Em entrevista, o educador e filósofo Gaudêncio Frigotto faz um retrospecto dos acertos e erros dos últimos governos na educação brasileira.
Eduardo Sá - Fazendo Média
Com a reforma do ensino médio estamos
resgatando retrocessos que remetem ao que há de pior na história da
educação brasileira, e a juventude está ocupando as escolas porque essa
geração não vê um futuro seguro para sua vida. Esses são alguns dos
principais elementos que o educador e filósofo Gaudêncio Frigotto,
professor do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação
Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atribui ao
atual cenário de crise na educação brasileira. O pensador, discípulo de
Paulo Freire, tem visitado algumas ocupações e conversado com os alunos
para entender melhor esse processo, além de acompanhar atentamente as
mudanças realizadas pelo governo de Michel Temer.
Na
entrevista ao Fazendo Media, ele faz um retrospecto dos acertos e erros
dos últimos governos na educação brasileira. Frigotto destaca ainda o
surgimento de movimentos junto ao empresariado, como o Escola Sem
Partido, que se tornaram hegemônicos nas decisões do ensino nacional.
Para ele, a educação vista como um negócio e não um direito é o que mais
prejudica as próximas gerações.
Parceiro
de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST), o professor defende a aproximação com os jovens para um
diálogo em busca de um bem maior: uma educação pública de qualidade para
todos. Embora o cenário no médio prazo seja auspicioso, segundo ele,
existem sinais de um acúmulo de lutas e consciência que nos trazem
esperanças com essa juventude e outros movimentos para o futuro.
Quando o Lula assumiu o governo havia um grupo
que tinha pensado o Plano Nacional de Educação (PNDE). O contra ponto
era as políticas de educação dos anos 90 no contexto do neoliberalismo
e, sobretudo, o restabelecimento da dualidade na educação básica com o
decreto 2.208/96. E recuperar, portanto, o debate da Lei de Diretrizes e
Bases (LDB) da Constituinte da educação básica como direito social e
subjetivo. Quais são os avanços? Se restabeleceu na educação básica o
ensino médio como sua parte final, numa perspectiva integrada: não
separar o técnico e o político do humano, uma educação básica com a
ciência, a cultura e o trabalho como suporte ao jovem para sua autonomia
e cidadania. Ou seja, se posicionar na sociedade ativamente e ter as
bases para se inserir no mundo do trabalho. E do ponto de vista de
política educacional, sem dúvida nenhuma a criação e expansão dos
Institutos Federais com a sua interiorização. Isso tem extraordinários
ganhos, apesar dos seus problemas. A criação de 17 universidades também,
como a Fronteira Sul, que tem um papel enorme e é uma reivindicação dos
movimentos sociais. Seu desenho é totalmente diferente, onde os
movimentos são parte da gestão da universidade. São avanços
significativos, e por isso não comungo com os que dizem que o governo
Lula foi igual ao FHC na educação.
Quais foram os problemas, então?
Por
volta de 2005 viu se que o governo não tinha um projeto claro de
sociedade, e nem de educação. Se constituiu mais um projeto de poder, do
que um diálogo com a sociedade. Aí começam, inclusive, as cisões dentro
do próprio PT. Olhando hoje para trás, o capital com as forças que são
donas dos instrumentos de produção quando viram o Lula assumindo o
governo com aquela base social acendeu um sinal vermelho. Por isso se
organizou na sua divergência e prioridade como classe, e no campo da
educação surgiram duas frentes que acabaram dominantes e pautaram a
educação a partir de 2006 no Ministério da Educação e nos estados e
municípios. O Todos Pela Educação em 2005, que é incorporado no PDE em
2006, com um grupo de 14 empresários como financiadores e mais 18
colaboradores, que são na verdade os vampiros que querem fazer da
educação um negócio ou direcionar qual o método, o currículo, etc. Antes
disso, em 2004, começou a surgir o movimento Escola Sem Partido. A
economia ia bem com até 6% do PIB e esses empresários ganharam muito
dinheiro, porque a transferência e distribuição de renda pelo salário
mínimo e pelas políticas sociais é uma margem muito pequena em relação
ao que se pagou de juros da dívida interna. Mas a partir de 2012,
especialmente no final do governo Dilma, a crise mundial do capital veio
forte no Brasil e essa classe organizada disse basta à transferência de
renda e políticas públicas. A partir de 2014 se cunhou isso com os
mortadelas, que são aqueles que só comiam mortadela e começaram a ser
incluídos, como os índios, quilombolas, mulheres, cotas, etc.
