Por Jorge Elbaum
A desordem mundial planteada pela globalização neoliberal protecionista
mostrou na última semana dois de seus sintomas de crueldade, pondo em
evidência a maior crise humanitária desde a II Guerra Mundial. Segundo
Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), existem na
atualidade 65 milhões de deslocados pelas guerras, invasões militares,
pela fome, pela desertificação e pelos conflitos étnico-religiosos,
registro que parece não incomodar as grandes potências, ainda que se
disponham a realizar conferências internacionais para abordar essas
tragédias, mas sem mostrar resultados aceitáveis, e muito menos ações
para solucionar os problemas.
Em 2015, as publicações do mundo
replicaram a foto de Aylan Kurdi, o menino sírio de três anos falecido
numa praia turca. Aylan vivia em Kobane, uma cidade no norte da Síria
onde o denominado Estado Islâmico enfrentava os combatentes curdos.
Devido aos perigos dos bombardeios e perseguições, a família de Aylan
decidiu escapar. Esta semana, Yanele Dennisse Varela Sánchez, uma menina
hondurenha de três anos, foi fotografada e videogravada enquanto sua
mãe era presa ao tentar entrar nos Estados Unidos, no Texas.
A
desordem mundial imperante nos apresenta lúgubres fotos que sintetizam
uma descomunal tragédia da qual os países desenvolvidos são duplamente
responsáveis: por um lado, por participar de muitos dos conflitos que
provocam os grandes deslocamentos populacionais. E por outro ao não
assumir que um mundo crescentemente desigual provoca conflitos,
resistências, migrações e ressentimentos sociais explosivos.
As
migrações só vão ser reduzidas através de uma lógica de paz, de
cooperação, de redução dos conflitos e dos programas de desenvolvimento.
Os países que geram essas migrações são aqueles nos quais o que mais
circula são as armas, em conivência com empresas extrativas dispostas a
esvaziar a terra (com eficiência e rapidez) de qualquer riqueza útil.
Existem
três grandes “focos” de expulsão de habitantes no mundo, e nos três se
observam com claridade a participação dos países mais desenvolvidos: na
fronteira norte da América Latina há um conflito armado entre vários
exércitos privados, ligados a empresários do narcotráfico, que se
associam com vendedores de armas. Estes últimos – radicados nos Estados
Unidos e protegidos pela Associação do Rifle – oferecem o aparato bélico
em troca das drogas. Em fevereiro deste ano, o jornal The New York Times
informou que 213 milhões de armas “migraram” dos Estados Unidos à sua
fronteira do sul do país no último ano, permitindo a continuidade da
sangrenta pandemia criminosa que assola o país vizinho. Em 2017, se
registraram 30 mil homicídios no México, alcançando uma das médias mais
altas de assassinatos por quantidade de habitantes em toda a região.
O
segundo foco de onde tentam escapar centenas de milhares de pessoas é o
norte da África. Provêm de países subsaarianos e daqueles que – como no
caso da Líbia – tiveram suas redes estatais reduzidas à inexistência,
após os bombardeios e invasões militares “humanitárias” provocadas pelos
Estados Unidos e seus aliados europeus, a partir da chamada “primavera
árabe”. Além disso, houve guerras civis no Sudão e na Somália, marcadas
pela lógica fundamentalista cuja origem inicial foi o financiamento dado
pelo Ocidente para conter processos políticos nacionalistas, laicos e
progressistas. Grande parte do resultado destas intervenções
“civilizatórias” geraram a implosão de diversos Estados nacionais, sua
conseguinte fragmentação territorial e de suas capacidades
governamentais (em dissolução), além do fluxo de armas distribuídas
entre os grupos participantes das disputas.
O terceiro foco é o
asiático. Se concentra ao redor das guerras da Síria, do Iêmen, do
Afeganistão e do conflito consistente na perseguição dos muçulmanos em
Myanmar contra os Rohingya. Nos três primeiros casos, existiram
intervenções militares diretas de Washington, orientadas a destruir seus
oponentes geopolíticos, elevando os níveis de conflito e – na imensa
maioria dos casos – provocando maiores dificuldades que as que
(propagandisticamente) se pretendiam evitar.
Migração e guerra
Em
meio a este conflito global, os meios hegemônicos de comunicação
mostram habitualmente as reiteradas tragédias migratórias nas fronteiras
dos países desenvolvidos. Paralelamente, se mostra a estes últimos como
“vítimas” destas “desordens populacionais”, sem fazer menção às várias
causas que contribuíram ao seu desenvolvimento. Não se fazem menção a
que 85% dos refugiados de todo o mundo sobrevivem em países não
desenvolvidos: Turquia, Paquistão, Uganda, Líbano e até a Venezuela são
alguns dos países que mais vem dando abrigo aos deslocados pelas
guerras, geralmente próximas às suas fronteiras. Uns dos casos menos
conhecidos é o que se refere à República Bolivariana, que mesmo
enfrentando uma profunda crise econômica (causada pelo bloqueio
comercial e financeiro dos Estados Unidos) já deu asilo a 200 mil
colombianos que fugiram da guerra civil do país no país nos últimos 50
anos, segundo a ACNUR.
