Por Jaime Pinsky, historiador e editor, doutor e livre docente da USP, professor titular da Unicamp.
Qual
a função da Justiça em uma sociedade? Deve normatizar a relação entre
os cidadãos, fazer cumprir as leis determinadas pelos legisladores, e
interpretá-las de modo impessoal. Em uma sociedade democrática não deve
privilegiar amigos, parentes ou pessoas pelas quais sinta afinidade. É
uma tarefa difícil. Para realiza-la é necessário que os juízes não
apenas conheçam as leis (muito complexas, em um país em que a própria
constituição é um calhamaço), mas serenidade, equilíbrio, para não falar
de honestidade e até desapego aos bens materiais, já que não faltam em
nosso país aqueles que são conhecidos agora como corruptores ativos.
Aplicar
penas é a arte de enquadrar aquele que transgrediu as leis em algum
item específico do código existente. O juiz não pode criar uma lei para
punir alguém, é claro, mas cabe a ele determinar qual item dela o
camarada transgrediu. E isso pode fazer uma enorme diferença na pena a
ser cumprida. Vejam um caso recente:
Um
homem jovem atravessa a rua na faixa de pedestres na Vila Madalena. Ele
é colhido por um automóvel, em alta velocidade, conduzido por uma
motorista embriagada. O impacto foi tão forte que, após ferir de morte o
rapaz, o carro capotou. O episódio aconteceu em 2011. Após cuidadosa
deliberação (durou espantosos 6 anos) o Tribunal de Justiça de São Paulo
chegou à conclusão que não se tratou de homicídio doloso, mas sim
culposo. Em outras palavras, a Justiça entendeu que dirigir bêbada, em
velocidade muito acima da permitida no local (o carro estava entre 60 e
90 km/hora em local onde eram permitidos apenas 30 km/hora), invadir a
faixa de pedestre e matar um jovem de 24 anos de idade é algo feito sem
intenção de matar. Ou seja, para os homens que interpretaram a lei, a
motorista nem imaginou que conduzir uma máquina em alta velocidade, com a
cara cheia, poderia ser uma ameaça mortal para seres humanos sem
blindagem...
Não
é necessário ser doutor em leis para saber que a motorista, ao se
alcoolizar e sair dirigindo um veículo sabia dos riscos que corria e
resolveu corre-los. Tinha conhecimento de que matar gente no trânsito,
em nosso país, raramente é considerado crime. E porque isso acontece?
Porque os juízes se recusam a dar um passo adiante para romper essa
justiça de classe que “entende” mais facilmente a falha do homem ao
volante do que do pedestre. Que, de resto, já está morto...
Juízes
frequentemente declaram que não podem julgar a partir do clamor
popular. Podemos até concordar com a ideia, mas a imagem que se quer
vender é a de massas semelhantes às manadas, agindo de forma irracional,
turbas dispostas a linchar sem dar ao acusado o direito à defesa. Do
outro lado estariam essas figuras togadas impolutas, gentes plácidas,
equilibradas e sapientes praticando a verdadeira justiça, permitindo o
contraditório, sem afoiteza, garantindo o estado de direito,
impermeáveis a influencias espúrias e a clamores populares.
Infelizmente, não é assim que a coisa tem funcionado. Temos frequentes
notícias de juízes frequentando espaços e personagens de outros poderes:
são churrascos, festas de casamento, casas de veraneio, jatos
executivos... Se o clamor popular pode contaminar sentenças, conversas
discretas em ambientes elegantes não contaminam? E aqui chegamos à
questão central, a relação entre Justiça e a Sociedade.
Quem
vem antes, a lei ou a prática social? Em outras palavras, cabe à lei
fazer cumprir os costumes de uma sociedade, ou cabe a ela determinar
qual deveria ser o comportamento da sociedade diante de diferentes
desafios? A História nos ajuda a entender essa diferença. O código de
Hamurabi, era uma codificação das leis já existentes na Mesopotâmia e
estas, por seu turno, retratavam as práticas da sociedade mesopotâmica.
Já na Torá, o Pentateuco, que antes de se tornar livro sagrado para
judeus e cristãos era um código de leis e práticas sociais, vemos algo
distinto: o legislador tem a intenção de orientar o comportamento da
sociedade daquela época, de estabelecer novas normas, de apresentar leis
que representam um avanço nas práticas e comportamentos de então.
Enquanto o Código de Hamurabi é um retrato, a Torá tem um compromisso
com a ética, quer uma sociedade mais justa, pessoas mais honestas, um
mundo melhor.
Esse
é o dilema dos legisladores e dos aplicadores da lei. Se apenas
trabalharem considerando nossas práticas sociais atuais corremos o risco
de continuar achando “normal” que assassinos motorizados e alcoolizados
continuem a matar. E, por que não, que ladrões instalados no poder,
continuem a se apropriar de bens públicos.
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