Ainda tem gente que nega... fica difícil!!!
Da Istoé
Primeiras medidas práticas para ajudar movimento que derrubou Jango foram tomadas em junho de 1962
Paulo Moreira Leite
Entre tantas reportagens que fiz em
minha vida – boas, médias, medíocres – poucas me deram tanta satisfação
como o texto que você poderá ler abaixo. Eu era correspondente da Gazeta
Mercantil, em Washington, quando tive acesso a transcrição de uma
gravação de uma conversa de John Kennedy na Casa Branca, em junho de
1962. Num encontro com o embaixador Lincoln Gordon, foi nesta ocasião
que Kennedy tomou as primeiras medidas práticas para apoiar o golpe
militar contra Jango, como definir o envio do adido militar Vernon
Walters ao Brasil. No plano ideológico, Kennedy lembrou que apoiar
golpes de Estado era sempre perigoso, pois comprometia o discurso
democrático norte-americano mas sublinhou que a ameaça comunista poderia
ser um bom pretexto.
Publiquei essa reportagem em julho de 2000. Republico agora, no início do ano que marca a passagem de 50 anos do golpe.
Gazeta Mercantil Sexta-feira, 21/22/23 julho de 2000
Transcrições de conversas entre
John Kennedy e assessores revelam que o presidente dos EUA autorizou
apoio financeiro aos adversários de Jango
Paulo Moreira Leite, de Washington
Pertence à Universidade de Virgínia a
nova glória acadêmica nas pesquisas sobre envolvimento do governo
americano no golpe militar de 1964. Sob coordenação do prof. Timothy
Naftali, a universidade prepara para a publicação, em livro, das
transcrições de conversas ocorridas na Casa Branca durante o governo de
John Kennedy. É um projeto caro, demorado e cuidadoso. O lançamento do
primeiro volume, chamado John F. Kennedy: As Grandes Crises, Volume 1,
está marcado para o início do ano que vem. (início 2001)
Na década passada ocorreu uma primeira
divulgação das conversas de Kennedy. Mas era uma versão selecionada ,
com trechos e frases censuradas. Este jornal teve acesso com
exclusividade a trechos inéditos da transcrição integral de um diálogo
de 28 minutos no Salão Oval da Casa Branca, em 30 de junho de 1962, cuja
autenticidade é assegurada por dois pesquisadores americanos. Estão
presentes John Kennedy e o embaixador Lincoln Gordon, além de Richard
Goodwin, assessor graduado do presidente americano.
Os três falam da situação política no
Brasil. Também conversam sobre os primeiros passos do movimento militar
que, um ano e nove meses depois, iria derrubar João Goulart. Pela
transcrição, fica claro que Kennedy deu sinal verde para o golpe
militar.
Toda pessoa que já tentou decupar uma
fita sabe que a tarefa de reconstituir uma conversa envolve um processo
trabalhoso e delicado. Nem todas as palavras são ouvidas com clareza, e
muitas vezes o significado só pode ser inteiramente compreendido quando
se avalia o conjunto da frase e mesmo a conversa por inteiro — e só
depois disso se torna possível reconstituir um diálogo com precisão. "Um
leigo não entende nada do que ouve", explica um pesquisador que
participou dos trabalhos de transcrição. "A qualidade do som é muito
ruim, é difícil distinguir as vozes. As vezes se gasta 90 horas para
transcrever frases que duram um minuto."
A decupação dos diálogos na Casa Branca
foi deita em várias etapas e produziu versões diferentes. A que este
jornal pôde ler não é considerada definitiva. É possível que, por
intermédio de novas audições, ocorram pequenas alterações de palavra,
aqui ou ali. O sentido geral do que se diz, contudo, parece
estabelecido.
Em abril de 1962, o presidente João
Goulart fizera uma visita a Washington que, dadas todas as
circunstâncias de seu início de governo após o tumulto provocado pela
renúncia de Jânio Quadros, foi considerada um triunfo. Quando John
Kennedy e Lincoln Gordon se encontram na Casa Branca, dois meses depois,
o ambiente entre os dois governos já havia piorado tanto que Kennedy
resolvera adiar uma prometida viagem ao Brasil.
Também surgiam os primeiros sinais de
descontentamento nos quartéis. Antes de ir para Washington, Gordon
recebera em audiência o almirante Silvio Heck, um dos mais ativos
golpistas da época, que marcara uma conversa reservada para anunciar que
havia uma conspiração em andamento. "Ele não pediu apoio", conta
Gordon. "Só disse que gostaria que meu governo fosse informado do que
estava acontecendo."
No Salão Oval da Casa Branca, um dos
primeiros encontros em pauta, conforme a transcrição, envolve as
eleições parlamentares no Brasil naquele fim de ano. Falava-se de votos e
também de dinheiro. Oito milhões de dólares, aprende-se, foi a quantia
estimada ali, para reforçar o caixa de candidatos alinhados com a
oposição a Jango. Lê-se uma advertência de Gordon, explicando que, dadas
certas característica da política brasileira, não se deveria esperar
uma prestação de contas rigorosa sobre o dinheiro — como foi gasto,
aonde, com que. Também se fica sabendo que essa soma arrancou uma
expressão de espanto, quase protesto, de John Kennedy. A seguir o
presidente norte-americano comenta que era muito dinheiro para se torrar
numa eleição. A queixa presidencial teve efeito. A CIA acabou liberando
a verba — mas não deu tudo o que se pedia. A conta foi de cinco milhões
de dólares.
