sábado, 9 de setembro de 2017

A ética da corrupção


Por Jaime Pinsky, historiador e editor, doutor e livre docente da USP, professor titular da Unicamp.
Tempos atrás, quando um político notoriamente corrupto governava São Paulo, um conhecido, patriarca de poderosa família do interior reclamava de seu irmão que havia dirigido importante empresa púbica: “ele não foi correto; sim, conseguiu fazer dinheiro suficiente para nunca mais precisar trabalhar, mas se esqueceu da família”. Como se vê, até na corrupção há uma ética. E já tem gente reclamando que com a Lava Jato essa ética está sendo desrespeitada.
A corrupção no Brasil não tem funcionado por ondas: trata-se de um fluxo contínuo que remonta à Colônia. Não que sejamos todos corruptos, mas temos convivido pacificamente com ela. Temos um histórico de condescendência para com a corrupção.
A verdade é que, a despeito de todas as condenações, continuamos com a pequena corrupção, cotidiana e muito difundida. É, por exemplo, a da secretária da repartição pública que engorda seu salário digitando trabalhos “para fora”, utilizando máquina, papel e tempo que deveriam servir à instituição. Os chefes justificam esses pequenos desvios com a alegação de que os salários de algumas categorias são baixos. Assim, estabelece-se um pacto: o chefe não luta por melhores salários para seus funcionários, enquanto estes não devolvem à comunidade o salário recebido. O investimento é social, o beneficio, individual.
Há a média corrupção, também bastante frequente: é a do tipo que coloca frente a frente o comerciante sonegador e o fiscal, por exemplo. Ocorre também em muitas cidades em que o engenheiro de obras que assessora a prefeitura e libera as plantas de construção de casas tem, “por acaso”, uma pequena firma de projetos arquitetônicos, no nome da sua mulher. O corrupto médio tem sua ética: ele despreza o pequeno corrupto e inveja o grande corrupto.
Já este dificilmente trabalha sozinho. Tem equipes em que economistas e advogados são peças fundamentais. Infiltra-se em órgãos públicos e especializa-se em atividades que vão de fornecimento de merenda escolar e da retirada do lixo, à exploração de serviço de transporte coletivo. A ironia é que o grande corrupto se apresenta como um benfeitor, por empregar bastante gente, e servir a população. Para ele, fornecer merenda estragada para crianças ou colocar em circulação ônibus sem segurança é apenas parte de um negócio, não um ato sórdido. E ainda se sente à vontade para criticar mordomias no setor público...
Há, finalmente, o megacorrupto. Hábil, insinuante, extremamente articulado, o megacorrupto é um homem da sociedade. Sua especialidade é identificar desejos e manipular interesses, como um Dom Corleone moderno. Dotado de grande inteligência emocional é simpático, generoso com os amigos, implacável com os adversários. Poderoso, infiltra-se tanto no serviço público – legislativo, executivo e até judiciário – como na sociedade civil, onde influi nas organizações aparentemente alheias e até avessas ao seu poder. O megacorrupto chega a ter desprezo pelos corruptos menores, evitando contato físico com eles. Quando o contato se torna indispensável, recorre a interpostos preocupados em agradá-lo.
Cidadão do mundo o megacorrupto não suja as mãos com mercadorias concretas. Cínico ao extremo, fala do dinheiro acumulado como fruto de trabalho honesto: seus milhões guardados em paraísos fiscais não lhe parecem ter sido sonegados aos miseráveis deste país. Não, já que ele pode até dirigir ONGs beneficentes e é homem de bom gosto, roupas e mulheres discretas. É verdade que de um tempo para cá, com a rapidez com que fortunas foram construídas graças ao apoio de benesses governamentais, passamos a ter um novo tipo, o megacorrupto brega, mas a análise deste fica para outro artigo.
Há, é claro, enormes diferenças de grau entre todos esses corruptos. O policial pobre, muitas vezes ele mesmo favelado, nunca sairá de sua condição social e às vezes morre “no cumprimento do dever”, enquanto o coronel marajá ganha regiamente, sem correr risco algum. O pequeno comerciante, assoberbado por impostos e por uma legislação complexa e mutante, enxerga no fiscal corrupto um sócio minoritário e pagá-lo significa apenas viabilizar seu negócio.
Na verdade, toda ou quase todo corrupto tem uma justificativa, e é isso que lhe dá legitimidade social. Não ser envolvido por esses pretextos é fundamental para o país dar o passo em direção da superação, ou da atenuação desse problema endêmico.

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