REGINA MACHADO*
O detalhe que esclarece o todo, a gota d’água sobre uma folha ao
amanhecer, que reflete o universo e dá a entender o entorno do aqui e
agora. Momentos que o olhar de repente entende.
Bormes-les-Mimosas, conhece? Passei por lá há alguns anos. Lugar
lindo na Côte d’Azur, encostas acobreadas, mansões discretamente
luxuosas, florestas de pinheiros extensas e bem preservadas. Beleza!
Até que, de alguns anos para cá, a cada verão, um pedacinho mais seco
pegava fogo. Claro que tem os idiotas de passagem que jogam lixo, toco
de cigarro, fralda, pela janela do carro. E isqueiros. Mas a
imbecilidade não basta para explicar os incêndios em todo o sul da
Europa – França, Espanha, Portugal, Itália… E não precisa ser um gênio
para relacionar esse fenômeno com o aquecimento global. Não é isso o que
me chamou a atenção.
A
gota d’água foi uma reportagem TV, mostrando milhares de refugiados do
incêndio no departamento do Var, Costa Azul da França, proprietários
residentes no local, ou estivantes em campings, gente que foi
deslocada de casas ou caravanas confortáveis durante a noite, para
ginásios e estádios ao abrigo do fogo. A reportagem mostrava o
recenseamento desses refugiados que, desamparados, faziam fila para
serem registrados e poderem depois ir procurar um colchonete para
dormir.
Essa cena me lembrou outra que vem se repetindo ultimamente, a dos
refugiados dos naufrágios no Mediterrâneo, que ainda mais numerosos
fogem da fome, da seca, da incompetência e brutalidade de ditadores
velhos ou novos. Os da Costa Azul têm a esperança de voltar para suas
casas, pois os bombeiros, exaustos, ja estão conseguindo controlar o
incêndio, apesar da vetustez dos Canadairs, que não dão conta dos
incêndios em todo o sul do continente. Mas para que ter uma casa
caríssima numa paisagem devastada? Hoje no rádio já falavam de
reconstituir a floresta, mas lembrando que uma árvore de verdade leva
quarenta anos para ornar uma paisagem com grandeza. E quanto tempo vai
levar para reconstruir cidades destruídas, de famílias, escolas e amigos
desaparecidos? Será que um dia vão refazer aquela riqueza de pedra,
cores e perfumes que foi o suk de Alep? Fora o Líbano e a Grécia,
ninguém mais quer receber imigrantes escapados de bombardeios cruzados
sobre suas pobres casas. Parece que só países pobres têm espaço para
receber os pobres do mundo.
Apesar da desproporção, acho que tem a ver. A irresponsabilidade dos
incendiários involuntários da Costa Azul é nada perto da destruição
planetária de florestas e águas doces e salgadas, perpetradas em nome de
interesses agrários, petrolíferos, pesqueiros… As casas da Riviera, as
tradicionais cabanas redondas de aldeias africanas, as casas seculares
de cidades sírias… A tartaruguinha morta no incêndio dos pinheirais é
uma gota d’água que reflete os elefantes mortos por alguns quilos de
marfim, dos rinocerontes supostos redourar a virilidade de alguns
desanimados do amor, dos pássaros sem árvore para nidificar. Tudo que
embelezava e pertencia a quem vivia e conhecia de perto cada folha, cada
amanhecer.
O olhar perdido dos escapados do incêndio não tem nem de longe o
mesmo desespero dos africanos que atravessaram o Mediterrâneo e que
escaparam à gana dos passadores/traficantes, depois de atravessar
desertos, de ficarem presos na Líbia destruída, esperando um resgate bem
improvável. Mas é uma gota d’água refletindo o sofrimento sem fim dos
excluídos.
* REGINA MACHADO é Pesquisadora associada ao CREPAL. Tese sobre a ficção das fazendas de café escravagistas no vale do Paraíba disponível em https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01086733
(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2017/07/29/gota-dagua/)
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