Por Jaime Pinsky, historiador e editor, doutor e livre docente da USP, professor titular da Unicamp.
Tempos
atrás, quando um político notoriamente corrupto governava São Paulo, um
conhecido, patriarca de poderosa família do interior reclamava de seu
irmão que havia dirigido importante empresa púbica: “ele não foi
correto; sim, conseguiu fazer dinheiro suficiente para nunca mais
precisar trabalhar, mas se esqueceu da família”. Como se vê, até na
corrupção há uma ética. E já tem gente reclamando que com a Lava Jato
essa ética está sendo desrespeitada.
A
corrupção no Brasil não tem funcionado por ondas: trata-se de um fluxo
contínuo que remonta à Colônia. Não que sejamos todos corruptos, mas
temos convivido pacificamente com ela. Temos um histórico de
condescendência para com a corrupção.
A
verdade é que, a despeito de todas as condenações, continuamos com a
pequena corrupção, cotidiana e muito difundida. É, por exemplo, a da
secretária da repartição pública que engorda seu salário digitando
trabalhos “para fora”, utilizando máquina, papel e tempo que deveriam
servir à instituição. Os chefes justificam esses pequenos desvios com a
alegação de que os salários de algumas categorias são baixos. Assim,
estabelece-se um pacto: o chefe não luta por melhores salários para seus
funcionários, enquanto estes não devolvem à comunidade o salário
recebido. O investimento é social, o beneficio, individual.
Há
a média corrupção, também bastante frequente: é a do tipo que coloca
frente a frente o comerciante sonegador e o fiscal, por exemplo. Ocorre
também em muitas cidades em que o engenheiro de obras que assessora a
prefeitura e libera as plantas de construção de casas tem, “por acaso”,
uma pequena firma de projetos arquitetônicos, no nome da sua mulher. O
corrupto médio tem sua ética: ele despreza o pequeno corrupto e inveja o
grande corrupto.
Já
este dificilmente trabalha sozinho. Tem equipes em que economistas e
advogados são peças fundamentais. Infiltra-se em órgãos públicos e
especializa-se em atividades que vão de fornecimento de merenda escolar e
da retirada do lixo, à exploração de serviço de transporte coletivo. A
ironia é que o grande corrupto se apresenta como um benfeitor, por
empregar bastante gente, e servir a população. Para ele, fornecer
merenda estragada para crianças ou colocar em circulação ônibus sem
segurança é apenas parte de um negócio, não um ato sórdido. E ainda se
sente à vontade para criticar mordomias no setor público...
Há,
finalmente, o megacorrupto. Hábil, insinuante, extremamente articulado,
o megacorrupto é um homem da sociedade. Sua especialidade é identificar
desejos e manipular interesses, como um Dom Corleone moderno. Dotado de
grande inteligência emocional é simpático, generoso com os amigos,
implacável com os adversários. Poderoso, infiltra-se tanto no serviço
público – legislativo, executivo e até judiciário – como na sociedade
civil, onde influi nas organizações aparentemente alheias e até avessas
ao seu poder. O megacorrupto chega a ter desprezo pelos corruptos
menores, evitando contato físico com eles. Quando o contato se torna
indispensável, recorre a interpostos preocupados em agradá-lo.
Cidadão
do mundo o megacorrupto não suja as mãos com mercadorias concretas.
Cínico ao extremo, fala do dinheiro acumulado como fruto de trabalho
honesto: seus milhões guardados em paraísos fiscais não lhe parecem ter
sido sonegados aos miseráveis deste país. Não, já que ele pode até
dirigir ONGs beneficentes e é homem de bom gosto, roupas e mulheres
discretas. É verdade que de um tempo para cá, com a rapidez com que
fortunas foram construídas graças ao apoio de benesses governamentais,
passamos a ter um novo tipo, o megacorrupto brega, mas a análise deste
fica para outro artigo.
Há,
é claro, enormes diferenças de grau entre todos esses corruptos. O
policial pobre, muitas vezes ele mesmo favelado, nunca sairá de sua
condição social e às vezes morre “no cumprimento do dever”, enquanto o
coronel marajá ganha regiamente, sem correr risco algum. O pequeno
comerciante, assoberbado por impostos e por uma legislação complexa e
mutante, enxerga no fiscal corrupto um sócio minoritário e pagá-lo
significa apenas viabilizar seu negócio.
Na
verdade, toda ou quase todo corrupto tem uma justificativa, e é isso
que lhe dá legitimidade social. Não ser envolvido por esses pretextos é
fundamental para o país dar o passo em direção da superação, ou da
atenuação desse problema endêmico.
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