Antônio
de Paiva Moura
Barbárie é o mesmo que selvageria,
crueldade, desumanidade e grosseria. É ação de extrema violência e contrária à
civilização. Os gregos consideravam-se civilizados e os outros povos não gregos
eram chamados de bárbaros. Os turcos e os persas eram considerados bárbaros. Os
romanos empregaram o termo para se referir aos povos germânicos, celtas e
iberos. A invasão ao Império Romano culminou com sua queda em 478 dC. O maior
interesse dos invasores era o enriquecimento e daí lutas cruentas e impiedosas
travadas durante toda a Idade Média. Tanto assim, que os euro-asiáticos que
invadiram o ocidente europeu, os chamados Avaros eram temidos pela ganância e
pela violência contra outros povos e pelo medo que eles tinham de perder suas
posses. Essa qualidade dos Avaros ficou conhecida como avareza e tornou-se um
dos sete pecados capitais. Portanto, barbarismo e avareza vêm da mesma situação
e momento histórico.
Nas guerras contra outros povos os
europeus fizeram o mesmo e muito mais que os bárbaros, matando, saqueando com o
apelido de guerra santa. Estando Francisco de Assis (futuro São Francisco) em
missão religiosa no Norte do Egito, deparou-se com uma difícil situação: o rei
de Jerusalém, João de Briene, havia ocupado a cidade de Damieta no Egito, em
1218. Francisco, juntamente com outros irmãos, foi ao encontro do
Cardeal-Legado do papa, o ibérico Pélago Galvão, que queria expulsar do Egito o
sultão mulçumano Melek-el-Kamil e aniquilar o poder maometano. Francisco tentou
evitar o conflito, mas foi ameaçado pelo Cardeal Galvão. Dos 80.000 habitantes
da cidade poucos ficaram vivos. Sua mesquita foi transformada em basílica de
Nossa Senhora, onde o cardeal Galvão se dirigiu para distribuir os troféus da
guerra. Para Francisco não havia guerra mais repugnante do que uma guerra
santa. Todo o ideal religioso ficava asfixiado no meio de sangue e saque. Diz
ele: É difícil imaginar como o povo cristão pode entoar um “Te Deum” e, logo
depois, correr para fora da basílica, como uma tropa e saquear os mortos e os
vencidos.
A
história mostra como as civilizações criaram meios de coibir os impulsos
instintivos; colocar limites nas competições entre indivíduos e aplacar o
desejo de morte entre os humanos. Mas isso redundou em cerceamento da
liberdade; fez prevalecer a tirania e a opressão. É na própria civilização que
surge o ideal democrático que evolui desde a Antiguidade até nossos dias. Basta
dizer que na Antiguidade clássica a democracia era seletiva e só os senhores
possuidores de bens patrimoniais tinham direito a votar, de ser votado e de
representar o povo nos poderes constituídos. Na Idade Média Ocidental, os
preceitos morais sustentaram os privilégios da nobreza feudal e do clero
católico. Somente a partir da Revolução Francesa (1792) é que a democracia é
interpretada em sentido lato incluindo a busca do bem estar de toda a população,
liberdade, igualdade e fraternidade, levando a consolidar o Estado Democrático
de Direito. Essa aspiração é que caracteriza o moderno ideal de civilização.
A
democracia é oriunda de mobilizações populares e nada deve ao liberalismo
econômico. As grandes conquistas democráticas e sociais foram com lutas
pacíficas e cruentas. Redução de jornada de trabalho custou inúmeras vidas de
homens e mulheres; direito a férias anuais; descanso semanal remunerado;
emancipação progressiva da mulher; proteção às crianças e outros benefícios.
Nada disso foi uma concessão humanitária da classe proprietária dos meios de
produção, mas fruto de lutas, com a força das massas trabalhadoras. O direito
de greve não é uma dádiva do capitalismo, mas a força do trabalhador
assalariado que o fez ser exarado em leis e constituições.
Após a segunda guerra mundial, na
segunda metade do século XX, as conquistas democráticas andaram juntas com o
progresso social. A ONU e a UNESCO combateram os preconceitos étnicos e de
classes; machismo e violência contra a mulher e procuram defender as culturas
nacionais contra os interesses imperialistas. A par dos organismos
internacionais notabilizaram-se lideres e pensadores mundiais a exemplo de
Mahatma Gandhi que inspirou gerações de ativistas democráticos e anti-racistas,
entre os quais Martin Luther King; Nelson Mandela e o Bispo Desmond Tutu na
África do Sul; o papa João XXIII; o artista Charles Chaplin, e o dramaturgo
alemão, Bertholt Brecht; os filósofos franceses, Jean-Paul Sartre e Simone
Beauvoir. Houve alteração na
regulamentação do trabalho assalariado e acentuado progresso social. No mundo
inteiro foram criados organismo e campanhas em defesa do meio ambiente. Merece
lembrança a figura de Chico Mendes (1944-1988) na Amazônia, em sua luta contra
a voracidade dos fazendeiros destruidores da natureza. A mando destes foi
assassinado em 1988, mas tornou-se conhecido e reverenciado universalmente.
