Símbolo da resistência à ditadura, dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, morreu nesta quarta-feira 14 aos 95 anos.
A reportagem foi publicada por CartaCapital, 14-12-2016.
O estado de saúde do cardeal se agravou na segunda-feira 12. O
arcebispo emérito foi internado no Hospital Santa Catarina em 28 de
novembro, com um quadro de broncopneumonia. A assessoria do hospital
informa que dom Paulo morreu às 11h45, em decorrência de falência
múltipla dos órgãos.
De formação e hábitos franciscanos, dom Paulo é um
missionário que dedicou sua vida à defesa dos pobres e à justiça social.
A denúncia da tortura e da perseguição política durante a ditadura está
diretamente relacionada à sua pregação religiosa
Em 1966, dom Paulo tornou-se bispo em um momento de renovação na Igreja Católica. Quatro anos antes, o então papa João XXIII deu início ao Concílio Vaticano II,
que buscava redefinir o papel da religião na sociedade, com foco em uma
nova orientação pastoral voltada para a resolução dos problemas sociais
e econômicos. No Brasil, a cartilha ganhou força após a Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em 1968 em Medellín, na Colômbia.
As reuniões foram fundamentais para o desenvolvimento da Teologia da Libertação, preocupada prioritariamente com a promoção da justiça social, e para a consolidação das Comunidades Eclesiais de Base,
que buscavam substituir a supremacia das paróquias na organização da
vida religiosa pela valorização de comunidades menores, com a presença
tanto de integrantes da Igreja quanto de leigos. Atento à renovação, dom Paulo abraçou a nova doutrina e o modelo descentralizado de comunidades.
Dom Paulo tornou-se arcebispo de São Paulo em um momento crucial. Em
1969, um grupo de dominicanos foi preso pelo delegado Sérgio Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social, sob acusação de manter laços com a Ação Libertadora Nacional, organização de luta armada comandada por Carlos Marighella.
Uma das lideranças dominicanas, Frei Tito foi brutalmente torturado. À época, dom Agnelo Rossi, então arcebispo paulista, preferiu não interceder em favor dos presos. A repercussão dos relatos de Tito publicados na Europa levou o então papa Paulo VI a substituir Rossi por dom Paulo no comando da Arquidiocese.
Pouco após assumir o cargo, dom Paulo não se omitiu ao tomar conhecimento da prisão do padre Giulio Vicini e da assistente social leiga Yara Spaldini pelo Departamento de Ordem Política e Social em 1971. O sacerdote foi pessoalmente ao Deops e testemunhou as agressões físicas sofridas por seus colaboradores.
No ano seguinte, por iniciativa de dom Paulo, a Assembleia da CNBB publicou o Documento de Brodósqui,
um relatório que denunciava as prisões arbitrárias, a tortura e o
desaparecimento de perseguidos políticos após a aprovação do Ato
Institucional nº 5.
A partir de 1973, o arcebispo passou a celebrar missas com forte
conteúdo político. O assassinato pelos militares do líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme, da ALN,
foi respondido com uma missa-protesto na Catedral da Sé para contestar a
versão oficial apresentada pela ditadura para sua morte, segundo a qual
o estudante teria sido vítima de um atropelamento.
Em 1975, o arcebispo organizou um ato inter-religioso em homenagem a Valdimir Herzog,
torturado e assassinado pelos militares. A cerimônia serviu também para
manifestar repúdio à versão de que o jornalista teria cometido
suicídio.
Além da resistência aos militares, Dom Paulo foi fundamental para a consolidação das Comunidades Eclesiais de Base,
que buscavam substituir a supremacia das paróquias na organização da
vida religiosa pela valorização de comunidades menores, com a presença
tanto de integrantes da Igreja quanto de leigos.
Segundo Leonardo Boff, expoente da Teologia da Libertação, D. Paulo
não enxergava as comunidades como uma simples frente de pastoral ou um
prolongamento da paróquia em meios pobres. O objetivo era valorizar
tanto as bases sociais como a participação dos leigos. “Dom Paulo
animava-os a decidirem os caminhos da Igreja e aceitava suas sugestões.”
Para reforçar o aspecto pedagógico das comunidades, lembra Boff, o arcebispo convidou o pedagogo Paulo Freire para
acompanhar as atividades na periferia. “Além de sua dimensão
especificamente religiosa, as comunidades de base eram centros de
conscientização, de resistência contra a ditadura e de construção da
cidadania”, afirma. A articulação das comunidades é, por sinal, um dos
pontos de partida para a fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980.
Boff tem muito a agradecer a dom Paulo. O cardeal foi professor do teólogo em Petrópolis e o ajudou a ingressar na Universidade de Munique. Em 1982, Boff foi alvo de um processo doutrinário na Congregação para a Doutrina da Fé, antiga Inquisição, por conta da publicação de seu livro Igreja: Carisma e Poder, crítico às instituições católicas tradicionais. O interrogatório foi conduzido pelo então cardeal Joseph Ratzinger, que mais tarde se tornaria o papa Bento XVI.
Dom Paulo acompanhou Boff a Roma para defendê-lo no processo. “Ao lado do cardeal Aloysio Lorscheider, ele argumentou a Ratzinger:
‘Damos nosso testemunho de pastores de que se trata de uma teologia
edificante e boa para a Igreja’”, lembra o ex-aluno do arcebispo
emérito.
Dom Paulo convidou ainda o cardeal a “visitar as comunidades eclesiais no Brasil e rezar com o povo”. Em seguida, negociou que Boff e seu irmão apresentassem um documento à congregação para ressaltar a importância da Teologia da Libertação.
Após o fim da ditadura, dom Paulo seguiu no comando
da Arquidiocese paulista até 1998, quando renunciou por limite de idade e
tornou-se arcebispo emérito. Nos últimos anos, seu estado de saúde
piorou, mas não o suficiente para impedi-lo de comparecer a homenagens.
Em julho, uma missa na catedral da Sé celebrou os 50 anos de sua
ordenação episcopal. Em outubro, comemorou-se os 95 anos do arcebispo
emérito em evento no Teatro da Universidade Católica (Tuca), na PUC-SP.
Ao lembrarem a enorme contribuição do franciscano em seus anos à frente da Arquidiocese, os convidados presentes ao Tuca usaram o espaço para criticar as medidas impopulares defendidas pelo governo de Michel Temer.
Com dificuldades de se expressar por conta da idade avançada, dom Paulo esforçou-se para homenagear Santo Dias, ativista sindical assassinado no fim da ditadura, e fez questão de usar o boné do MST
entregue pelos militantes presentes ao Tuca.Um de seus principais
aliados no período como arcebispo da capital paulista, o bispo Dom Angélico Sândalo Bernardino afirmou que a resistência de dom Paulo à ditadura é uma inspiração para o atual momento.
"Ele é descendente de alemão, mas o rosto dele é da periferia de São Paulo. Quando imagino dom Paulo,
eu o imagino com o cheiro do povo, misturado com os bispos, padres,
religiosos, leigos e leigas, anunciando a urgência de resistirmos contra
toda a mentira. Naquele tempo, a luta era contra a ditadura
civil-militar, mas a resistência a que ele nos convida deve ser
permanente no Brasil atual também."
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/563405-dom-paulo-evaristo-arns-simbolo-da-luta-contra-a-ditadura)
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