Quem são esses empresários, são das universidades e colégios particulares?
São
o setor industrial, bancos, meios de comunicação, tudo, e os institutos
como o Ayrton Senna, o Lemann e o Itaú, dentre outros. O reflexo disto é
o golpe, que se materializa também na educação. A face oculta da face
clara do golpe, que é o capital e seus aparelhos, como a mídia, o setor
jurídico, o parlamento, setores da polícia federal, são os grandes
braços do capital que executam o golpe. A face oculta é a criminalização
do PT, sobretudo com a expressão petralha, que na verdade é uma crítica
ao pensamento divergente. Como disse o Veríssimo numa crônica recente,
justiça social se tornou sinônimo de inimigo. O explícito disso é a PEC
241, que agora é 55 no Senado, é a conta: vai se cobrir o fígado da
classe trabalhadora e eliminar todas as políticas de avanços. Vão tirar
migalhas para pagar juros da dívida e fazer com que ano que vem noticiem
de novo que mais 11 mil brasileiros estão na lista dos maiores
milionários do mundo.
Na
educação temos o PL que trata da Escola Sem Partindo tentando
transformar em lei aquilo que era uma disputa: só é válido ensinar na
escola aquilo que é do partido, do mercado na verdade. Ninguém é imbecil
de achar que queremos uma escola de um partido como PSDB, PT, etc. Não,
a grande disputa é a questão da neutralidade: a escola tem que ensinar,
mas não educar. A interpretação que vale é a de acordo com os trâmites,
ou as visões da neutralidade científica que interessam ao mercado.
Então a Escola Sem Partido é uma guilhotina que se coloca de censura e
autocensura à análise: a ciência pelo que debate é política.
Na
maior parte das análises políticas e sociológicas dos livros, por
exemplo, nos caracterizam como uma nação européia. Mas aí outro
historiador vai dizer: cuidado porque de 1500 a 1850 a cada branco
europeu colonizador vieram seis negros, então na história da humanidade
somos uma nação mais africana. No fundo a concepção mercantil de
educação foi tomando a gestão da escola, depois o currículo, o método e
agora eles dizem “cala a boca professor” com a Escola Sem Partido. É uma
guilhotina, e com uma diferença radical da censura da ditadura civil e
militar nos anos 60: o dedo duro era conhecido e pago para dedurar o que
não devia ser dito nas aulas, mas hoje pode ser o meu colega, o meu
aluno, o pai do aluno ou o diretor da escola. Quebra-se absolutamente o
que é orgânico na relação pedagógica, que é a confiança.
Uma
contradição difícil de explicar é que quando nos referimos à educação
sempre aparecem nomes como Anísio Teixeira, Paulo Freire e Darcy
Ribeiro, dentre outros, que são pensadores com inúmeros livros
publicados mundo afora e condecorados em universidades em vários países.
Por que os que pensaram a educação de forma mais generosa e
democrática, são criticados pelo poder hegemônico e mal vistos no senso
comum no Brasil?
A
última vez que me informei, Paulo Freire já havia sido traduzido em 27
idiomas e a Pedagogia do Oprimido é um clássico. Darcy Ribeiro com o
Processo Civilizatório é outro clássico, assim como Anísio Teixeira,
Florestan Fernandes, dentre outros, como Celso Furtado noutro ângulo.
Essa contradição se explica pelo tipo de classe dominante que temos.
Para ela, reforma agrária era coisa comunista, por exemplo. Japão fez
reforma agrária! E a não reforma agrária significa hoje o entorno de
grandes cidades absolutamente inabitável com favelas e todos os
problemas. Isso é diferente das classes dominantes do capitalismo
central, como disse Florestan Fernandes, que fizeram uma revolução
burguesa mas garantiram primeiro a construção de uma nação e de direitos
mais universais com menos desigualdade.
Os autores que defendem a universalidade da educação, como Paulo Freire, que educar é ajudar a criança, o jovem ou o adulto a ler o mundo, a interpretar, a tornar-se sujeito, esse tipo de formação para a classe dominante brasileira é uma ofensa, um empecilho. Os próprios empresários e os intelectuais a eles vinculados, como o sociólogo [José] Pastore, falaram em apagão educacional se referindo a pequenos setores da economia que exigem trabalho complexo e não tem gente preparada para isso. Mas quem produziu esse apagão? E a própria imagem de apagão mostra a visão medíocre dessa classe, imaginando que você forma um profissional qualificado como se corrige um problema de falta de luz. Um apagão é momentâneo, mas o processo educativo é de larga duração. Na verdade é coerente, para a classe dominante não é contraditório. Como o sociólogo Francisco de Oliveira coloca muito bem: é uma sociedade que produz a miséria, e se alimenta dela.
