por Marco Antônio Silveira
Não,
não estamos falando de certa emissora de TV que, seguindo estranho preceito
bíblico, nasceu do golpe e ao golpe sempre voltará. Tampouco de revista semanal
que descobriu como ganhar dinheiro explorando um nicho de mercado, digamos,
lacerdista. Afinal, todos os grandes órgãos de imprensa fazem o mesmo. A Folha,
ao investir no nicho da pluralidade de opiniões, precisou rebolar para não ter
de dizer que houve golpe. Também não estamos falando de pseudo-intelectuais
que, às vezes valendo-se de uma crítica fácil ao politicamente correto, às
vezes por questões meramente venais, conseguiram multiplicar seus rendimentos
vendendo bobagem pela mídia afora. Não se trata de nada disso – ou pelo menos
não apenas disso. Trata-se da reação bovina de tantos jornalistas, intelectuais
e representantes da sociedade civil diante do inaceitável. Gente que por
décadas defendeu a democracia, e que até lutou contra ela na época da ditadura,
assiste a tudo com um leve sorriso nos lábios.
Talvez
seja demais dizer que o Brasil vive um estado de exceção, mas não me parece exagerado
lembrar que estados de exceção de repente se constituem de situações como a que
se vive hoje. Sempre se criticou o PT, com certa razão, dizendo-se que o
partido, quando chamado a responder a denúncias de corrupção, evocava a luta de
classes. Mas o contrário também pode ser dito: sempre que se evoca o conflito
de classes, o argumento é logo descartado pela lembrança dos casos de
corrupção. Há corrupção, como sempre houve, e dizer que o Brasil vive seu pior momento
nesse ramo é tão esperto quanto afirmar que sem a PEC 241 o país chegará à
triste situação do Haiti.
Não,
a PEC 241 é apenas o golpe em andamento. Seus efeitos sobre o serviço público
já foram demonstrados por técnicos da Câmara e por estudiosos do IPEA – estes
últimos devidamente enquadrados, bem de acordo com regimes antidemocráticos que
criam medidas injustas, aumentam a tensão social e, por fim, chamam um ministro
de baixa estatura para organizar a repressão. Não haverá apenas cortes nos
gastos com saúde e educação, mas cortes em praticamente todos os setores, o que
a médio e longo prazo demandará que o acesso aos serviços públicos seja
restringido – e já não houve ministro dizendo que é impossível sustentar o SUS?
Daqui a alguns anos, quando as estruturas do Estado estiverem efetivamente
sucateadas e a população perceber que o golpe não foi apenas uma briga de
políticos, novo debate terá de ser travado: os sucateadores dirão sobre a
suposta incompetência do Estado e proporão privatizá-lo a preço de banana; os
opositores se esgoelarão para reconstituir a teia que começou a ser traçada com
o chamado impeachment. A essa altura, parte dos jornalistas,
pseudo-intelectuais e lacerdistas estarão fazendo cara de paisagem diante das
consequências de uma política econômica que visa transferir riqueza dos pobres
para os ricos, pois a PEC 241 exclui qualquer limite para o pagamento da dívida
pública e nada tem a dizer sobre os subsídios e as desonerações concedidos a empresários.
E
não poderemos, assim como não podemos, contar muito com as instituições do dito
Estado Democrático de Direito, já que o golpe foi de natureza parlamentar e
articulou-se com grupos privados e setores da imprensa. Esta última talvez
comece a se incomodar quando a moeda de troca do fisiologismo parlamentar
passar a ser explicitamente o ataque a direitos individuais: você aprova a
medida que deixa os ricos mais ricos e eu o ajudo a aprovar lei que permite que
homossexuais sejam surrados impunemente por aí. Mas também não poderemos
contar, como nunca pudemos de fato, com a Justiça – essa mesma que sempre
deixou presos apodrecendo em cadeias superlotadas, alguns deles com pena já
cumprida. Uma política de combate à corrupção é muito bem-vinda desde que não
seja partidária, nem se escore em preconceitos de classe. Se as pessoas que
organizaram manifestações pelo Brasil contra o governo Dilma estivessem de fato
lutando contra a corrupção, teriam também reunido quinhentas mil pessoas em
frente ao Congresso Nacional para exigir a deposição de Eduardo Cunha. Balela.
A
operação Lava Jato poderia ter se tornado um caminho importante para a
democratização da sociedade brasileira, mas a explícita filiação partidária de
seus principais membros e a adoção de medidas ilegais colocam-na sob suspeita e
deixam a sensação de que, depois de cumpridos seus fins políticos, desaparecerá
com um rastro de pólvora. Alguém realmente acha que é aceitável que um juiz
libere escutas ilegais? Ninguém se importa com a possibilidade de que, ao
descumprirem as leis, as autoridades ajam como aqueles que desejam julgar e
punir? Sim, muitos acham tudo isso aceitável, havendo aqueles que comparam
gente incapaz de distinguir honestamente entre corrupção sistêmica e
organização criminosa com os anseios libertários do Wikileaks. Poderíamos ter
alguma esperança no Supremo Tribunal Federal, mas este, além de dividido em
facções que se encontram acima da defesa da Constituição, parece mais
preocupado com reajustes salarias. Encontram-se no STF desde ministros
altamente respeitáveis até indivíduos que não apresentam condições mínimas para
ocupar o cargo que ocupam. E, infelizmente, o golpe passa também pelas fissuras
que ficam abertas na mais alta corte do país.
Enfim,
o golpe apenas dá seus primeiros passos, apoiado por quem sempre apoiou golpes
neste país. Mas haverá luta, e já nas eleições de 2018. Embora isso dependa do
amadurecimento de partidos de esquerda como o PSOL e da capacidade do PT de
sair de sua posição defensiva e assumir seus erros e suas responsabilidades, o
fato é que daqui a dois anos estaremos todos discutindo quem ganhou e quem
perdeu com mais uma quebra do ordem constitucional.
Marco Antonio
Silveira, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP)
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