Quem matou o embaixador de Moscou em Ankara queria frustrar um
movimento geopolítico crucial: a Turquia está cada vez mais próxima da
Eurásia, para desespero dos EUA e União Europeia
Por Pepe Escobar | Tradução Vila Vudu
Vamos logo ao que interessa: Ankara
2016 não é Sarajevo 1914. Não é prelúdio da 3ª Guerra Mundial. Quem
tenha urdido o assassinato do embaixador russo na Turquia Andrey Karlov –
diplomata calmo, educado, contido, da velha escola russa – pode esperar
revide de altíssima octanagem.
O assassino Mevlut Mert Altintas,
graduado da Academia de Polícia, 22 anos, recebeu pena de suspensão da
Polícia Nacional Turca por suspeita de laços com a Organização
Terrorista Fethullahista [ing. Fethullahist Terrorist Organization (FETO)] depois do fracassado putsch de 15 de julho contra Erdogan, mas retornou ao serviço em novembro.
Não é segredo que os gulenistas estão pesadamente infiltrados dentro
da Polícia Nacional Turca; assim sendo, um específico efeito do ataque
será ataque ainda mais furioso e incansável, de Erdogan/AKP contra a
rede de Gulen. A investigação turca terá de se concentrar na falha
(gigantesca) de segurança naquele prédio do moderno centro de artes de
Ankara, – mas também terá de alcançar outros muitos pontos. A evidência
de que o ministro do Interior turco Suleyman Soylu só se manifestou, em
frases tensas, mais de três horas depois do evento mais preocupa que
tranquiliza.
O assassino, vestido num terno preto com gravata, gritou slogans sobre vingança “por Aleppo” – incluído o indefectível “Allahu Akbar”
– em língua turca e em árabe, coisa que pode estabelecer alguma conexão
com a retórica de um grupo islamista, mas não é prova conclusiva.
O momento do crime é crucialmente importante. Aconteceu apenas um dia
antes da reunião dos ministros de Relações Exteriores de Rússia,
Turquia e Irã, em Moscou, para discussão estratégica sobre a Síria. Já
estavam em contato próximo há várias semanas, prontos para firmar um
amplo acordo sobre Aleppo – e além de Aleppo.
E isso exatamente depois do acordo crucial, recentemente assinado entre Putin-Erdogan, que implica nada menos que milhares de “rebeldes moderados” sob comando da Turquia serem autorizados a safar-se por um “corredor”
para fora de Aleppo. Ankara estava perfeitamente informada sobre esse
desenvolvimento. Só esse detalhe basta para eliminar a possibilidade de
ataque provocado por Ankara sob falsa bandeira.
O presidente Putin, por sua vez, disse muito claramente que quer saber “quem dirigiu o assassino”. Pode-se interpretar como alguma espécie de código sutil para dizer que a inteligência russa já sabe quem fez o que.
O Grande Quadro
No front bilateral, Moscou e Ankara trabalham atualmente juntas e
muito próximas no campo do contraterrorismo. O ministro da Defesa da
Turquia foi convidado a visitar a Rússia para negociações do sistema de
defesa antiaérea. O comércio bilateral está novamente florescendo,
inclusive com a criação de um fundo conjunto de investimentos. No sempre
importante front da energia, o gasoduto Ramo Turco, apesar da obsessão
no governo Obama para fazê-lo desandar completamente, foi consolidado
numa lei do estado turco, em Ankara, no início de dezembro corrente.
Os atlanticistas estão em pânico, agora que Moscou, Ankara e Teerã
estão trabalhando em tempo integral para traçar as linhas de um futuro
para a Síria depois da Batalha de Aleppo e exclusão e vergonhosa
expulsão de lá, de todo o combo OTAN-CCG (Conselho de Cooperação do
Golfo).
Sob esse contexto é que de deve interpretar a recente noticiada captura pelas Forças Especiais Sírias em Aleppo, de um punhado de agentes de OTAN-CCG – operando na Síria camuflados” dentro da “coalizão” que os EUA lideram pela retaguarda.
Fares Shahabi, deputado do Parlamento sírio, presidente da Câmara de
Comércio em Aleppo, publicou os nomes dos agentes presos. A maioria são
sauditas; há um qatari; a presença de um marroquino e um jordaniano
explica-se porque Marrocos e Jordânia são membros “não oficiais”
do CCG. Mais um turco, um norte-americano (David Scott Winer) e um
israelense. Apenas dois agentes da OTAN, mas a conexão OTAN-CCG está
super estabelecida. Se essa informação procede – ainda há um grande “se”
– esses todos podem bem ser a coalizão de pessoal militar e comandantes
de campo que antes dava aconselhamento aos “rebeldes moderados” e agora
está convertida em formidável moeda de troca nas mãos de Damasco.
Ambos, OTAN e CCG não disseram uma palavra; nem negações do tipo “não
nego que…” apareceram até agora. Pode significar algum acordo
clandestino já firmado para a saída de prisioneiros de alto valor, o que
dá ainda mais peso à posição de Damasco.
Foi o presidente Putin que realmente estabeleceu um eixo de fato
Rússia-Irã-Turquia para lidar com fatos em campo na Síria – ação
paralela ao embuste e solução-zero dos “trabalhos” em andamento na ONU
em Genebra. Moscou enfatiza diplomaticamente que o trabalho do eixo
complementa o que se faz em Genebra. De fato, o russo é o único trabalho
baseado na vida real. Espera-se que tudo esteja assinado, com
parâmetros definitivos bem fixados em campo ainda antes de Donald Trump
entrar na Casa Branca.
Resumidamente: o projeto combo de mudança de regime, cinco anos (e
ainda não terminou), que custou à OTAN-CCG multibilhões de dólares, para
expulsar Assad da Síria… fracassou miseravelmente. Erdogan, o matreiro,
parece que afinal aprendeu sua lição de realpolitik. Mesmo assim, foram abertas no front atlanticista miríades de avenidas para canalizar o ressentimento geopolítico .
O grande quadro não poderia ser mais absolutamente insuportável para
os atlanticistas neoliberais/neoconservadores. Lentamente, mas sem parar
de andar, Ankara vai tomando o rumo da Eurásia. Bye bye União Europeia e, talvez, OTAN; bem-vindas as Novas Rotas da Seda, também chamadas Projeto Um Cinturão, uma Estrada [ing. One Belt, One Road (OBOR)], puxado pela China; bem-vinda a União Econômica Eurasiana [Eurasia Economic Union (EEU)] puxada pela Rússia; bem-vinda a Organização de Cooperação de Xangai [Shanghai Cooperation Organization (SCO)]; a parceria estratégica Rússia-China; e a Turquia como nodo chave de entroncamento na integração da Eurásia.
Para que tudo isso aconteça, Erdogan concluiu que Ankara tem de estar
a bordo da estratégia de longo prazo de Rússia-China-Irã para pacificar
e reconstruir a Síria e fazer dela um nodo chave também das Novas Rotas
da Seda. Entre isso e uma “aliança” de interesses em conflito, com
Qatar, Arábia Saudita e EUA, a escolha não é difícil.
Mas que ninguém se engane. Ainda haverá sangue.
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