Exigências de estudo às vezes descabidas e ambiente de competitividade intensa levam estudantes de Medicina a abusarem de estimulantes químicos. Índice de suicídios também é elevado
Por Bianka Vieira, na Trip
Livros abertos, caneta e papel a postos, um copo d’água e um comprimido. Esse é o ritual de Hélio*, 20 anos, em quase todas as vésperas de prova na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Na última, em um domingo em que já passava da meia-noite (a prova seria na manhã seguinte, às 8 horas), ele sentia a atenção redobrada graças ao Stavigile, um medicamento à base de modafinil, usado para tratar sonolência diurna. “Não senti nenhum poder especial, mas é realmente estimulante, como se tivesse tomado uma droguinha”, conta. Adepto de um outro remédio controlado, a Ritalina, era a primeira vez que o estudante experimentava o modafinil, que encontrou entre as coisas do pai. “Achei bem melhor. Ritalina me tira a fome, dá taquicardia e não me parece muito constante.”
Não é a primeira, nem a segunda,
nem a última vez que Hélio ou qualquer outro estudante de medicina se
sujeita à automedicação e ao uso indiscriminado de substâncias com nomes
como modafinil e metilfenidato em busca de uma turbinada no cérebro –
prática conhecida pelo termo técnico “neuroaprimoramento”. Para quem
quer vestir o jaleco branco, os estimulantes surgem como solução muito
antes da graduação. Caetano*, 24, que hoje está no quarto ano de
medicina na Unicamp, chegou a ingerir um comprimido por dia enquanto
estava no cursinho. “Com Ritalina, conseguia estudar por muito mais
tempo sem ter fadiga física ou mental. E se queria estudar à noite,
tomava mais meio”, lembra. Nessa época, Caetano acordava com o remédio,
usado para tratar transtorno de déficit de atenção, e só pegava no sono
depois de dois ou três comprimidos de Dramin.
Rita*, 20, também teve suas
experiências com estimulantes antes de passar, este ano, no vestibular
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – mas, no caso dela, o
milagre vinha prescrito com outro nome: Venvanse. Com a atenção apurada e
um raciocínio mais ágil, seu desempenho passou de mediano e oscilante
para alto e constante. “Eu me sentia igual àquele cara do Sem
limites [no filme, de 2011, um escritor interpretado por Bradley Cooper
aumenta drasticamente sua inteligência com uma droga]“. Ao
contrário dos amigos de faculdade que também entraram na brisa do
Venvanse ou da Ritalina no pré-vestibular, Rita não sentiu efeitos
colaterais, como inibição de apetite, insônia, taquicardia ou dores de
cabeça. Por outro lado, passou do manequim 44 ao 38 em apenas três
meses. “É um medicamento muito caro e eu decidi que era hora de parar.
Mas confesso que sinto muito a falta”, diz.
Supermente
Há uma crença de que remédios como
Stavigile, Venvanse, Provigil, Eranz, Concerta ou Ritalina – receitados
para pessoas com déficit de atenção, hiperatividade, narcolepsia, entre
outros diagnósticos – aumentem a produtividade e a atenção de quem
precisa estudar ou trabalhar por horas a fio. Eles atuam no sistema
nervoso central acelerando a liberação de hormônios como dopamina,
noradrenalina e norepinefrina, que controlam, entre outros fatores, o
humor, a ansiedade e o sono. O efeito não é nenhuma novidade.
Anfetaminas são usadas com esse propósito há décadas, mas essas outras
substâncias, muitas vezes chamadas de “drogas da inteligência”, não são
associadas diretamente ao “rebite” ou à “bolinha” de alguns anos atrás –
embora Concerta e Ritalina, por exemplo, sejam compostos por
metilfenidato, que é, exatamente, um tipo de anfetamina.
Apesar de serem medicamentos
controlados, o acesso não é tão difícil. “Tomei Ritalina pela primeira
vez no primeiro ano, quem me deu foi um veterano. Mas a gente pega
receita em branco e carimbo com conhecidos”, diz Jorge*, 24, que cursa o
internato médico na Famerp. “Consegui Concerta com um amigo da
faculdade que tinha comprado de uma amiga que tem TDAH [transtorno de déficit de atenção com hiperatividade]. Usei durante cinco dias para estudar para uma prova”, conta Nara*, 20, do segundo ano da Anhembi Morumbi.
Em todos os relatos ouvidos pela Trip,
o caminho até o uso de psicoestimulantes legais é traçado pelo mesmo
motivo: a pressão e a carga de estudos. Muitos desses estudantes são
recém-chegados à vida adulta que entram na faculdade apegados ao nobre
desejo de salvar vidas, mas tudo o que encontram são aulas pesadas e a
necessidade de absorver um denso conteúdo em pouco tempo. “Esse cara vem
de um dia em que ele ficou na enfermaria de manhã, teve aula teórica à
tarde e na manhã seguinte terá prova. Além de não reprovar, precisa dar
conta da competitividade”, diz a professora de psicologia médica Tânia
de Oliveira Valente, da UniRio, que pesquisou a vida de estudantes de
medicina em 2013. “As escolas médicas brasileiras precisam pensar num
novo sistema de avaliação. Por que estudar um livro inteiro para uma
prova no dia seguinte se daqui a três meses ele não lembrará nada?
