por Gilson Dantas
Desde o século XIX, com o médico e ativista social R. Virchow, se
sabe que a saúde coletiva depende das condições de água, saneamento,
habitação, mobilidade urbana das pessoas.
Este é o primeiro fato, e depois dele vem a assistência médica. Marx também menciona no O capital,
que o advento da grande indústria capitalista provocou uma explosão do
que ele chamou ali, cientificamente, de “catálogo das doenças
operárias”, e que hoje os sanitaristas chamam de patologias industriais.
Em outras palavras seria o seguinte: a atenção médico-sanitária ou
assistência médica não é o determinante mais importante para a saúde
pública. Para pensar com um exemplo gráfico, tomemos nas comunidades
pobres do Recife, que vivem em palafitas [casas ultra-precárias
levantadas e amontoadas, em pés de madeira, sobre águas podres e
contaminadas, povoadas de mosquitos] e agora imagine se alguma política
médico-sanitária poderá ter sucesso sem revolucionar moradia e
saneamento daquelas pessoas? Sem chance. No máximo vão envenenar e
adoecer pessoas vaporizando tóxicos pesados – “fumacê” – sobre seus
barracos e as águas.
Este é um conceito, médico sanitário, que obviamente jamais foi
assimilado pelos sucessivos ministérios da saúde no Brasil. Sim,
certamente falam a respeito, dão aulas nas escolas de saúde pública,
fazem encontros sofisticados e caros sobre o tema, com doutores de farto
curriculum, mas quando se trata da política real e concreta, as coisas
vão ficando no papel, não vão além do papel molhado.
A primeira demanda, democrática, da grande massa trabalhadora e suas
famílias, portanto, é lutar para impor, além de emprego digno para
todos, também a imposição de condições de saneamento, moradia,
alimentos, que são a base da saúde.
Mas a questão é muito mais profunda. Ela alcança em cheio as escolas
de medicina e todo o aparato médico-hospitalar de conjunto e sua
concepção do que seja medicina. Senão vejamos.
Quando um trabalhador consegue agendar uma consulta médica – depois
de atravessar a corrida de obstáculos que o capitalismo criou no Brasil
para uma mera consulta médica – a pergunta se impõe: que tipo de atenção
ou de diálogo vai acontecer ali, entre médico e paciente?
Amplamente sucateado, o SUS sequer garante o direito universal à
atenção médica, tão buscada pela população. Aliás, diga-se de passagem,
esta é a forma “indireta” do governo privatizar a assistência médica no
Brasil: os tubarões da saúde e dos planos de saúde jamais lucraram
tanto, jamais foram tão gordos quanto nos recentes governos
lulo-petistas e agora, com o golpista Temer, com o SUS descendo ladeira
abaixo, mais ainda.
Mas voltemos.
Naquela consulta, algum médico se pergunta sobre por que você está
enfermo? Ou será que a tradição [ensinada nas faculdades] é a de, no
máximo, pedir um exame invasivo qualquer e, em seguida, a partir do
laudo, aplicar um rótulo [“hipertensão”, “insuficiência renal”] por
exemplo, e mandar tomar uma droga?
Para além do fato de que foi “tratado” nada mais que o sintoma, ou o
rótulo da doença, existe um problema mais de fundo amplamente
desconsiderado naquele diálogo: a pessoa adoeceu ANTES de entrar no
consultório médico. Não adoeceu NO consultório. No entanto, a medicina
do capital não tem qualquer interesse em relação ao “antes”. Tudo se
passa como em uma fotografia: olho, rotulo, vejo que falta uma nuance
mais azulada na foto e aplico outra coloração. Tudo se passa na esfera
do fenômeno, da aparência, do sintoma.
Não interessa ao aparelho médico-hospitalar o por que aquela pessoa
está enferma. Marx, que estava longe de ser médico, mas, à sua maneira,
já chamava a atenção para o que está fora da consulta médica: o trabalho
fabril capitalista – como consta daquela passagem do seu livro maior;
mas também Engels levanta elementos na mesma direção com o seu A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra [este, aliás um livro que
deveria ser básico nas escolas de medicina e saúde pública].
Hoje diríamos: não existia, tempos atrás, nada parecido com doença do
asbesto, do amianto, da indústria radioativa, do operário da fábrica de
anticoncepcionais [que desenvolve tumor de próstata] e assim por
diante. Passaram a existir depois que se instalaram certas condições, de
poluentes, de trabalho massacrante e entediante, todos estes e tantos
outros, elementos de fora do consultório e que o operário carrega dentro
de si – em formato-doença. Elementos dos quais o trabalhador está
impregnado, por isso mesmo está enfermo, e os leva para a consulta
médica. Mas isso não interessa ao profissional da doença. O catálogo de
rótulos e verbetes médico-patológicos, de fato, vive um boom nos marcos
da sociedade organizada pelo capital.
Então como fica a consulta médica que não pergunta – e não se
pergunta – por que você está enfermo ou por que você está com
hipertensão? A medicina deveria saber que a doença “do trabalho fabril”
não existiria sem o trabalho fabril desumano, sujo. Por que então os
elementos de fora do consultório não entram no consultório, na consulta?
Quais são as causas para que aquela pessoa determinada apresente
pressão alta ou digamos, uma fibrose pulmonar, falta de ar? O mais
provável e quase certo é que aquela doença se deva a causas sociais, de
trabalho, ambientais, a problemas de alimentação etc que, vale repetir,
NÃO entram e não farão parte central ou consequente da consulta.
Em suma: a medicina medicaliza, a medicina deixa de fora da
paisagem o mais determinante elemento da saúde pública e o substitui
pela “assistência médica” [diga-se de passagem a serviço da big pharma,
da poderosa indústria de equipamentos de imagem ionizante, da indústria
hospitalar da doença, isto é, da medicina mercantilizada, a mesma que
vai agregar tóxicos, radiações ionizantes e exames invasivos ao
paciente].
O que você diria de um regime político que fala em nome do povo, mas
que exclui as massas do poder político? O que você dirá de uma
assistência médica que solenemente não se pergunta e não pesquisa na
história das condições reais do paciente sobre o por quê ele está
enfermo, e exclui a vida daquela pessoa, põe sua vida para fora da
atenção médica?
Assistência médico-hospitalar precisa ser um direito universal,
estatal, público e gratuito e para isso a medicina não pode ser a
medicina do capital – que torna a saúde um grande negócio – mas ao mesmo
tempo é necessário também questionar um “modelo médico” – igualmente
moldado pelo capitalismo – que não quer saber por que você está enfermo e
nem quer ou pode levar esta pergunta absolutamente lógica até o final.
Nota – Virchow, pai da patologia moderna e da medicina social,
falecido em 1902, dizia que “se a medicina quer exercer plenamente o seu
papel, deve participar da vida política e social do país; deve
assinalar os obstáculos que se opõem ao desenvolvimento normal dos
processos vitais e tentar conseguir sua eliminação”. Por sua vez, J
Benach chama mais apropriadamente a assistência médica de “atenção
sócio-sanitária”, indicando o que ela deveria ser mas não é…
* GILSON DANTAS é graduado em Medicina pela Universidade de Brasília; Doutor em Sociologia pela UnB.
(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2016/12/17/a-medicina-que-so-trabalha-do-consultorio-para-dentro/)
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