Segundo o filósofo e historiador
italiano Gianbattista Vico (1668-1744) a quebra do padrão cultural ou da
racionalidade, em uma determinada sociedade redunda em prejuízo à civilização e
uma volta à barbárie. Para ele, a Idade Média e a forma como foi colonizada a
América Latina, foram voltas à barbárie. Isso se aplica no exame da forma como
as potencias econômicas atuam em países como menor poder, mas dotados de
enormes reservas naturais, como os países da América Latina, a partir do final
do século XX.
Recentemente um grupo de
pesquisadores do Fundo Monetário Internacional FMI, composto pelos cientistas
Jonathan Osttry, Prakash Lougani e David Furceri, faz racional e oportuna
crítica ao Neoliberalismo. Para esse grupo, a desregulamentação excessiva vem
causando crises no sistema econômico mundial, permitindo a invasão dos mercados
regionais por investidores externos. Nas grandes cidades as redes de
supermercado, serviços bancários, telecomunicações e grandes empreendimentos
industriais são regidos por investidores externos. As remessas de lucros ao
exterior são sangrias que deixam as economias regionais anêmicas. (ROSSI, 2016)
As imposições do Neoliberalismo geraram a recessão que teve início em 2008.
As privatizações acabaram por provocar
uma desorganização no quadro de trabalho, com perdas na quantidade de empregos
e queda no valor das remunerações. Pequenos investidores foram substituídos por
poucos e grandes acionistas. Aumento exorbitante da concentração de riquezas. A
flexibilização das relações trabalhistas fez diminuir a renda das famílias e
aumentar o tempo de trabalho. A migração de empresas para as regiões onde
prevalecem relações mais favoráveis na produtividade, mão de obra e matéria
prima de baixo custo; desqualificação e eliminação de trabalhadores impostas
pelo avanço das tecnologias da informação na indústria e serviços provocam
aumento na taxa de desemprego e diminuição da circulação monetária.
A luta pela posse de bens materiais e de
valores monetários sempre foi muito violenta. A pirataria de assalto a navios
foi praticada desde os gregos contra os fenícios até o século XVIII em que os piratas
ingleses assaltavam navios espanhóis no Mar do Caribe, levando tesouros
extraídos na América latina. Na atualidade, com a dificuldade de adquirir
dinheiros por meios lícitos, associada à ganância dos grandes possuidores em
aumentar infinitamente seus patrimônios, as ações violentas pela obtenção do
dinheiro superam as leis e o ideal de civilização. As organizações clandestinas
ligadas ao tráfico de droga e a bandidagem, de um modo geral, é o que se pode
chamar de barbárie.
O que mais caracteriza uma barbárie é a
manutenção de privilégios da classe dominante enquanto empobrece o restante da população.
Recentemente foi divulgado um estudo do Instituto de Economia da Fundação
Getúlio Vargas, revelando que em 2017, o Brasil promoveu à condição de
milionários cerca de 7000 pessoas físicas. Os mais afortunados tiveram um
crescimento na ordem de 11%, enquanto a população ativa, assalariada e autônoma
teve uma queda em rendimento em 5%, o que redunda em 16% de diferença em um
ano. Uma das primeiras consequências dessa disparidade foi a evasão escolar do
ensino particular, por falta de condição de pagamento. Com o aumento dos preços
dos planos de saúde, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar ANS, cerca
de um milhão e trezentos mil brasileiros deixaram de ter plano de saúde em
2017.
A
degradação é também na área cultural. Na análise do ensaísta norueguês Robert Kurz
(1943-2012) na pós-modernidade a política perdeu o sentido e foi rebaixada a
uma esfera secundária, subordinada à economia. A crítica social se refugia na
cultura porque a produção cultural passou a ser essencialmente objeto de mercado.
Os produtores de cultura submeteram-se ao capital na condição de servidores. Os
mega eventos em logradouros públicos e estádio esportivo tornaram-se cada vez
mais o lugar dos eventos em salas porque eles oportunizam permanentes consumos
de produtos não artísticos, a exemplo da passagem de ano no Rio de Janeiro, carnaval
na Bahia, Rock in Rio e outros grandes eventos. Tudo tem que dar lucro, aos
promotores de evento, aos hoteleiros, aos serviços de transportes, produtores
de alimentos, bebidas e drogas. Os artistas ficam com a menor parte. O
resultado tem sido a destruição do conteúdo qualitativo da cultura. A arte
tornou-se um produto efêmero que se perde ao ser usado. Tudo que é durável
perdeu valor. A historiografia, o passado, os Museus, institutos históricos e
geográficos, academias de letras, institutos de defesa do patrimônio histórico
e entidades de estudos e defesa da cultura popular tradicional. O que não
produz para o mercado morre. Até as religiões já usam a arte como marketing, a
exemplo da música gospel e shows sertanejos nas festas religiosas. A
subjetividade da arte cedeu lugar à objetividade do lucro.
Referências
KURZ, Robert. Cultura degradada. Tradução de José
Marcos Macedo. Folha de São Paulo, Suplemento “Mais”, São Paulo, 15 de março de
1998.
ROSSI,
Clovis. Neoliberalismo em xeque.
Folha de São Paulo, São Paulo, 02 jun. 2016.
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