Os avanços em tecnologia, genética e inteligência artificial podem transformar a desigualdade econômica em desigualdade biológica? O autor e historiador Yuval Noah Harari se fez essa pergunta.
Professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém, ele
estuda o passado para olhar para o futuro. Autor de dois best-sellers, Sapiens: Uma breve história da humanidade (editora L&PM)e Homo Deus: Uma breve história do amanhã (editora Companhia das Letras), Harari foi entrevistado pelo programa The Inquiry, da BBC, 06-05-2017, sobre a possibilidade de a tecnologia alterar o mundo e a espécie humana.
Eis o depoimento.
"A desigualdade existe há no mínimo 30 mil anos. Os
caçadores-coletores eram mais igualitários do que as sociedades
subsequentes. Eles tinham poucas propriedades, e propriedade é um
pré-requisito para desigualdade de longo prazo. Mas até eles tinham
hierarquias. Nos séculos 19 e 20, porém, algo mudou. Igualdade tornou-se
um valor dominante na cultura humana em quase todo o mundo. Por
quê? Foi em parte devido à ascensão de novas ideologias como o
humanismo, o liberalismo e o socialismo.
Mas também se tratava de mudanças tecnológicas e econômicas - que estavam ligadas a essas novas ideologias, claro.
De repente, a elite começou a precisar de um grande número de pessoas
saudáveis e educadas para servir como soldados nos exércitos e como
trabalhadores nas fábricas. Os governos não forneciam educação e
vacinação porque eram bondosos. Eles precisavam que as massas fossem
úteis. Mas agora isso está mudando novamente.
Os melhores exércitos da atualidade demandam poucos soldados, mas altamente treinados e com equipamentos de alta tecnologia.
As fábricas também estão cada vez mais automatizadas.
Esse é um dos motivos pelos quais poderemos - num futuro não tão
distante - ver a criação das sociedades mais desiguais que já existiram
na história humana. E há outros motivos para temer esse futuro.
Com rápidos avanços em biotecnologia e bioengenharia, nós podemos
chegar a um ponto em que, pela primeira vez na história, desigualdade
econômica se torne desigualdade biológica.
Até agora, humanos tinham controle sobre o mundo ao seu redor. Eles
podiam controlar rios, florestas, animais e plantas. Mas eles tinham
muito pouco controle do mundo dentro deles.
Eles tinham capacidade limitada de manipular seus próprios corpos,
cérebros e mentes. Eles não podiam evitar a morte. Talvez esse não seja
sempre o caso.
Há duas maneiras principais de aprimorar humanos: ou você altera algo em sua estrutura biológica por meio de alteração de seu DNA,
ou - o jeito mais radical - você combina partes orgânicas e
inorgânicas, talvez conectando diretamente cérebros e computadores.
Os ricos - ao adquirir tais melhorias biológicas - poderiam se tornar
literalmente melhores que os demais: mais inteligentes, saudáveis e com
vidas mais longas. Nesse ponto, será fácil que essa classe "aprimorada"
tenha poder. Pense desta forma: no passado, a nobreza tentou convencer
as massas que eles eram superiores a todos os outros e que deveriam
deter o poder. No futuro que estou descrevendo, eles realmente serão
superiores às massas.
E como eles serão melhores que nós, fará mais sentido ceder a eles o poder e a prerrogativa de tomada de decisões.
Podemos também constatar que a ascensão da inteligência artificial - e não apenas automação
- pode significar que grandes contingentes de pessoas, em todos os
tipos de emprego, simplesmente perderão sua utilidade econômica.
Os dois processos casados - aprimoramento humano e ascensão de
inteligência artificial - podem resultar na separação da humanidade em
uma pequena classe de super-humanos e uma gigantesca subclasse de
pessoas "inúteis".
Eis um exemplo concreto: pense no mercado de transporte.
Há centenas de motoristas de caminhões, táxis e ônibus no Reino
Unido. Cada um deles comanda uma pequena parte do mercado de transporte,
e todos ganham poder político em função disso. Eles podem se
sindicalizar e, se o governo faz algo que não gostam, eles podem fazer
uma greve e travar todo o sistema.
Agora, avance 30 anos no tempo. Todos os veículos conduzem a si
próprios e uma corporação controla o algoritmo que comanda todo o
mercado de transporte. Todo o poder econômico e político previamente
compartilhado por milhares agora está nas mãos de uma única corporação.
Depois que você perde sua importância econômica, o Estado perde ao
menos um pouco do incentivo de investir em saúde, educação e
bem-estar. Seu futuro dependeria da boa vontade de uma pequena elite.
Talvez haja boa vontade mas, em tempo de de crise - como uma catástrofe
climática -, seria muito fácil te descartar.
Tecnologia não é determinista. Ainda podemos fazer algo para lidar
com tudo isso. Mas acho que deveríamos estar cientes de que descrevo um
futuro possível. Se não gostamos dessa possibilidade, precisamos agir
antes que seja tarde.
Existe mais um passo possível no caminho rumo à desigualdade
previamente inimaginável. A curto prazo, a autoridade pode se centrar em
uma pequena elite que detenha e controle os algoritmos e os dados que os alimentam. A longo prazo, porém, a autoridade poderá se transferir completamente dos humanos aos algoritmos.
Quando uma inteligência artificial for mais inteligente que nós, toda a humanidade poderá se tornar inútil.
O que aconteceria depois disso? Não temos nenhuma ideia -
literalmente não podemos imaginar. Como poderíamos? Estamos falando de
uma inteligência muito maior do que a que a humanidade possui."
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/567378-tecnologia-pode-criar-elite-de-super-humanos-e-massa-de-inuteis-diz-autor-de-best-seller)
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