domingo, 8 de julho de 2018

Barbárie Social e Cultural



Antônio de Paiva Moura

            Barbárie é o mesmo que selvageria, crueldade, desumanidade e grosseria. É ação de extrema violência e contrária à civilização. Os gregos consideravam-se civilizados e os outros povos não gregos eram chamados de bárbaros. Os turcos e os persas eram considerados bárbaros. Os romanos empregaram o termo para se referir aos povos germânicos, celtas e iberos. A invasão ao Império Romano culminou com sua queda em 478 dC. O maior interesse dos invasores era o enriquecimento e daí lutas cruentas e impiedosas travadas durante toda a Idade Média. Tanto assim, que os euro-asiáticos que invadiram o ocidente europeu, os chamados Avaros eram temidos pela ganância e pela violência contra outros povos e pelo medo que eles tinham de perder suas posses. Essa qualidade dos Avaros ficou conhecida como avareza e tornou-se um dos sete pecados capitais. Portanto, barbarismo e avareza vêm da mesma situação e momento histórico.
            Nas guerras contra outros povos os europeus fizeram o mesmo e muito mais que os bárbaros, matando, saqueando com o apelido de guerra santa. Estando Francisco de Assis (futuro São Francisco) em missão religiosa no Norte do Egito, deparou-se com uma difícil situação: o rei de Jerusalém, João de Briene, havia ocupado a cidade de Damieta no Egito, em 1218. Francisco, juntamente com outros irmãos, foi ao encontro do Cardeal-Legado do papa, o ibérico Pélago Galvão, que queria expulsar do Egito o sultão mulçumano Melek-el-Kamil e aniquilar o poder maometano. Francisco tentou evitar o conflito, mas foi ameaçado pelo Cardeal Galvão. Dos 80.000 habitantes da cidade poucos ficaram vivos. Sua mesquita foi transformada em basílica de Nossa Senhora, onde o cardeal Galvão se dirigiu para distribuir os troféus da guerra. Para Francisco não havia guerra mais repugnante do que uma guerra santa. Todo o ideal religioso ficava asfixiado no meio de sangue e saque. Diz ele: É difícil imaginar como o povo cristão pode entoar um “Te Deum” e, logo depois, correr para fora da basílica, como uma tropa e saquear os mortos e os vencidos.
            A história mostra como as civilizações criaram meios de coibir os impulsos instintivos; colocar limites nas competições entre indivíduos e aplacar o desejo de morte entre os humanos. Mas isso redundou em cerceamento da liberdade; fez prevalecer a tirania e a opressão. É na própria civilização que surge o ideal democrático que evolui desde a Antiguidade até nossos dias. Basta dizer que na Antiguidade clássica a democracia era seletiva e só os senhores possuidores de bens patrimoniais tinham direito a votar, de ser votado e de representar o povo nos poderes constituídos. Na Idade Média Ocidental, os preceitos morais sustentaram os privilégios da nobreza feudal e do clero católico. Somente a partir da Revolução Francesa (1792) é que a democracia é interpretada em sentido lato incluindo a busca do bem estar de toda a população, liberdade, igualdade e fraternidade, levando a consolidar o Estado Democrático de Direito. Essa aspiração é que caracteriza o moderno ideal de civilização.
            A democracia é oriunda de mobilizações populares e nada deve ao liberalismo econômico. As grandes conquistas democráticas e sociais foram com lutas pacíficas e cruentas. Redução de jornada de trabalho custou inúmeras vidas de homens e mulheres; direito a férias anuais; descanso semanal remunerado; emancipação progressiva da mulher; proteção às crianças e outros benefícios. Nada disso foi uma concessão humanitária da classe proprietária dos meios de produção, mas fruto de lutas, com a força das massas trabalhadoras. O direito de greve não é uma dádiva do capitalismo, mas a força do trabalhador assalariado que o fez ser exarado em leis e constituições.            
             Após a segunda guerra mundial, na segunda metade do século XX, as conquistas democráticas andaram juntas com o progresso social. A ONU e a UNESCO combateram os preconceitos étnicos e de classes; machismo e violência contra a mulher e procuram defender as culturas nacionais contra os interesses imperialistas. A par dos organismos internacionais notabilizaram-se lideres e pensadores mundiais a exemplo de Mahatma Gandhi que inspirou gerações de ativistas democráticos e anti-racistas, entre os quais Martin Luther King; Nelson Mandela e o Bispo Desmond Tutu na África do Sul; o papa João XXIII; o artista Charles Chaplin, e o dramaturgo alemão, Bertholt Brecht; os filósofos franceses, Jean-Paul Sartre e Simone Beauvoir.  Houve alteração na regulamentação do trabalho assalariado e acentuado progresso social. No mundo inteiro foram criados organismo e campanhas em defesa do meio ambiente. Merece lembrança a figura de Chico Mendes (1944-1988) na Amazônia, em sua luta contra a voracidade dos fazendeiros destruidores da natureza. A mando destes foi assassinado em 1988, mas tornou-se conhecido e reverenciado universalmente.
