Uso de informações de crianças e jovens pela rede social mostram urgência da proteção dos dados pessoais, escreve Marina Pita, jornalista, membro do Intervozes, em artigo publicado por CartaCapital, 04-05-2017.
Eis o artigo.
Há cerca de dois anos, eu e minha família recebemos a notícia de que
minha mãe teria de enfrentar um tratamento para câncer. Dias depois de
ter recebido a notícia, resolvi compartilhar pelo WhatsApp, com uma amiga querida que estava longe, o estado de ansiedade e apreensão pelo qual passava.
No dia seguinte, um e-mail na minha caixa de entrada informava sobre
um remédio milagroso para a doença. Respirei fundo e apaguei.
Coincidência ou não, o fato que é que a informação de que o assunto
"câncer" estava no meu espectro de interesse poderia, sim, ser usada
para fins de publicidade. A fragilidade, a vulnerabilidade, a
insegurança, já descobriram os publicitários há alguns anos, são
importantes impulsionadores de vendas.
Agora, se o caso ocorreu já há dois anos, por que compartilhá-lo agora?
Porque um documento interno do Facebook, que acaba de ser vazado pelo jornal Australian,
revelou a capacidade da companhia de identificar quando um adolescente
ou um jovem trabalhador se sente “inseguro”, “inútil” e precisa de um
“impulso de autoestima” – tudo baseado num banco de dados de 1,9 milhão
de estudantes de Ensino Fundamental, 1,5 milhão do Ensino Médio e 3
milhões de jovens trabalhadores.
Quem acompanhou, no Dia Mundial da Saúde, os
diversos alertas sobre depressão e como a doença é hoje a principal
causa de problemas de saúde e invalidez no mundo, pode pensar: que
ótimo! Esta informação pode ser usada para gerar algum tipo de
acompanhamento, indicação de profissional, sugerir que o adolescente
busque ajuda.
Não. Veja bem.
O documento em que a maior rede social do mundo se gabava de poder monitorar posts e fotos
em tempo real para determinar quando um jovem se sente “estressado”,
“derrotado”, “ansioso”, “nervoso”, “estúpido”, “fracassado”, “idiota” ou
“um fracasso” era, na realidade, uma apresentação feita para um dos
maiores bancos da Austrália.
Isso mesmo, um banco.
Ou seja, a informação sobre a situação emocional de adolescentes e
jovens está sendo usada para fins econômicos, para o lucro de
corporações.
Neste sentido, o vazamento do documento do Facebook e
a exposição dos dados nele contidos não é apenas mais um alerta sobre a
capacidade de coleta e processamento de dados na era moderna. É um
importante indicador de que todo mundo precisa de privacidade se não
quiser que suas maiores vulnerabilidades sejam exploradas para o único
fim de vender.
Em um momento em que muitos alardeiam a era do fim da privacidade,
como se fosse algo trivial, em que se ouve a cada roda de conversa que
alguém não teme a coleta massiva de dados e a vigilância “porque não tem
nada a esconder”, talvez esta notícia faça com que todos passem a
entender que a privacidade não é importante apenas para os corruptos,
bandidos ou ditos subversivos, mas para que qualquer cidadão esteja
protegido do modelo de consumo atual: a qualquer custo, sem limites e
sem ética, ao qual todos estamos sujeitos.
É hora de pararmos para questionar as maravilhas que os sistemas de “Big Data”
farão pela humanidade, usando os nossos dados para nos entregar o que
há de mais perfeito para nossa personalidade ou para encontrar a origem
de nossas doenças, e começarmos a entender que uma sociedade orientada
para o lucro obviamente usará os recursos tecnológicos em vasta medida
para este único e exclusivo fim.
E isso é verdade, apesar do que dizem os “evangelistas” de
tecnologia, profissionais altamente qualificados, pagos por grande
empresas do setor de “coleta de dados e softwares de inteligência” para
apregoar, com apoio de potente máquina de influência de mídia, as
benesses que serão um dia obtidas com o modelo em que nós entregamos
nossas informações mais pessoais sem nem sequer entrar na lógica do
lucro e cobrar por isso.
Exploração comercial de crianças e adolescentes
O mais incrível é que a exploração de dados para
fins de lucro não encontra limites nem para com crianças e adolescentes,
que devem ser tratados como prioridade absoluta – como estabelece a
Constituição brasileira.
Pouco importa se pelo menos eles deveriam ser poupados de
determinadas práticas mercadológicas até que tenham maturidade para
compreender as implicações de terem seus dados disponíveis para as áreas
de publicidade e marketing (no mínimo) das companhias.
Além da sanha do mercado,
essa falta de limites está relacionada também com a fragilidade
regulatória sobre a coleta, processamento, uso e, claro, proteção de
dados pessoais. No Brasil, por exemplo, e apesar dos esforços de
diversas entidades, especialistas, acadêmicos e juristas (muitos deles
reunidos na Coalizão Direitos na Rede) de ver aprovada uma Lei de Proteção de Dados Pessoais, a agenda política do país e alguns interesses escusos têm impedido que o tema se torne prioridade no Congresso Nacional.
Pelo contrário, o que mais se vê são projetos de lei baseados na
violação da nossa privacidade para, supostamente, nos proteger dos males
contemporâneos.
Uma legislação adequada à proteção de dados dos cidadãos e cidadãs –
em especial, dos mais vulneráveis – é necessária e mais do que
bem-vinda. Mas o debate ainda encontra os limites na cultura, nas
tecnologias disponíveis e no conhecimento dos brasileiros sobre o
assunto.
Para tentar sustentar este outro pilar para a tão necessária garantia
do direito à privacidade e à autodeterminação em dados pessoais,
organizações como o Intervozes, Saravá, Actantes, Encripta Tudo e Escola de Ativismo
organizam anualmente um evento aberto para discutir, neste contexto de
coleta massiva de dados e vigilância constante por Estados e empresas,
temas como segurança, privacidade, criptografia, técnicas e soluções
tecnológicas para a proteção de cidadãos e organizações. Trata-se da CryptoRave.
A edição deste ano começa nesta sexta-feira, 5 de maio, e segue até o
sábado 6, às 19hs, na Casa do Povo, em São Paulo. Serão 24 horas
diretas de palestras, debates, oficinas, jogos e apresentações
artísticas para todos os perfis de pessoas – desde os mais geeks até o
cidadão comum, que acaba de descobrir que tem muito a perder se não
começar a se atentar para o tema.
Nosso lema deste ano é: "Dance como se ninguém estivesse olhando,
porque ninguém precisa de mais depressão no mundo. Mas criptografe,
porque todos estão”.
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/567315-facebook-negocia-dados-de-milhoes-de-jovens-emocionalmente-vulneraveis)
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