por Eduardo Leal Cunha
Num
momento da nossa história nacional em que a dita elite politica deve
estar – como me diz um amigo – preocupada em não haver uma grife
elegante para tornozeleiras eletrônicas, talvez seja interessante poder
ao menos associar livremente sobre o que entendemos como elite.
Dito
isso, meu primeiro pensamento é que a nossa compreensão do que seja
elite parece, ao menos para a maioria das pessoas, estar atrelada à
imagem de área vip, tome ela a
forma do camarote de um show ou casa noturna ou simplesmente a de um
bloco do carnaval da Bahia, no qual uma corda e um cordão humano mal
remunerado separam algumas pessoas de determinadas outras. Todas estas,
figuras imaginárias de um outro sintagma que procura dar conta do que
entendemos como elite: gente diferenciada.
Para
Zigmunt Bauman, os pobres e os excluídos tendem a ser percebidos como
viscosos, como capazes de nos arrastar para o lodo da exclusão social,
nos transformando em perdedores[1].
Nossa concepção de elite parece se apoiar quase inteiramente na
construção de barreiras que nos protejam desse visco. Barreiras que nos
legitimam como seres diferenciados, imunes à pobreza, mas também à lei.
Ser
da elite não parece significar a posse de nenhum atributo especial –
como aqueles que antes poderíamos associar a valores aristocráticos – e
assim o pertencimento à elite nada implica além da distinção em relação
aos que a ela jamais terão acesso, sobretudo os pobres e os pretos ou os
quase brancos quase pretos de tão pobres, como cantam Gil e Caetano nos
lembrando do Haiti. Por isso, o esforço permanente em erguer e manter
as barreiras que nos separam e mantém a distinção, a ferro e fogo.
Ser
de elite é estar à margem da maioria, o que confere uma espécie de
legitimidade ao nosso dito jeitinho brasileiro, pois quando temos acesso
ao camarote e nos separamos da plebe ignara (como se dizia antigamente)
o jeitinho deixa de ser sinal de esculhambação e passa a ser signo de
autoridade ou de reconhecimento, o que nos dá o direito de pressionar um
colega ministro pela liberação do imóvel irregular onde adquirimos um
apartamento incompatível com a nossa renda ou de receber na calada da
noite um empresário com o qual tenho uma consistente relação de troca de
favores. Aliás, como todos sabemos, um dos charmes maiores da área vip é
poder convidar um pobre mortal a compartilhar conosco nossos
privilégios enquanto a massa se espreme em filas ou contra o cordão de
isolamento.
Ter
o privilégio de ser da elite é assim ocupar determinados lugares
inacessíveis à maioria, e é por isso que essa geografia do privilégio me
leva à geografia da cidade do Rio de janeiro – onde morei grande parte
da minha vida, contemplando de longe tanto as favelas nos morros quanto
as coberturas da Vieira Souto – e me perguntar sobre Copacabana.
Por
que em Copacabana se diz bom dia aos vizinhos? Por que, ao contrário,
durante os cinco anos em que morei na fatia mais nobre da cidade
maravilhosa, no coração de Ipanema, deparei tantas vezes com pessoas
incapazes de trocar duas palavras simpáticas, de falar sobre o tempo num
rápido passeio de elevador? Por que, ainda nesse dito bairro nobre, um
velho ator insistia em não agradecer sempre que segurávamos a porta para
que ele passasse, ou por que outro ilustre vizinho, financista
bem-sucedido, jamais segurava a porta para que qualquer outro alguém
passasse?
Para
não falar das lixeiras do prédio elegante, aquelas que precisamos abrir
e despejar nossos sacos de lixo para que desabem sobre uma grande
lixeira comum nos subterrâneos do edifício, mas que a maioria dos
moradores, gente diferenciada, se recusava a abrir, talvez para não se
contaminar com odores quaisquer, talvez para que nem mesmo seus dejetos
se misturassem indevidamente. Enfim, deixavam lá seus sacos no corredor,
junto à portinha da lixeira, para que o porteiro, gente comum,
terminasse o serviço.
Por
que em Copacabana é diferente e a chamada classe média decadente e
empobrecida daqueles prédios cheios de vizinhos ainda tem uma boa noção
do que seja civilidade? Por que lá um garoto de 10 anos, embora ainda
não tenha aprendido a limpar os pés da areia da praia antes de entrar no
elevador, já sabe, no entanto, que deve segurar a porta e esperar quem
está cruzando a entrada do prédio, a 15 metros de distância?
