Em Paris, por economia; em Berlim, após luta social e plebiscito.
Centenas de municípios europeus, norte-americanos e africanos estão reestatizando o abastecimento — ao contrário do que quer Temer aqui
Por Heloisa Villela, no Viomundo
A DMAE (empresa de água e esgoto de Porto Alegre) é mais uma
companhia da lista de serviços públicos brasileiros que pode parar na
mão da iniciativa privada. A empresa é bem gerida, tem um desempenho
exemplar e está prontinha para dar lucro a algum empresário. “É uma das
melhores empresas de água e saneamento do mundo”, diz o canadense David
McDonald, fundador da organização Projeto de Serviços Municipais,
uma rede de pesquisa que reúne acadêmicos de diversos países para
analisar o desempenho das empresas públicas nos setores de eletricidade,
saúde, água e saneamento básico — e estudar as consequências das
privatizações nesses setores, especialmente na África, na Ásia e na
América Latina.
No Brasil, discursos vindos de fora muitas vezes são adotados como
símbolo da “modernidade”. Por exemplo, o de que a administração privada
de serviços públicos é mais “eficiente”. Cabe perguntar: para quem? O
lobby dos privatistas é intenso e está por trás, por exemplo, da
privatização da Cedae no Rio de Janeiro. Mas David, estudioso do
assunto, repete o que já disse ao Viomundo a professora Mildred
Warner, da Universidade de Cornell: “Passados 30 anos das experiências
com privatização, não existe prova alguma de que seja melhor”.
Ele abre uma exceção: a iniciativa privada consegue melhores resultados quando substitui um serviço público péssimo.
Na Europa, observa a reversão das privatizações. Paris é apenas um
dos vários municípios franceses que tomaram de volta o serviço de
distribuição de água na última década. “A cidade economizou,
imediatamente, 35 milhões de euros por ano”, diz David. Ele não se
preocupa apenas com o aspecto financeiro, mas também com questões
sociais e ambientais. Quando o serviço é público, fica bem mais fácil
garantir que ele chegue às crianças e aos mais pobres, por exemplo. O
cuidado com o meio ambiente, em geral, é maior porque as empresas
privadas tentam economizar de toda maneira e nessa sede de “otimizar”
resultados, já provocaram desastres ecológicos que as prefeituras,
depois, têm de enfrentar.
David compara Paris com Berlim. O prefeito parisiense tomou a
iniciativa de estatizar o serviço para economizar e a população nem
notou que a distribuição de água havia mudado de mãos. O preço da água
para os moradores de Paris foi reduzido e a cidade ainda usou parte do
dinheiro economizado para subsidiar a água para regiões mais carentes e
financiar projetos de solidariedade no Marrocos e na Palestina.
Já em Berlim, foi uma briga. Os moradores organizaram-se para forçar a
prefeitura a municipalizar o serviço. Um referendo com grande
participação popular devolveu o controle da água à cidade e encerrou as
discussões. Desde então, vários municípios da França, da Alemanha e de
outros paises europeus seguiram pelo mesmo caminho. Mas, segundo David, o
país que lidera o processo de estatização desses serviços são os
Estados Unidos e em geral a iniciativa é de políticos conservadores —
quando se dão conta de que vão gastar menos.
Na África, o esforço do Banco Mundial em promover a privatização não
deu muito certo. Muitas empresas desistiram de projetos porque a
população não tem renda suficiente para gerar lucros. David cita
Kampala, em Uganda, como exemplo. Como a privatização da água não deu
certo, o Banco Mundial mudou de estratégia: forçou o governo a adotar
uma administração mais empresarial do serviço. “Essa é uma nova
tendência: a corporatização, para forçar essas empresas públicas a
operarem de forma bastante comercial”, diz ele.
Na África do Sul, por exemplo, a Rand Water é uma empresa pública que
atua como corporação. “Quando o apartheid terminou, havia muita pressão
para privatizar a água e a eletricidade no país. O governo resistiu,
mas adotou o modelo do Banco Mundial de dar cunho corporativo ao
serviço. Por isso eles atuam em outros países do continente. Foi o que
aconteceu em Acra, Gana. A Rand tentou administrar o serviço de água mas
a população resistiu porque viu o processo como uma privatização,
apesar da Rand ser uma empresa pública na África do Sul. Ela teve que
deixar Gana por causa da pressão política. Os dirigentes da empresa
também acharam que era difícil ganhar dinheiro em um país com tanta
pobreza”.
Na África do Sul, a discussão continua. Com o modelo comercial de
gerenciamento, não existe subsídio para as regiões mais carentes e
muitas pessoas sofrem cortes de água e luz porque não conseguem pagar as
contas. Por isso, David diz que hoje em dia não se trata de defender a
empresa pública contra a privatização e sim discutir o modelo de
gerenciamento: objetivos da operação e enfrentamento de problemas
sociais e ecológicos, por exemplo.
Ele volta a Porto Alegre: “O que a concessionária fez foi incluir as
pessoas na tomada de decisões, levaram muito a sério a necessidade de
assegurar que mulheres e crianças tenham acesso ao saneamento. É difícil
colocar um preço nisso.” Então, fica a pergunta: se as pesquisas
mostram que não existe vantagem na privatização e que administrar as
empresas públicas como se fossem privadas não funciona, por que a
insistência dos economistas do Banco Mundial com o modelo? Eles não leem
as pesquisas, não se convencem com os próprios dados que coletam?
“Minha sensação é de que as pessoas do Banco Mundial estão
comprometidas com uma visão ideológica segundo a qual o ser humano só
pensa em si próprio e só se sente estimulado a fazer qualquer coisa se
for ganhar dinheiro e que apenas a disciplina do mercado os obriga a ser
eficientes. As pesquisas contrariam a tese. Nos Estados Unidos, até
políticos conservadores, de direita, descartam as diretrizes que o Banco
Mundial impõe a meio mundo e estatizam os serviços de água, luz, esgoto
e coleta de lixo quando se dão conta de que podem economizar dinheiro e
melhorar a qualidade do serviço.
(fonte: http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=503677)
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