Texto escrito por José de Souza Castro:
O Mercado, informa Samuel Pinheiro Guimarães, é integrado por cerca
de 200 mil pessoas que declaram à Receita Federal rendimentos mensais
superiores a 80 salários mínimos (cerca de R$ 80 mil). Seu número é
inferior a 0,2% da população adulta brasileira. E menos de 1% dos
declarantes do Imposto de Renda.
Pois bem, é para essa população reduzida que se orienta toda a
política econômica do governo Temer. Visando a satisfazê-la e seguindo à
risca as políticas do Consenso de Washington formuladas, em 1989, por
economistas do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e
do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, satisfazendo também os
integrantes do Mercado mundial. Tudo boa gente.
É um assunto árido que o embaixador Pinheiro Guimarães, no entanto, trata de forma bem clara e didática num artigo publicado na última quinta-feira.
Vou resumi-lo. Para quem não sabe, o autor foi secretário-geral do
Itamaraty e Ministro de Assuntos Estratégicos no Governo Lula.
O programa do Mercado é o programa econômico do ministro Henrique
Meirelles, que foi presidente do BankBoston entre 1996 e 1999 e do
FleetBoston Financial, nos Estados Unidos. Que presidiu o Banco Central
do Brasil, de 2003 a 2010. E, entre 2012 e 2016, o Conselho de
Administração da holding J&F, de Joesley Batista, aquele que até
junho deste ano era um dos milionários amigos de Temer.
Esse programa, diz Pinheiro Guimarães, é “desejado com ardor (e
promovido com recursos) pelos banqueiros, rentistas, grandes empresários
comerciais e industriais, grandes proprietários rurais, donos de
grandes órgãos de comunicação, gestores de grandes fortunas, executivos
de grandes empresas e seus representantes no Congresso”.
Tudo gente boa.
O problema é que o Programa de Reformas de Meirelles – na verdade,
contrarreformas – promove um retrocesso econômico e social ao período
anterior a 1930. Anterior a Keynes. Um programa que deveria ser
rejeitado, não fosse a ignorância, pela esmagadora maioria do povo.
Enquanto o povo não se informar e reagir, esse programa será imposto de
forma implacável ao Brasil.
Não se pode afirmar que o Consenso de Washington seja ruim para todos
os países. Estados Unidos, por exemplo, se beneficiaram. Mas, diz
Pinheiro Guimarães, aqueles países que se desenvolveram e cresceram
rapidamente depois de 1989 “foram os que não seguiram estas políticas do
Consenso (sempre advogadas pelos Estados Unidos, organismos econômicos e
países desenvolvidos) com especial destaque para a China, e em parte
pela Índia”.
O Consenso de Washington tem 10 princípios. O primeiro é a disciplina
fiscal, que significa o esforço de promover um rigoroso equilíbrio
entre receitas e despesas públicas. Para isso, “elimina a possibilidade
de endividamento do Estado para realizar políticas anticíclicas, para
enfrentar o desemprego e o subemprego, e realizar os investimentos
estruturantes e indispensáveis ao desenvolvimento sustentado de um
país”, esclarece Pinheiro Guimarães. Daí a Emenda Constitucional 95,
“que congela as despesas ‘primárias’ por 20 anos, sem tocar nas despesas
do Estado com a dívida pública, que chegam a quase 50% do total do
orçamento e dos gastos públicos, sem permitir o aumento de receitas,
rejeitando o combate à sonegação de impostos e à evasão de divisas, e,
implicitamente, negando a possibilidade de aumento de impostos e de
reforma tributária”.
O segundo princípio do Consenso – a redução dos gastos públicos –
significa diminuir as despesas primárias com as atividades do Estado. O
autor prevê algumas consequências:
1. Redução do Bolsa Família, que atende hoje a 25% da população, o que redundará em aumento da pobreza absoluta;
2. Redução do atendimento às crianças na primeira infância;
3. Redução do SUS e agravamento da situação da saúde da massa de
cidadãos pobres, sem capacidade de pagar por remédios e assistência
médica;
4. Redução dos investimentos em educação e sua privatização o que excluirá os pobres do acesso à educação;
5. Redução dos investimentos em defesa, necessários a uma política de
dissuasão, imprescindível a um país com as dimensões geográficas,
populacionais e econômicas do Brasil.
