fez um estudo sobre a Vale e observou que a empresa
vendia o ferro, que é seu principal minério exportador, a um preço
abaixo do mercado internacional. Depois exportava para ela mesma,
normalmente para um paraíso fiscal, e, a partir dali, revendia.
Ganhando, dessa forma, duas vezes: primeiro, porque deixou de pagar os
tributos sobre o faturamento e, depois, porque revende com o valor de
mercado lucrando muito.
Como esse valor que não é arrecadado poderia contribuir para os investimentos públicos?
A ONU realiza alguns estudos para analisar a melhor forma de
financiar os antigos Objetivos do Milênio, atualmente, denominados
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Até então, eles contavam
muito com as doações dos países mais ricos e mais desenvolvidos que
ajudavam os países em desenvolvimento. Com o cenário de crise econômica
global, desde 2008, eles perceberam que talvez isso não seria mais
viável. Então, começaram a pensar em alternativas estudando os fluxos
financeiros. Com isso, observaram que os países em desenvolvimento
sofrem muito com a sonegação fiscal, tanto das empresas nacionais
quanto, principalmente, das multinacionais. Por isso começaram essa
campanha contra a sonegação, o que poderia ser eficaz na arrecadação
para o financiamento dos ODS.
Essa lógica é a mesma que diversos movimento sociais, organizações e
universidades seguem no Brasil. Assim que o governo anunciou diversos
cortes necessários e o déficit fiscal no país, vários grupos começaram a
apresentar alternativas e a rejeitar as medidas de austeridade, porque
seria o mesmo que a ONU dizer que no cenário de crise os investimentos
nos ODS iam parar.
Aqui no Brasil, estamos indo no sentido contrário da ONU. No lugar de
pensarmos em alternativas que poderiam financiar os direitos e as
políticas públicas, como diminuir as desonerações tributárias e investir
no controle da sonegação fiscal, estamos implantando medidas de
austeridade.
Em 2015, por exemplo, a sonegação chegou a R$ 500 bilhões, o
equivalente a 5 vezes o orçamento da Saúde ou todo o orçamento da
Previdência Social. Em um momento que se fala que a Previdência precisa
ser completamente reformada e os direitos negados, se todo o valor da
sonegação fosse recuperado, toda a Previdência poderia ser paga.
Quais as principais medidas a serem tomadas para um combate efetivo da sonegação no Brasil?
O primeiro passo é revogar todas as leis que extinguem a punição de
quem comete crimes tributários caso o pagamento do tributo seja
realizado. Assim como qualquer outro crime, a sonegação deve ser punida
adequadamente, ao ponto de que não seja benéfico cometê-la. Enquanto for
mais lucrativo sonegar e cometer um crime tributário vai haver grande
motivação para que isso aconteça. Tanto é verdade que a sonegação entra
dentro do planejamento tributário das empresas, principalmente das
grandes, que tem capacidade de pagar caro por advogados, economistas e
contadores que conseguem, com um planejamento tributário mais agressivo,
incluir a sonegação como uma estratégia. Porque se eles deixam de pagar
os tributos ao longo do ano investem esse valor e rende muito. E após
cinco anos, se a sonegação não for descoberta, prescreve.
Além da questão legal, também seria muito importante trabalhar a
questão da fiscalização. Temos a Receita Federal e os fiscos estaduais,
muitas vezes, com pouca estrutura. A gente vive hoje em um mundo
extremamente tecnológico, com uma capacidade de integração entre as
cidades altíssima, mas diversas administrações estão com seus
equipamentos completamente defasados. Por mais que sejam criados
softwares interessantes de cruzamento de dados e de controle de
integração, os equipamentos não têm capacidade para
suportá-los. Precisaria ser investido um pouco mais na administração e
sua infraestrutura e na contratação de pessoal.
Se a gente for pensar, por exemplo, na Procuradoria da Fazenda
Nacional, que faz o controle da dívida ativa, responsável por cobrar os
sonegadores, estão extremamente sobrecarregados. São pilhas e pilhas de
documentos para cada procurador, que não consegue cobrar adequadamente.
Eles, inclusive, soltaram uma nota dizendo que ao ano eles arrecadam
apenas 1% da dívida ativa, uma porcentagem extremamente pequena.
Na sua opinião, há uma má-vontade política em aprimorar os mecanismo de combate à sonegação?
Parece que sim. Sempre que a gente traz essa possibilidade, ela é
encarada como impossível de ser realizada. É interessante como todas as
medidas de austeridade são consideradas embasadas cientificamente e as
medidas alternativas - combate à sonegação, repensar as exonerações
realizadas e melhorar a eficiência da cobrança da dívida ativa - são
consideradas utópicas. Isso demonstra algumas ideologias e interesses
envolvidos.
Os crimes tributários, como a sonegação, deixaram de ser crime
de fato porque perderam a punição a partir de 1996, um ano de grandes
medidas de austeridade no país. Podemos perceber, então, que nos ciclos
de medidas de austeridade e de liberalismo econômico, temos cenários que
cortam investimentos públicos, se amplia o valor do orçamento público
que vai para o que podemos chamar de financismo e se beneficia grandes
grupos econômicos, que normalmente são capazes de realizar grande
sonegações. Se a gente observar os 500 maiores devedores inscritos na
dívida ativa da União, percebemos que são grandes corporações.
Percebe-se um interesse em beneficiar exatamente esses grupos. O poder
econômico está muito ligado com o poder político, existe uma troca de
favores ali.
(fonte: https://www.brasildefato.com.br/2017/01/25/combate-a-sonegacao-e-suficiente-para-cobrir-gastos-com-previdencia-diz-especialista/)
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