Por Jaime Pinsky, historiador e editor, doutor e livre docente da USP, professor titular da Unicamp.
Com
mais de 200 países espalhados pelo mundo tem gente que ainda acredita
que uma nação se cria por decreto. Que qualquer maluco morando no meio
de um continente cria, do nada, o Umbigustão e exige assento na ONU, com
direito a voto e tudo o mais. Não é bem assim. Uma nação se cria a
partir de três elementos: um povo, um território e um mito. Sei, logo um
espertinho vai lembrar que o povo judeu não teve território próprio por
20 séculos, que os ciganos não têm até agora, que curdos vivem
divididos entre o Iraque, o Irã e a Turquia, sem ter poder político em
lugar algum, etc. Então vai a ressalva: como regra geral o território é
condição essencial para um povo dispor de um Estado. Mas sem povo e sem
mito não há Estado.
Mito?
Do que estamos falando? Vamos com calma e chegaremos lá. Para início de
conversa é bom lembrar que estados nacionais são coisa recente: a
maioria deles não tem mais do que 200 anos. Claro que (olha o mito!)
ninguém se conforma com uma idade tão nova, razão pela qual buscam
envelhecer procurando pistas de existência pretérita. O Iraque, por
exemplo, quando sob o jugo de Saddam Hussein, afirmava existir desde o
tempo dos sumérios, como se tivesse havido uma continuidade cultural de 4
mil anos na região. Não por acaso, Hussein chamava uma de suas unidades
blindadas de Divisão Hamurabi… O único detalhe é que não se tratava do
mesmo povo, nem da mesma língua, nem religião, nem costumes, nem nada do
tempo de Hamurabi, mas idade provecta, para o ditador, era sinal de
legitimidade.
Hitler
fez o mesmo. Inventou que supostos arianos tinham sido os grandes de
todos os tempos: na Pérsia, na Índia, em Roma e na Alemanha, é claro.
Concluiu que a superioridade dessa raça (ariano era raça para esse
criminoso) deveria ser preservada de eventuais cruzamentos com eslavos,
negros e principalmente judeus. Que havia uma continuidade desde os
tempos ancestrais (como teria mostrado Wagner em suas óperas) e que o
Estado dirigido por ele tinha legitimidade biológica, portanto
histórica. Muito pirado? Não o suficiente para convencer boa parte da
população alemã. O nacionalismo é um perigo…
Mito
também é aquele que foi engendrado no Brasil, segundo o qual somos uma
mistura homogênea de três raças, a branca, a vermelha e a negra. Nas
carteiras dos grupos escolares, ouvíamos historinhas à la José de
Alencar sobre indígenas orgulhosos, negros habilidosos e brancos
empreendedores juntando-se para, em luta contra os holandeses em 1654,
forjar nossa identidade. A ideia de uma nação brasileira em meados do
século XVII é tão inconsistente quanto a da identidade iraquiana em
tempos dos sumérios. A elaboração dessa ideia nacional, apimentada com o
fracasso do sacrifício de Tiradentes mais de um século depois e
temperado com a incrível história do rei pai que promove a independência
e depois se manda para Portugal para garantir o trono para o rei filho é
fruto de períodos bem posteriores.
No
Brasil tivemos uma desvantagem. Enquanto em nações como a França, a
Inglaterra e até os EUA a necessidade do estabelecimento de um Estado
nacional decorreu do desenvolvimento das forças produtivas e da criação
de uma consciência nacional, no Brasil, o Estado nacional, como tantas
outras coisas, foi criado por decreto. O chamado grito do Ipiranga não
significou absolutamente nada para a maioria esmagadora da população do
território. Nem para os escravos, nem para os índios, nem para a
população do campo, talvez apenas para uma parte pequena e letrada (e
proprietária) de moradores de cidades, uma parte ínfima de Brasil.
Criado
por decreto em 1822 o Estado brasileiro não “pegou”. Continuamos sem
autonomia, substituímos Portugal pela Inglaterra, índios continuaram
sendo invadidos e barbarizados, escravos continuaram sendo trazidos para
trabalhar no eito, marginalizados continuaram à margem. A elite
continuou arrogante, traço não muito difícil de perceber até hoje. Para
sobreviver, o povão aprendeu a ser dissimulado, traço também tristemente
evidente. A população não se sente representada por seus
representantes, o poder político tem sido o melhor caminho para a
corrupção, ninguém abre mão dos seus privilégios e os sonegadores
apresentam tudo isso como álibi para não contribuir para o bem comum.
Será que agora, finalmente, a Nação se apropriará do Estado?
Nenhum comentário:
Postar um comentário