Muitas vezes, esse aluno tem três, quatro provas na mesma semana. Aí, só
com Ritalina.”
Saúde sem saúde
De acordo com um estudo publicado no American Journal of Preventine Medicine
em 2015, os agentes de saúde – incluindo os estudantes – estão entre os
três perfis de profissionais que mais se matam, atrás apenas de
policiais e agricultores. Em abril, alguns estudantes da USP quase
viraram estatística: num período de duas semanas, três alunos do quarto
ano tentaram suicídio na véspera de uma prova de clínica médica. Segundo
um residente do Hospital das Clínicas, àqueles casos já se somavam
outros quatro, só do mês anterior.
Maria*, 24, é amiga e está na mesma
turma de dois desses três alunos. Para ela, o incidente diz menos sobre
um problema pontual – nesse caso, a prova – e mais sobre problemas
anteriores, que aumentam com a evolução do curso. “As pessoas não se
cuidam, e aqui a gente não consegue lidar com frustrações. A
competitividade é muito grande”, diz Maria, que há 11 meses faz
tratamento com antidepressivo e psicoterapia para lidar com uma
depressão que começou em seu terceiro ano da faculdade. “Tem gente que
acha que tem que fazer as disciplinas, iniciação científica, dez ligas
acadêmicas [disciplinas extras com especialização em algum assunto] e ainda fazer intercâmbio, quando não é preciso fazer tudo isso.”
Para o psiquiatra Gustavo Alarcão,
do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, entender o uso
sistemático de estimulantes por alunos é uma discussão que deve
atravessar questões mais profundas. “As pessoas tendem a se medicar em
vez de pensar nas causas, mas esses remédios não curam nenhuma situação.
Se um aluno tem que tomar Ritalina porque não dá conta do ritmo de
trabalho, é importante questionar esse ritmo e se mobilizar”, afirma.
“Entram em jogo também questões internas: será que são pressões só da
faculdade? Será que ele também não se pressiona demais a ter determinado
desempenho?”
Professor do Departamento de Saúde,
Educação e Sociedade da Unifesp, o psicólogo Ricardo Padovani
encontrou, em um estudo de 2014, indicadores expressivos de estresse, burnout,
ansiedade e depressão entre universitários. “Ao entrar na universidade,
o estudante se vê numa situação de exigência bastante distinta da que
ele teve até então. É comum que isso gere uma série de desconfortos
emocionais”, diz. Nas mulheres, os danos tendem a ser ainda maiores.
“Analisando os seis anos da graduação, a gente percebe que, do segundo
em diante, as mulheres aumentam o consumo de tranquilizantes e
ansiolíticos, enquanto os homens deslocam essa angústia para outras
substâncias psicoativas. Homem não gosta de dizer que usa Rivotril”,
explica Tânia.
Embora estudantes de medicina
tenham mais acesso a remédios, o neuroaprimoramento está longe de ser
cultura apenas entre eles. “A área de saúde tem mais contato com essa
prática, mas não é só ali que ela existe”, diz a pesquisadora Raissa
Cândido, autora de um estudo sobre o uso de metilfenidato na UFMG. “A
gente descobriu que na universidade o uso é tão comum quanto em lugares
como Estados Unidos e Reino Unido, onde já é considerado um problema de
saúde pública.” Entre os entrevistados, 6% já haviam usado a substância
para estudar ou trabalhar – 41% deles, pelo menos uma vez no mês
anterior. Em 2011, uma pesquisa da faculdade de medicina da Universidade
Federal da Bahia (UFBA) revelou que 8,6% dos alunos faziam uso
frequente da Ritalina.
Hoje, sabe-se que o abuso de
metilfenidato pode aumentar riscos cardiovasculares e psiquiátricos. E o
risco de dependência é constante, segundo o psiquiatra Arthur Guerra,
supervisor do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do
Hospital das Clínicas. “A pessoa que não tem TDAH faz um estímulo no
sistema nervoso por uma razão que não existe, e o cérebro se acostuma
com aquilo. Cria uma dependência psicológica”, diz. “Sem o remédio, a
pessoa acha que vai perder o foco. Muitos universitários chegam ao
consultório com essa ideia.” Por outro lado, não é claro se essas drogas
funcionam quando o assunto é melhorar a performance do cérebro. “Não há
estudo clínico para entender como elas funcionam em pessoas saudáveis.
Por uma questão ética: a sociedade está preparada para aceitar o uso de
dispositivos para melhorar a capacidade de aprender?”, questiona Raissa.
Enquanto isso, estudantes, de medicina ou não, seguem fazendo esse
teste na vida real.
(fonte: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=483683)
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