E
manipulam, porque qualquer pensamento divergente é de comunista mas
Paulo Freire nunca foi comunista. Num debate da TV Cultura com um dos
fundadores da Escola Sem Partido, o Miguel Nagib, ele disse: esse
petista Paulo Freire, que escreveu os livros, etc. Até o âncora
corrigiu: mas olha, o Paulo Freire escreveu esses livros antes do PT
existir. É uma classe dominante anti nação, povo e direitos elementares
de morar, ter saúde, locomoção e educação. É uma classe de estigma
colonizador e escravocrata como poucas no mundo, que faz com que
cheguemos ao século XXI com 13 milhões de analfabetos e 9,5 milhões
dizendo que não estudam ou não trabalham. São esses os candidatos do
Degase e das prisões.
Um
fenômeno que vem em paralelo a esse processo é a ascensão de uma
juventude com uma nova consciência e ocupando as escolas em todo o
Brasil. Qual a origem disso?
Antes
gostaria de fazer uma ligação da PEC da Escola Sem Partido e a reforma
do ensino médio, que é uma interdição de 85% dos jovens que frequentam
escolas a terem um futuro. De criar uma base de conhecimento e valores
para se tornar sujeito ativo na sociedade. E também uma interdição para
que eles possam aspirar ao trabalho complexo, além de trazer três
retrocessos que existiram de pior na nossa história. Nos anos 30 a
reforma Capanema com a não equivalência do ramo industrial, de serviços e
agrícola para ter acesso à universidade, que foi corrigido em 1961: a
Lei 5.692 pega o que tem de pior da ditadura, que é a profissionalização
precoce. O Decreto 2.208 do FHC e Paulo Renato também traz a dualidade,
e agora liberando inclusive os professores da parte flexível da reforma
de não precisar de licenciatura. E a educação básica foi então
decretada por Medida Provisória por Ato Institucional, e o ensino médio
não faz mais parte. O Plano Nacional de Educação ficou escanteado, e
dessa virulência vem a mobilização dos jovens. Especialmente os
secundaristas, que entenderam essa relação entre a hostilidade econômica
e os seus futuros no mundo do trabalho. Sem uma boa escola não vão
competir para entrar numa universidade nem no mercado de trabalho.
O
jovem desde sempre é sensor, porque na adolescência ele catalisa e é
muito sensível à falsidade. Hoje tem muita manipulação, mas a própria
cisão de classe às vezes é rompida. Esse movimento Ocupa da educação
começa em torno de 2004 no Chile, é um movimento dos jovens que estão
querendo ter futuro e não uma vida provisória em suspenso. É um gérmen
importantíssimo para mostrar que as políticas e decisões tomadas são
contra o futuro dessa geração. Tem que haver um diálogo, porque sem ele
os jovens não aprendem com os acertos da geração adulta e não aprendem
com os seus erros. É preciso fazer essa aproximação ouvindo a partir da
agenda dos jovens, e o que é mais fantástico é a clareza dos
secundaristas de que eles não devem atingir o patrimônio público, manter
uma ordem e ter solidariedade. Tem diferenciações, mas tem lições
importantíssimas que nos dão esperança. Como diz o Florestan, são os
homens e mulheres em luta que fecham ou abrem o circuito da história.
Estão fechando um circuito da história negativo no Brasil, mas também
tem forças sinalizando que não será eterno. O grande ganho dessa
juventude é que ela não será mais a mesma.
Estão
acontecendo diversas atividades extracurriculares nessas ocupações, e
muitos dizem que é uma grande formação que não têm na sala de aula e um
aprendizado que vão levar para a vida inteira. Essa geração é um sinal
para um futuro de embate político e de conflitos?
São contextos muito diversos, a geração que foi ao embate na década de 80 foi educada na ditadura e era um momento de participação mais ampla da sociedade com a constituinte. Tinha um foco de sair de um circuito de extrema violência para uma democracia, e na década de 90 foi uma violência do neoliberalismo e um movimento mais institucional das associações científicas e culturais. Sem dúvida a juventude não se movimentou tanto, apesar de ter sido sempre disputada por partidos políticos, igreja, tráfico, mercado, etc. O movimento de agora é porque nesses 15 anos houve um processo com novos sujeitos emergindo. As ocupações não são de jovens de classe média, os secundaristas em sua maioria são classe popular: tem os segmentos de negros, mulheres, LGBT, tudo isso foi construído em políticas que permitiram voz e formação na sociedade. É o novo, por isso é um processo positivo das políticas de inclusão. Esse movimento tem um veio do aprendizado dos jovens da luta do Chile que foi extremamente bem sucedida, mas também por causa da particularidade do nosso processo histórico. Aqui o neoliberalismo chegou depois, e tivemos essa experiência de olhar para o andar debaixo ainda que com políticas mais assistenciais do que com reformas estruturais.
