Por Hildegard Angel
Neste momento extremamente grave em que vemos um
golpe militar caminhar célere rumo a um país vizinho, com o noticiário
chegando a nós de modo distorcido, utilizando-se de imagens fictícias,
exibindo fotos de procissões religiosas em Caracas como se fosse do povo
venezuelano revoltoso nas ruas; mostrando vídeos antigos como se atuais
fossem; e quando, pelo próprio visual próspero e “coxinha” dos
manifestantes, podemos bem avaliar os interesses de sua sofreguidão, que
os impedem de respeitar os valores democráticos e esperar nova eleição
para mudar o governo que os desagrada, vejo como meu dever abrir a boca e
falar.
Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.
Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola,
como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de
usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje
obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam
de sangrar.
Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.
Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se
calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo.
O coração tem razões…
Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez
porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco,
como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar
atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação,
apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a
venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.
Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.
Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros
dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que
passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou
vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos
felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos
completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente
felizes.
Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!
A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada
sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa
fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem
cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de
fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota
americana.
Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e
de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir.
Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram
afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as
escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela
prepotência.
As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas
reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada
da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem
explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão
ou por quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo
eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.
E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil.
Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na
Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O
obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A
aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual.
Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de
terror, a mesma impotência.
Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de
falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre as “malas do Golbery” ou as
“comissões das turbinas”, as “compras de armamento”. Falavam, falavam,
mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não
havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade,
uma Justiça de verdade, um país de verdade.
E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para
conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um
militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar
imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é,
então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de
Miguel Gustavo.
Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado,
morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de
acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José
Gregory, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos
Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.
Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que
ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um
orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício,
via o Brasil lhe roubar o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome as
homenagens ao seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos –
o irmão assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se
repetia.
Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos
Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação que sua sala de aula,
no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e
foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no
exterior.
Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa,
em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de
colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas
também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito
de me julgar por ter sobrevivido.
Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira
e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe,
precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância
para isso e já ter alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que
prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.
Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como
acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos,
memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver, apesar
de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela
colheita: lembrar aos meus mártires, e tudo de bom e de belo que fizeram
pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos
deixados, na História, através do maior número de ações produtivas,
efetivas e criativas que possa multiplicar.
E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!
(fonte: http://jornalggn.com.br/noticia/hildegard-angel-e-meu-dever-dizer-aos-jovens-o-que-e-um-golpe-de-estado)
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