6. Redução dos investimentos em ciência e tecnologia.
O terceiro princípio, a reforma tributária, não significa tornar o
sistema tributário menos regressivo, isto é, menos incidente sobre os
mais pobres, mas sim reduzir impostos sobre o capital e as contribuições
previdenciárias das empresas para, com o aumento da perspectiva de
lucro das empresas, atingir o objetivo de estimular os investimentos
privados.
“A pouca disposição de Henrique Meirelles de rever as desonerações
fiscais e de cobrar a dívida pública da União, que supera o montante de
três trilhões de reais, e as dívidas das empresas privadas para com a
Previdência, que chegam a mais de 400 bilhões de reais; os programas de
refinanciamento de dívidas (REFIS) que são, em realidade, programas de
perdão de dívidas; a tolerância com as decisões do Conselho
Administrativo da Receita Federal (CARF) em favor das grandes empresas e
contra o Estado; a tolerância com a evasão de divisas para o exterior,
revelam, em seu conjunto, a natureza da reforma tributária que Meirelles
está, na prática, realizando em benefício do capital e contra o
trabalho”, critica Pinheiro Guimarães.
O quarto princípio – a prática de juros de mercado – significa que o
Estado “não deve executar políticas de juros subsidiados para estimular e
fortalecer as empresas de capital nacional em sua competição, interna e
internacional, com as megaempresas multinacionais que, além dos
recursos de suas tesourarias, tem fácil acesso a financiamento de bancos
públicos de seus Estados e de megabancos privados multinacionais”.
Meirelles está conseguindo, no Congresso Nacional, substituir a taxa
de juros cobrada pelo BNDES nos empréstimos às empresas, seguindo o
quarto princípio do Consenso de Washington. É um dos instrumentos da
política de privatização dos bancos públicos brasileiros, diz Pinheiro
Guimarães. No caso do BNDES, “visa também beneficiar as empresas
estrangeiras que atuam no Brasil e forçar as empresas brasileiras a se
financiarem junto a bancos privados que praticam taxas de juros (a
empresas) que superam 30% ao ano, taxas que tornam inviável qualquer
investimento produtivo”.
O quinto princípio é a adoção, pelos países em desenvolvimento, de
uma política de câmbio de mercado. Isto é, que o Estado “não interfira
de nenhuma forma no mercado cambial e que não controle de nenhuma forma
os fluxos de ingresso e de saída de capitais da economia e, portanto,
permita a intensa especulação que existe no mercado mundial de divisas”.
Para piorar, aqui se realiza uma política de câmbio valorizado, “isto
é, o real tem um valor em relação ao dólar muito superior ao que seria
conveniente para promover o desenvolvimento industrial e os
investimentos privados necessários, política que dificulta as
exportações brasileiras, inunda o mercado doméstico com importações de
produtos industriais baratos (provenientes em especial da China, mas não
somente da China), estimula as despesas com turismo etc. e
desnacionaliza a indústria brasileira que, cada vez mais enfraquecida, é
gradualmente vendida a preços ‘muito bons’, segundo os especialistas em
vender o Brasil”.
O sexto princípio é a abertura comercial, que consagra a divisão
internacional do trabalho entre países primários e países industriais.
“É o objetivo de Henrique Meirelles na medida em que este pratica uma
política de plena liberdade de ingresso no Brasil de produtos
industriais estrangeiros, mesmo quando há situações de dumping”, afirma o
autor. E prossegue:
“As consequências desta política de abertura se pode verificar pelos
déficits na balança comercial de produtos industriais com os países
altamente industrializados e com a China; por não haver regulamentação
da exportação de produtos agrícolas, altamente favorecida pela política
de crédito do Governo (o que beneficia os países que importam produtos
primários brasileiros); pela decisão de extinguir o acesso a crédito
favorecido às empresas instaladas no Brasil que era concedido pelo
BNDES; pela eliminação da política de conteúdo nacional; pela fraca
defesa das políticas brasileiras denunciadas na Organização Mundial do
Comércio (OMC) pelos países exportadores industriais que procuram
impedir a emergência de competidores enquanto, no Brasil, se repete sem
cessar o mantra da competitividade e da produtividade, na realidade,
argumentos para promover a redução de salários e de benefícios aos
trabalhadores.”