Quando
falamos em educação sempre remetemos às grandes cidades, mas no governo
do PT teve muita escola rural fechada. Como é essa questão da educação
pra dentrão do país?
Cada
vez mais a educação é considerada não como um direito social, mas como
um negócio. Por isso a ideia da educação como custo, e não como direito.
Por outro lado, para você pagar a dívida do país tem que ter criado a
responsabilidade fiscal. Todo um esforço do país é pago em juros de uma
dívida que é uma imoralidade, um crime. Então os municípios e estados
enxugam o custo, fecha a escola, mata uma cultura, tira o menino do seu
habitat, etc. Os movimentos sociais, especialmente os do campo, lutam
muito contra isso. O novo do ponto de vista de concepção pedagógica vem
daí, a pedagogia do MST, da via Campesina e outros movimentos diz que
não quer uma educação para o campo e nem pelo campo: querem uma educação
do campo. Existem sujeitos e conhecimentos, é desta particularidade que
temos de partir para um conhecimento que possa dar na cidade e no
campo. A política de esvaziamento do campo e fechamento de escolas vem
da ideia de que a educação não é um direito: é um serviço e, portanto,
tem que ser tratada por critérios de mercado. Ou seja, um processo de
crescente mercantilização dos direitos, mas há resistência.
E incomoda, porque bateram recentemente na porta da escola Florestan Fernandes, do MST.
Por
isso tentam marginalizar o pensamento divergente, e criticam esses
pensadores que ajudavam a pensar, a ver a nossa diversidade e os nossos
direitos. Isso é uma expressão dessa truculência do golpe, que vai tirar
e já está tirando direitos em todos os campos.
Com base nessa transição de governo, quais são os sinais do que virá pela frente?
O
cenário no médio prazo não é auspicioso. Ontem estava lendo uma
entrevista do prefeito de São Paulo, que é uma tendência no mundo de
culpar o Estado, da direita para a extrema direita. No Rio de Janeiro é o
fundamentalismo religioso, que torna Deus uma mercadoria, junto ao
fundamentalismo do mercado. A votação do Bolsonaro aqui é preocupante,
assim como a votação localizada do Crivella nas comunidades pobres onde
atua o pastor. Então o desenho, no médio e curto prazo, será de anos
duros. Mas a história não é linear: esses movimentos apontam que há
resistência, há acúmulo, forças. Porém, tenho ouvido muito que o campo
crítico deveria ter se organizado como o campo do capital, ao invés de
ficar debatendo o seus problemas e dividindo. Buscar um denominador
comum no pluralismo, de sorte que fomos surpreendidos. Ninguém com mais
de 60 anos que passou pela ditadura vai te dizer que se podia imaginar
chegar a 2016 com esse cenário, por mais grave que fosse a crise. Para
renascer das cinzas, a primeira coisa é fazer esse inventário como
estamos tentando aqui.
Um
fator interessante é que essa geração não previa, e também não entende
essa nova geração. Os jovens chegam com uma nova dinâmica organizativa,
de forma mais horizontal, e não dialogam tanto com os partidos e
movimentos.
Porque
os partidos tais como estão, inclusive isso foi um dos erros do PT, não
pensam mais em sociedade e sim no mandato. Partido vira lugar de
emprego, e não de representação da sociedade. Há um descrédito nos
partidos, e isso é muito ruim. Os sindicatos idem, se encastelaram muito
e se formou um emprego. É difícil fazer generalizações, mas também
esqueceram em boa medida a sociedade. Há um descrédito na política, e
por outro lado isso dificulta o diálogo de gerações. Mas não vai haver
mudança sem organização: precisamos do sindicato, dos partidos e do
Estado, mas não desse. Precisamos de um regramento jurídico, e os jovens
contestam isso, assim como contestam a própria escola. O aluno não
gosta da escola porque ela não é escola, é um espaço pouco educativo,
não tem salas legais, o professor não tem tempo, não tem biblioteca nem
espaço para lazer ou cultura. Como diz Miguel Arroyo, mais escola dessa
escola que horror.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/-Cada-vez-mais-a-educacao-e-um-negocio-/13/37395)
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