Por
que os nossos nobres jogam latas vazias pelas janelas dos seus
automóveis enquanto aqueles que vivem dessas latas jogadas nas ruas,
tantas vezes nos pedem licença ou agradecem quando se abaixam e se metem
entre nossas pernas elegantes e bem vestidas para catá-las? Que sentido
damos a nobreza? O que seriam e a quem pertenceriam no Brasil de hoje
os gestos nobres?
Entender
isso talvez nos permita entender um pouco mais sobre o que chamamos de
elite. Até mesmo para não nos enganemos acreditando que no Brasil só
conservadores e gente de direita são vítimas dessa ilusão do distinguir-se ou
solitários culpados das barreiras cotidianamente erguidas para que ela
se mantenha, ou ainda beneficiários exclusivos das trapaças que nela se
legitimam.
Lembro
do lançamento do livro de uma amiga, conhecida militante de esquerda,
quando um jovem e brilhante advogado, colega da mesma militância, talvez
por ser tão jovem, brilhante, e até generoso por ser de esquerda e
lutar pelas classes populares, se achou no direito de furar a fila
enquanto quase uma centena de pessoas se espremiam entre os corredores.
Somos todos iguais, mas talvez nós, que, podendo nos achar melhores pela
nossa classe, formação ou posição politica, abrimos mão desse direito
para nos admitir iguais a todos os outros, bem, talvez nós sejamos no
fundo um pouco melhores.
Temos
pessoas da elite, afinal, ocupando diversos setores do espectro
político,indivíduos que parecem ver como essência da distinção social o
direito a desrespeitar o outro, numa espécie de narcisismo sem dor, sem
risco e sem culpa. Uma dispersa legião de vencedores que acredita que
venceu, e só isso importa, pois como nos lembra Richard Sennett, no
capitalismo dito avançado, o vencedor leva tudo[2].
A
tudo isso, prefiro definitivamente Copacabana, onde a velha elite já
aprendeu, em geral com a idade, que a ruína é destino inevitável dos
seres humanos, e que aos oitenta anos nos tornamos todos iguais perante
um degrau alto demais, a rua sem calçada ou a fila do banco. Onde os
jovens, que talvez já nem sonhem em fazer parte da elite, acham
simplesmente que é melhor e mais prático tratar os outros como iguais.
Ali, tudo é meio junto e misturado, e os narcisismos das pequenas e
grandes diferenças, ou as ilusões de distinção, são postos diariamente à
prova pelo convívio inevitável com o outro e com os limites da nossa
tolerância e dos nossos preconceitos.
Entender
a elite como os portadores de pulseirinhas coloridas exibidas
orgulhosamente a seguranças talvez nos ajude ainda a entender o porque
desse sentimento tão compartilhado aqui e ali, explícita, discreta ou
implicitamente, de que precisamos castigar o Partido dos Trabalhadores, essa raça
da qual precisamos nos livrar de uma vez por todas (termo e expressão
do ilustre Senador Jorge Bornhausen), bando de penetras em festa de
bacana, gente que não tem nem o bom gosto necessário para gastar os
frutos da corrupção, que talvez não tenha sequer um sítio em Atibaia, mas
certamente tem alma de pobre, como lembrou entusiasmadamente ao próprio
Lula,numa dessas famosas interceptações telefônicas,o também ilustre
Prefeito Eduardo Paes, gente que não vai a Ipanema ou ao Leblon das
novelas da Globo, gente com ambições de suburbano que talvez mereça, no
máximo, um lugar na praia de Copacabana, de preferência naquele
pedacinho onde o sol já não bate por conta da sombra dos edifícios de
onde os Neves, os Collor de Mello ou os Marinho eventualmente saúdam o
ano novo.
Por fim, última associação, lembro do clássico Viva o povo brasileiro[3], de João Ubaldo Ribeiro (imortal da Academia de Letras e, segundo ele mesmo, também da Academia da Cachaça),
no qual a ficção nos demonstra poética e didaticamente como a
construção da nossa elite se deu desde o princípio na contramão da
formação do nosso povo e da nossa nação, o que talvez nos explique
porque tantas vezes temos a impressão de que seus movimentos parecem
desejar simplesmente destruir esse povo e essa nação, como destruíram ao
menos grande parte do encanto de uma tarde em Copacabana retirando-lhe
tão somente o brilho do Sol.
Eduardo Leal Cunha é
psicólogo e psicanalista. Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ).
Professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador Associado
do Centre de Recherches Psychanalyse Médecine et Société da Universidade de Paris VII – Diderot.
[1]Bauman, Zigmunt Mal-estar napós- modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1999
[2]Sennett, Richard. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Record, 2004.
[3]Ribeiro, João Ubaldo Viva o povo brasileiro. São Paulo: Alfaguara Brasil, 2008.
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