Outro ponto da conversa envolve os
primeiros passos da conspiração militar. Gordon começa falando como bom
democrata. Explica que é contrário a que os EUA encoragem um golpe. Diz
que seria preferível organizar as forças adversárias de Goulart para ir
diminuindo os poderes do presidente brasileiro. O embaixador fala que só
admite a idéia de golpe em último caso e deixa claro que, em sua
opinião, o principal responsável pelo desfecho da crise será o próprio
presidente.
Aos poucos, Gordon evolui em seu
pensamento, porém. Explica que a melhor política seria que o governo
americano deixasse claro que não era necessariamente adversário de uma
operação militar, desde que ela fosse realizada para impedir que
houvesse uma ruptura capaz de retirar o Brasil da área de influência
norte-americana para transformá-lo num satélite soviético. A leitura da
transcrição demonstra que John Kennedy acompanha atentamente a conversa,
auxilia Gordon em seu raciocínio, complementa e enfatiza as frases do
embaixador.
Há um momento em que Lincoln Gordon vai
dizer por quê se pode apoiar um golpe militar e cabe ao presidente
Kennedy completar a frase, explicando que é para impedir a vitória do
comunismo.
Assessor de John Kennedy, e de diversos
presidentes que vieram depois, democrata linha dura que depois se mudou
para o campo oposto, tornando-se um dos mais ativos e respeitáveis
adversários da guerra do Vietnã, Richard N. Goodwin também está presente
à conversa.
A transcrição registra uma divergência
entre ele e Gordon quanto a natureza do governo João Goulart. O
embaixador tem uma visão mais otimista, comparando Jango a Perón.
Goodwin compara Goulart a Gamal Abdel el-Nasser, o ditador do Egito, e
mesmo a Franz Bronz Tito, patrono da Iugoslávia, ambos líderes de umas
das grandes líderes de uma das grandes dores de cabeça da diplomacia
americana da época. Encabeçavam o movimento dos não-alinhados.
Goodwin também deixa claro que o
movimento militar só terá apoio se tiver um caráter constitucional.
Passando as questões práticas, Goodwin se revela preocupado com as
plenárias da Organização dos Estados Americanos, nas quais, inquietos
com golpes militares e levantes cada vez mais freqüentes, os
representantes costumavam aprovar moções de repúdio a esse tipo de
intervenção.
A transcrição registra que Goodwin se
mostra temeroso de que esse tipo de manifestação da OEA acabe por
desencorajar os militares brasileiros. Também se lê que Kennedy concorda
com essa opinião.
"Essa transcrição faz todo sentido", diz
um militar brasileiro que acompanhou cada passo do golpe. Existem
elementos importantes nessa transcrição. Sempre se soube que a CIA havia
organizado uma operação clandestina para ajudar a oposição na campanha
de 1962 — a gravação indica que essa decisão teve respaldo do próprio
John Kennedy. também fica claro que a Casa Branca estava preocupada com o
que ocorria no Brasil e nunca deixou de considerar a alternativa
militar. Isso não é novidade — mas não deixa de ser curioso observar a
franqueza e descompromisso com que o assunto é tratado.
O diálogo inteiro, na verdade, não durou
mais do que 28 minutos. Depois dele, o golpe militar já era uma saída
considerada em Washington.
Este jornal ouviu longamente o
embaixador Lincoln Gordon, um dos personagens centrais desse encontro.
Gordon diz recordar-se perfeitamente dessa reunião na Casa Branca mas
lamenta não ter tido acesso a transcrição da fita "para poder refrescar
minha memória".
O embaixador recorda que é natural que
se falasse de temas políticos numa conversa com o presidente mas não se
lembra de o encontro ter descido a detalhes como mandar um pacote de
dólares para ajudar os adversários do presidente João Goulart. "Isso
aconteceu mesmo, todo mundo sabe, mas não sei se foi nessa conversa"
diz. "O que se dizia, na época, é que se havíamos feito isso na Itália,
em 1948, e poderíamos fazer o mesmo agora." Coincidência ou não, esse
argumento relacionado aos italianos apareceu na conversa de 30 de junho
de 1962, informa a transcrição.
Foi Goodwin quem lembrou o precedente da
ajuda à democracia-cristã contra os comunistas, no pós guerra, no
momento em que se falava sobre o envio de dinheiro à oposição
brasileira.
Não se deve diminuir nem exagerar o
papel de John Kennedy no golpe militar de 1964. O presidente americano
não estava falando em dar início a uma operação destinada a derrubar
João Goulart. Recebeu a informação de que havia um movimento
embrionários nos quartéis e avisou que, sob determinadas condições, essa
conspiração podia ser apoiada.
A convicção de que se devia prestar
atenção à alternativa já era poderosa na época . Uma das primeiras
conseqüências práticas da conversa de 30 de junho foi a nomeação de um
novo adido militar. "Kennedy disse que eu precisava ter o melhor oficial
que conseguisse," conta o embaixador. O nome definido foi Vernon
Walters, então coronel, que falava português e conhecia a cúpula do
Exército. Naqueles tempos, o coronel Walters estava servindo na Itália.
Por determinação de Kennedy, Gordon dobrou a oposição do Pentágono e do
secretário de Defesa, Robert McNamara, conseguindo levar Walters para o
Brasil.
No Salão Oval, Lincoln Gordon lembrou que a quantia necessária para financiar a oposição de Jango era de US$ 8 milhões.
Assessor de Kennedy, Richard Goodwin temia que a reação da OEA a um golpe no Brasil pudesse desencorajar os militares.
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