Na Ucrânia a União Europeia brinca com fogo
Na Ucrânia a União Europeia brinca com fogo
Flávio Aguiar
Berlim - Há muita cortina de fumaça na Ucrânia, e não apenas nas
manifestações: também na mídia. Em primeiro lugar, porque é mesmo
difícil discernir o que está de fato acontecendo, quais são as forças em
jogo, quem lucra, quem perde, quais são as alternativas. Em segundo
lugar porque há em muitos espaços da mídia do Ocidente uma tendência de
ler os acontecimentos ainda em termos de Guerra Fria, aindaem termos de
“mocinhos” versus “bandidos”.
Para uma leitura deste tipo, as
coisas são mais ou menos simples. Trata-se do enfrentamento entre
manifestantes que desejam uma Ucrânia livre, associada à Europa, que,
para esta leitura, segue sendo o ‘modelo civilizatório’, liberta da
corrupção. Do outro lado está o governo autoritário de Viktor
Yanukovitch, apoiado pelo “pérfido” Putin que, como patrão político da
Rússia, é, “naturalmente”, o vilão da história, chantageando a pobre
Ucrânia desamparada com seus bilhões de rublos e seu gás inesgotável,
necessário para aquecer o inverno rigoroso do país.
Na verdade, as coisas não são tão simples, ou melhor dizendo, tão simplórias.
Algumas
recentes matérias vem pondo um pouco de luz neste tíunel aparentemente
sem saída chamado Ucrânia. Refiro-me particularmente a duas: “Viktor Yanukovitch [o presidente]’s future may depend on oligarchs as much as protesters” (The Guardian, 28.01.2014, de Shaun Walker) e “The Right Wing’s Role in Ukranian Protests” (Spiegel International, 27.01.2014, da Redação).
Quando
o comunismo espatifou-se na Ucrânia, o país quebrou. Tudo foi
privatizado a toque de caixa. Mas, como sóe acontecer, muita gente
lucrou, e lucrou muito, neste processo. Fortunas se fizeram da noite
para o dia, algumas vezes, melhor dizendo, do dia para a noite, porque
nem sempre, como também sóe acontecer, os procedimentos podiam vir à luz
do dia. Formaram-se, como na Rússia de Yeltsin, alguns conglomerados
financeiros, industriais e comerciais, em torno dos novos oligarcas
subitamente enriquecidos, seis, para ser mais preciso, segundo o
Guardian. Estes seis passaram a dar as cartas nos bastidores da política
ucraniana.
Um deles, o mais poderoso, e rico, Rinat Akhmetov,
tornou-se muito próximo do atual presidente, vindo que era da mesma
região, no leste do país.
Por sua parte, Yanukovitch é de fato um
político relativamente popular, e acabou eleito legitimamente para a
presidência. Quando isto aconteceu, Yanukovitvch começou a cercar-se de
uma nova geração de a princípio pequenos oligarcas, mas que foram
crescendo, e são hoje os chamados “lobos”. Isto desagradou a velha
oligarquia estabelecida. Para complicar a situação, três forças externas
estão na dança: a União Europeia, a OTAN e a Rússia. A União Europeia,
desde sua criação, está em processo de expansão – uma expansão meio
descontrolada, como se vê pelo atual estado de crise em que boa parte
dela – arrastando o todo – está metida. Uma fatia importante deste
crescimento são os “mercados emergentes” das ruínas do comunismo. Por
que não a Ucrânia?
Por outro lado, sob a liderança (em estilo
czarista) de Putin, a Rússia vem recuperando a força política e
diplomática perdida, e a Ucrânia é peça-chave nesta recuperação, seja
pela extensa fronteira que compartilha com ela, seja pela cobertura do
Mar Negro logo abaixo, cujo controle, evidentemente a OTAN cobiça ,
coisa que Moscou não pode admitir.
Dito isto, pode-se ver que de
fato uma grande parte do destino do atual governo ucraniano depende do
que Moscou e Bruxelas fizerem ou deixarem de fazer, e da conveniência
deste governo para os oligarcas por detrás, a quem, disputas internas à
parte, interessa tanto o dinheiro (15 bilhões de euros para um país
virtualmente quebrado) russo e seu gás, quanto as finanças europeias
cujo ímpeto, também como soe acontecer, é restringir gastos públicos,
sobretudo na área social, diminuir salários e aposentadorias, cortar o
poder dos sindicatos, etc., na receita por demais conhecida.
Mas
há também a praça, onde as manifestações se sucedem, sem que arrefeçam
até o momento. Pela matéria do Spiegel, pode-se discernir três grandes
forças principais animando as manifestações: o Partido da Pátria-Mãe (ou
Pai, na versão original), ligado à ex-lider Yulia Timoshenko, hoje
presa, o Partido Udar, do principal líder da oposição, Vitaly Klitschko,
e – aí vem a complicação maior – o Partido Svoboda (Liberdade),
liderado por Igor Myroshnychenko, de extrema-direita. Todos estes três
partidos têm representantes no Parlamento.
Mas o que a matéria do
Spiegel explora é que de longe quem predomina nas mabifestações, que
teriam arrefecido sem isto, é o ultra-nacionalista e xenófobo Svoboda.
As ações e declarações dos membros e lideranças deste partido –
inclusive de Myroshnychenko – rescendem a xenofobia, antissemitismo,
ressentimento nacionalista (que na Europa é palavra associada sempre à
direita), anti-homossexualismo, anti-minorias, além de práticas
esdrúxulas, para dizer o mínimo, como já foi observado: recentemente
jovens ligados ao partido distribuíam panfletos com trechos dos
discursos de Goebbels, o homem forte da propaganda nazista. Além disto
até recentemente o nome do Partido era “Social-Nacional”, numa alusão
mais do que clara ao nome oficial do Partido de Hitler, o
“Nacional-Socialista”.
Estes são os que se dizem “prontos para
morrer” em nome da luta que estão levando. Para azar de todos, na
hipótese de a oposição querer formar um governo sem Yanukovitch, ela
terá forçosamente de incluir o Svoboda.
Ou seja, todos da oposição – e de quebra a União Europeia – estão flertando com o perigo.
No
momento, é difícil discernir alguma nova configuração política que
rompa com os poderes dos oligarcas – novos ou menos novos – e crie uma
outra força mais democrática do que aquelas em jogo. No curto prazo o
que de melhor pode acontecer é a formação de uma articulação política
entre Yanukovych e os dois partidos de oposição, Udar e Pátria-Mãe (ou
Pai), isolando ou pelo menos neutralizando o Svoboda. Também que Moscou
mantenha o empréstimo prometido e a promessa de cobrar menos pelo gás
que fornece ao país, e que a presença da União Europeia no jogo (o que
também, de momento, é inevitável) seja suficientemente contrabalançada
para trazer o menor estrago possível, com seus ‘planos de austeridade’,
à política de recuperação da Ucrânia, quando esta for possível.
(fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Na-Ucrania-a-Uniao-Europeia-brinca-com-fogo/6/30129)
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