domingo, 6 de maio de 2018

A Europa pobre está de volta — inclusive nos filmes

“Ciganos de Ciambra”, de Jonas Carpignano, denuncia miséria da vida infantil na Calábria, onde as migalhas da riqueza capitalista são disputadas por italianos, ciganos e imigrantes ilegais africanos
Por José Geraldo Couto
Crianças e adolescentes indomáveis, crescendo num ambiente hostil, são um tema recorrente nos dramas sociais, e diante de Ciganos da Ciambra muita gente inevitavelmente se lembrou de clássicos como Os esquecidos, de Buñuel, Os incompreendidos, de Truffaut, e Pixote, de Babenco.
Mas o filme de Jonas Carpignano se passa na Itália, berço do neorrealismo, que fecundou praticamente todas as cinematografias do mundo, e talvez fosse mais pertinente lembrar que a infância desamparada e rebelde esteve no centro de grandes marcos neorrealistas, de Vítimas da Tormenta (Vittorio De Sica, 1946) a Alemanha ano zero (Roberto Rossellini, 1948), passando pelo episódio napolitano de Paisà (Rossellini, 1946).
De certo modo trata-se, portanto, de uma volta às origens, a mostrar que o cinema italiano não se diluiu no sentimentalismo de um Tornatore nem na afetação de um Sorrentino.
Escombros de ontem e de hoje
Se os meninos de Rossellini e De Sica se moviam entre os escombros de uma Europa devastada pela guerra, o pequeno cigano Pio (Pio Amato), de catorze anos, é obrigado a se virar num ambiente marcado por outro tipo de conflagração, a criminalidade de um lugarejo da Calábria em que as migalhas da riqueza capitalista são disputadas por italianos, ciganos e imigrantes ilegais africanos.
A numerosa família de Pio (avô, pai, mãe, tios e uma infinidade de irmãos e sobrinhos) sobrevive de pequenos delitos, como o roubo de carros e acessórios. E aqui entra outro procedimento herdado do neorrealismo, a utilização de não-atores: os parentes do protagonista são todos membros da verdadeira família Amato.
O que primeiro chama a atenção, logo no início, é a condição desregrada das crianças, que fumam, bebem, dirigem carros e motos. Um menino de não mais de cinco anos fuma com a maior desenvoltura entre irmãos e primos, na frente da sua casa. Quando sua jovem mãe ou tia esboça intervir, ele diz: “Vou mijar na sua boca”. Ela ri. É desse tipo de violência que trata o filme, mais do que de tiros ou pancadas.
O que impede Ciganos da Ciambra de ser apenas um vívido registro naturalista de uma comunidade pobre, à maneira do romance O cortiço, de Aluísio Azevedo, ou do filme Feios, sujos e malvados, de Ettore Scola, é a dimensão moral, trágica, que adquire a trajetória de Pio. É, em essência, um romance de formação, ou antes de deformação.
Aprendizado tenso
Quando o pai e o irmão de Pio são presos por roubo, o garoto se sente chamado a ocupar o lugar deles no sustento da família, e passa a praticar delitos cada vez maiores. Até sua amizade aparentemente desinteressada com um imigrante de Burkina Fasso (Koudous Seihon) é contaminada no processo.
O aprendizado de vida de Pio (que aliás é analfabeto), suas interações sociais, sua iniciação sexual, tudo isso se dá num quadro de crescente tensão, premido pela necessidade material, pelo ímpeto juvenil e pela vigilância da polícia.
Diferentemente dos clássicos neorrealistas, compostos em grande parte de planos longos de conjunto, com uma profundidade de campo que permitia a formação de um quadro geral das relações entre personagens e destes com o ambiente, em Ciganos da Ciambra quase tudo é captado com uma nervosa câmera na mão, em planos curtos filmados muito perto dos personagens. Corpos e espaços fragmentados, ações truncadas.
A impressão geral é de despedaçamento, instabilidade, incompletude. Assim como a aprendizagem torta de Pio, a vida naquele pedaço pobre do planeta, enclave de Terceiro Mundo no velho e rico continente, segue aos tropeços – e ninguém sabe aonde vai dar.
Em tempo: o filme tem Martin Scorsese como produtor-executivo e o brasileiro Rodrigo Teixeira como coprodutor.
(fonte: https://outraspalavras.net/destaques/a-europa-pobre-esta-de-volta-inclusive-nos-filmes/)

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