            Segundo o filósofo e historiador italiano Gianbattista Vico (1668-1744) a quebra do padrão cultural ou da racionalidade, em uma determinada sociedade redunda em prejuízo à civilização e uma volta à barbárie. Para ele, a Idade Média e a forma como foi colonizada a América Latina, foram voltas à barbárie. Isso se aplica no exame da forma como as potencias econômicas atuam em países como menor poder, mas dotados de enormes reservas naturais, como os países da América Latina, a partir do final do século XX.
            Recentemente um grupo de pesquisadores do Fundo Monetário Internacional FMI, composto pelos cientistas Jonathan Osttry, Prakash Lougani e David Furceri, faz racional e oportuna crítica ao Neoliberalismo. Para esse grupo, a desregulamentação excessiva vem causando crises no sistema econômico mundial, permitindo a invasão dos mercados regionais por investidores externos. Nas grandes cidades as redes de supermercado, serviços bancários, telecomunicações e grandes empreendimentos industriais são regidos por investidores externos. As remessas de lucros ao exterior são sangrias que deixam as economias regionais anêmicas. (ROSSI, 2016) As imposições do Neoliberalismo geraram a recessão que teve início em 2008.
As privatizações acabaram por provocar uma desorganização no quadro de trabalho, com perdas na quantidade de empregos e queda no valor das remunerações. Pequenos investidores foram substituídos por poucos e grandes acionistas. Aumento exorbitante da concentração de riquezas. A flexibilização das relações trabalhistas fez diminuir a renda das famílias e aumentar o tempo de trabalho. A migração de empresas para as regiões onde prevalecem relações mais favoráveis na produtividade, mão de obra e matéria prima de baixo custo; desqualificação e eliminação de trabalhadores impostas pelo avanço das tecnologias da informação na indústria e serviços provocam aumento na taxa de desemprego e diminuição da circulação monetária.
A luta pela posse de bens materiais e de valores monetários sempre foi muito violenta. A pirataria de assalto a navios foi praticada desde os gregos contra os fenícios até o século XVIII em que os piratas ingleses assaltavam navios espanhóis no Mar do Caribe, levando tesouros extraídos na América latina. Na atualidade, com a dificuldade de adquirir dinheiros por meios lícitos, associada à ganância dos grandes possuidores em aumentar infinitamente seus patrimônios, as ações violentas pela obtenção do dinheiro superam as leis e o ideal de civilização. As organizações clandestinas ligadas ao tráfico de droga e a bandidagem, de um modo geral, é o que se pode chamar de barbárie.
O que mais caracteriza uma barbárie é a manutenção de privilégios da classe dominante enquanto empobrece o restante da população. Recentemente foi divulgado um estudo do Instituto de Economia da Fundação Getúlio Vargas, revelando que em 2017, o Brasil promoveu à condição de milionários cerca de 7000 pessoas físicas. Os mais afortunados tiveram um crescimento na ordem de 11%, enquanto a população ativa, assalariada e autônoma teve uma queda em rendimento em 5%, o que redunda em 16% de diferença em um ano. Uma das primeiras consequências dessa disparidade foi a evasão escolar do ensino particular, por falta de condição de pagamento. Com o aumento dos preços dos planos de saúde, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar ANS, cerca de um milhão e trezentos mil brasileiros deixaram de ter plano de saúde em 2017.  
            A degradação é também na área cultural. Na análise do ensaísta norueguês Robert Kurz (1943-2012) na pós-modernidade a política perdeu o sentido e foi rebaixada a uma esfera secundária, subordinada à economia. A crítica social se refugia na cultura porque a produção cultural passou a ser essencialmente objeto de mercado. Os produtores de cultura submeteram-se ao capital na condição de servidores. Os mega eventos em logradouros públicos e estádio esportivo tornaram-se cada vez mais o lugar dos eventos em salas porque eles oportunizam permanentes consumos de produtos não artísticos, a exemplo da passagem de ano no Rio de Janeiro, carnaval na Bahia, Rock in Rio e outros grandes eventos. Tudo tem que dar lucro, aos promotores de evento, aos hoteleiros, aos serviços de transportes, produtores de alimentos, bebidas e drogas. Os artistas ficam com a menor parte. O resultado tem sido a destruição do conteúdo qualitativo da cultura. A arte tornou-se um produto efêmero que se perde ao ser usado. Tudo que é durável perdeu valor. A historiografia, o passado, os Museus, institutos históricos e geográficos, academias de letras, institutos de defesa do patrimônio histórico e entidades de estudos e defesa da cultura popular tradicional. O que não produz para o mercado morre. Até as religiões já usam a arte como marketing, a exemplo da música gospel e shows sertanejos nas festas religiosas. A subjetividade da arte cedeu lugar à objetividade do lucro.

Referências
KURZ, Robert.  Cultura degradada. Tradução de José Marcos Macedo. Folha de São Paulo, Suplemento “Mais”, São Paulo, 15 de março de 1998.

ROSSI, Clovis. Neoliberalismo em xeque. Folha de São Paulo, São Paulo, 02 jun. 2016.

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