O ator Kevin Spacey foi denunciado por assédio sexual, de um fato que teria ocorrido há mais de 30 anos, e depois surgiram outros, até os dias de hoje, mostrando um comportamento desviante e recorrente. Foi afastado de elencos de filmes que seriam produzidos. Perdeu lugar em entidades a que pertencia, teve premiações canceladas. E agora foi apagado de um filme que estrearia no próximo mês de dezembro.
O diretor Ridley Scott (do primeiro Blade Runner) simplesmente decidiu apagar todas as cenas em que Spacey atuava e convocou às pressas outro ator para refazê-las a tempo de o filme estrear em dezembro sem Spacey.
Mas isso ainda parece ser pouco para o apetite de ódio das redes sociais. Apenas apagar o ator nos filmes parece pouco para gente que quer mais.
Por isso vou publicar aqui boa parte de um texto que achei muito bom, do escritor e ativista Anderson França, que li no Facebook. Você pode conferir o texto na íntegra aqui.
(...) ...o que me chama a atenção no caso do Waack não é ele, e sim a expressão que ele usa.(fonte: http://blogdomello.blogspot.com.br/2017/11/morra-william-waack-morra-kevin-spacey.html)
"Coisa de preto."
Em resumo, deixa eu resumir mesmo o texto pra você que tá no trem e quer pensar: Onde mora o Waack dentro de você?
Porque essa expressão não foi criada por ele.
Ele ouviu de alguém. Eu diria que ele cresceu ouvindo isso. Logo, sua fala denuncia seus pais. Que provavelmente ensinaram isso a ele. E provavelmente aprenderam dos seus pais também.
E dos outros adultos. E dos outros pais. Amigos, colegas. Ele fez jornalismo na USP. Ele fez Ciências Políticas na Universidade de Mainz, na Alemanha. Ele trabalha na Globo. Ele mora num bairro nobre. Ele come num restaurante fino. Ele tem amigos importantes. Ele bebe vinho caro.
Quando chega o primeiro navio com pretos prisioneiros, chega também a primeira afirmação sobre eles, que eram animais, sem alma, intelecto, valores, princípios, modos, capacidade de relacionamento.
Quando o primeiro navio negreiro chega, quem anuncia sua chegada é um antepassado do William Waack.
Com o navio ancorado aqui na frente, no Cais do Valongo, o William Waack do século 16 está em frente a uma câmera, pronto para o link pra Portugal.
E os negros que saem do navio, debaixo de surra, gritam de dor.
Ali ele disse, pela primeira vez: "Sujeito de merda. Sabe o que é isso? Coisa de preto."
A falta de uma mão no meio da cara, naquele momento, permitiu que essa expressão se perpetuasse.
Nunca discutimos o quanto essa expressão está nas nossas vidas. Pare e pense sozinho, se possível, com o computador fechado, para evitar que, sei lá, por telepatia seus pensamentos se tornem públicos.
Quantas vezes, nós já ouvimos e falamos isso?
Vou me colocar nesse lugar com você. Porque é isso: é ilusão pensar que só o Waack diz isso.
Eu digo, você diz, sua mãe, o pastor, aquela vó fofinha fazendo tai-chi-chuan, aquela feminista famosa, aquele socialista povão, aquele artista daora, aquele jogador que veio da favela, o taxista, o uberista e o motorista de ônibus, o carteiro, o médico cardiologista, o psicólogo, o baterista daquela banda, sua esposa, sua prima, seu marido, seu filho,
e o jornalista.
Todos nós hoje precisamos descobrir onde está o William Waack dentro de nós. E não tem desculpas. Tem que estudar. Tem que fazer terapia. Tem que priorizar isso.
Porque você sabe, e eu sei, os efeitos esmagadores do racismo na sociedade brasileira. A escravidão oprimiu pessoas que hoje vivem em desigualdade. Durante 400 anos foi isso, e os outros 117 não deram conta da desordem provocada pelo
branco.
Se "coisa de preto" é tocar buzina, promover desordem, ser inconveniente, o que é a coisa de branco?
O matador da igreja? Coisa de branco. O Estado brasileiro falido? Coisa de branco. A vida de luxo que a filha do Eduardo Cunha tem? Coisa de branco. Luciano Huck, que apoiou todos os criminosos do Rio? Coisa de branco. Mallu Magalhães? Coisa de branco. Histeria na porta do Sesc Pompéia? Coisa de branco. Ir pro samba e sair de lá dizendo que somos todos humanos porque tem até amigos pretos? Coisa de branco. Esconder a bolsa no elevador? Coisa de branco. Se alguma feminista te oferece trabalho por moradia? Coisa de branco. Se você tá sendo demitido pra ser contratado nas novas leis que fuderam a CLT? Coisa de branco. Tá fechando a empresa porque a economia não te absorve? Coisa de branco. Tá sem merenda na escola? Coisa de branco. Não tem esparadrapo na UPA? Coisa de branco.
Fazer um barco, e sair pelos continentes estuprando, roubando, pilhando, destruindo e escravizando povos que criaram as grandes ciências da humanidade, para no futuro estabelecer uma sociedade baseada no capital onde apenas 8 pessoas se deram bem na vida?
Coisa de branco.
Mas a reflexão de hoje é: Onde está o William Waack dentro de nós. Esse dissimulado. Esse educado, de boas maneiras, que espuma pelo canto da boca, ele diz que não vai falar, mas ele não se controla, ele tá rindo sozinho, ele PRECISA falar, ele tá de piru duro e cu piscando. Ele precisa pingar ódio contra o preto.
Antes de atirar pedra no cara, dá uma passada no espelho do banheiro da firma. Porque o episódio do Waack não é um sinal verde pra você linchar ele, mas pra você descobrir o quanto você tem de semelhança, e meter o loko pra mudar sua cabeça.
Eu vou trabalhar. Trabalho é coisa de preto, mala de dinheiro é coisa de branco vagabundo. Eu vou por um Jazz nos fones. Jazz, essa invenção disruptiva com instrumentos europeus, que deu outro significado a música, coisa de preto. Vou aproveitar pra ler um livro sobre alternativas de país, um livro de Abdias. Coisa de preto. Vou assistir Toddy Ivon falando sobre bitcoin, economia do futuro, ou Adriana Barbosa organizando mais uma Feira Preta, ou Lázaro encenando mais uma peça, ou Obama dando mais uma palestra lotada, ou Pablinho Fantástico fazendo o riscado no passinho, ou Marcio Black peitando o sistema político, ou Ian Black sendo o único homem preto dono de uma grande agência em São Paulo, ou Beyoncé, amor, Beyoncé sendo a artista e investidora negra mais desejada pelo mercado americano, vou sonhar em ter a eloquência de Marcus Garvey, o intelecto de Dr. King, a escrita de Ta-Nehisi, a virtuose de Robert Glasper,
coisa de preto.
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