Para dificultar a reversão dessa política de recolonização do país,
Henrique Meirelles vai promover a adesão do Brasil à Organização de
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países mais
desenvolvidos do mundo, “para articular posições comuns em negociações e
em organismos internacionais, sem ouvir a sociedade ou o Congresso
Nacional, aferrolhando (lock in) toda sua política ultra neoliberal e
tornando sua eventual revisão, ainda que venha a se verificar
indispensável pelas necessidades de desenvolvimento de um país com as
características do Brasil, mais difícil, pois sua revisão contrariaria
“compromissos Internacionais”’.
O sétimo princípio – a eliminação das restrições ao investimento
direto estrangeiro – vem sendo posto em prática pela privatização e
desnacionalização das empresas estatais (“sem qualquer precaução de
natureza estratégica, como ocorre em países desenvolvidos em relação a
setores como eletricidade, portos e meios de comunicação”), pela
abertura da exploração das reservas do pré-sal às megaempresas
petrolíferas estrangeiras, pela política de fragmentação e venda a
multinacionais petroleiras de empresas do complexo da Petrobrás e pelo
fim da política de conteúdo nacional.
“Outras políticas do Governo de favorecimento ao capital estrangeiro
são a abertura de setores de serviços como a saúde e educação; a venda
de terras a estrangeiros; a desregulamentação ambiental e a abertura de
reservas florestais à exploração econômica, em especial à mineração”,
lembra Pinheiro Guimarães.
O oitavo princípio é a privatização das empresas estatais. “Agora foi
anunciada a privatização de 57 empresas, entre elas a Eletrobrás, a
Casa da Moeda e grandes aeroportos, e prossegue, de forma discreta, o
programa de desinvestimento da Petrobras, executado por Pedro Parente,
que transformará a Petrobras, uma grande empresa de petróleo integrada e
altamente competitiva no cenário internacional, em uma pequena empresa
exportadora de petróleo, em especial para os Estados Unidos.”
O nono é a política de desregulamentação, “que significa, no mínimo, o
afrouxamento da legislação econômica e trabalhista”. Tem mais: “Na área
ambiental, a flexibilização se faz pela transferência da União para os
Estados da competência para a determinação de reservas ambientais; pela
redução das exigências dos relatórios de impacto ambiental; pela
flexibilização no uso de agrotóxicos. Todo o programa de privatização (e
desnacionalização) de empresas estatais corresponde também a uma ampla
desregulamentação da atividade econômica em benefício das empresas
privadas, mas não dos trabalhadores. O enfraquecimento da regulamentação
econômica se agravará com a redução das atividades de fiscalização do
Estado que decorrerá da atrofia dos organismos de fiscalização devido a
cortes de recursos e de pessoal”.
Finalmente, a décima recomendação do Consenso de Washington diz
respeito a proteção da propriedade intelectual através de uma legislação
mais favorável aos detentores de patentes e marcas “que são, em geral,
megaempresas multinacionais”.
Mais previsões do autor:
A concentração de renda e de riqueza tenderá a se aprofundar
continuamente, assim como as demais disparidades internas e
vulnerabilidades externas. A violência urbana e rural tenderá a se
agravar de forma significativa.
E os detentores de grandes fortunas tenderão a se tornar
absenteístas, isto é, passarão a residir no exterior como já ocorre em
relação a muitas de suas famílias e herdeiros.
Esses aí conseguem fugir do Mercado que estão criando e contribuindo
para transformar a maioria dos brasileiros numa massa “de desempregados,
subempregados e miseráveis”.
(fonte: https://kikacastro.com.br/2017/09/04/henriquemeirelles/#more-14383)
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