Bogotá assinou um convênio com Washington
em 1999, o mesmo ano em que Hugo Chávez chegou ao poder eleitoralmente.
Um dos pontos desse acordo consistia em reduzir as plantações de coca e
ao mesmo tempo mitigar a pressão paramilitar sobre as populações em
risco. Quase 20 anos depois dos compromissos assumidos pelo então
presidente Andrés Pastrana – e a sugestiva ampliação das bases do
Comando Sul dentro do seu território – a extensão total dos cultivos de
coca cresceu 52% só no último biênio, multiplicando também a quantidade
de população camponesa que migrou.
Os conflitos bélicos e as
invasões – lideradas por países desenvolvidos – não só foram utilizados
para comercializar armas e implantar governos títeres, como também foram
a justificativa para autorizar a entrada de corporações de segurança
privada (verdadeiros exércitos de mercenários) que absorvem parte dos
recursos desses governos e que, ao mesmo tempo, são sua guarda
pretoriana, e a garantia da entrada das corporações multinacionais,
ávidas de extrair a maior quantidade de recurso naturais no menor tempo
possível.
O outro benefício dos processos migratórios (hoje
silenciado pelos países desenvolvidos) tem sido a capacidade de regular o
valor da força de trabalho através dos migrantes. Os turcos na Alemanha
e os mexicanos nos Estados Unidos ocuparam muitos postos de trabalho
durante as últimas cinco décadas, por salários menores aos demandados
pelos nativos desses países, fazendo com que o valor da força de
trabalho seja nivelado por baixo, e contribuindo com melhores níveis de
rentabilidade dos empresários.
Os canis do Texas
Segundo
o último censo do país das listras e das estrelas, a população que
denominam (com evidente desprezo) como “hispana”, chegou a 57,5 milhões
de habitantes em 2016, cerca de 17% da população total. Entre eles, 37
milhões são estadunidenses de nascimento, embora uma imensa porção
continue portando status de ilegal. Essa realidade os torna cidadãos
carentes de direitos, que não podem votar e sem acesso ao seguro de
saúde. Por sua parte, aqueles hispanos que possuem identidade registrada
carregam o complexo de cidadão de segunda categoria em comparação com
os WASP (sigla de white anglo saxon protenstants, os brancos
protestantes descendentes dos anglo-saxões), que atribuem a si a
identidade legítima, primordial e fundadora da nacionalidade
estadunidense.
Esta escassez de empoderamento dos hispanos é o
que explica – segundo as investigações mais recentes – a desmotivação
que os leva a não se inscrever nos registros eleitorais. Quase 9 milhões
deles são cidadãos elegíveis (com direito a votar e serem votados) que
poderiam exercer seus direitos políticos.
Além disso, duas terças
partes dos hispanos se encontram em situação precária, seja porque são
ilegais, possuem residências temporárias ou porque sentem que trairiam
as suas origens se assumissem outra nacionalidade. Por último, ainda
prevalecem os sutis mecanismos dispostos a mantê-los afastados de toda e
qualquer associatividade capaz de plantear reivindicações. Dessa forma,
os empresários contam com mão de obra barata e ao mesmo tempo
disciplinada (e não sindicalizada), claramente incapacitada de defender
seus direitos coletivos.
Há cerca de cinco anos, a quantidade de
pedidos de asilo e o êxodo proveniente das árias em conflito vem se
incrementando. Segundo os cálculos da ACNUR, a cada minuto 31 pessoas
abandonam seus lugares de residência para escapar de matanças, guerras
civis, bombardeios contra a população civil ou deslocamentos forçados.
Um total de 26 milhões de cidadãos do mundo têm status de refugiados e
10% deles são latino-americanos, que também são expulsos de suas terras
por grandes fazendeiros que buscam estender os seus cultivos.
Jaulas e balsas
Donald
Trump assinou no dia 20 de junho uma ordem executiva que extingue o
protocolo de separação de menores migrantes de seus adultos
acompanhantes, mas advertiu que seguirá com sua tolerância zero com
aqueles que tentam entrar no território estadunidense. A imensa maioria
dos que arriscam suas vidas para cruzar a fronteira sul estadunidense
procedem das Antilhas, da América Central, da Colômbia e do México. Em
todos esses países, o narcotráfico, as forças paramilitares a seu
serviço e a grande presença de armas norte-americanas são os fatores que
fazem com que, nos últimos anos, milhões de pessoas busquem outros
lugares para ter seus empregos e dar educação aos seus filhos.
Um
dos objetivos de Trump ao impor sua campanha anti imigratória é
(segundo os parlamentares democratas) uma forma de extorsão para
conceder a ele poderes especiais para reduzir o asilo e outorgar,
através do Congresso, a faculdade para dispor dos 25 bilhões de dólares
necessários na construção de sua maior promessa de campanha: o muro
fronteiriço, que ele originalmente exigiu que fosse financiado pelo
México. Este é o cenário que levou um dos países mais poderosos e ricos
do mundo a manter cerca de 2 mil crianças presas em jaulas – chamadas
pelos guardas fronteiriços de “canis” –, separadas dos seus familiares
adultos, até a semana passada.
Simultaneamente, no Mediterrâneo, o
navio Aquarius chegou ao porto de Valência, na Espanha com 629
migrantes a bordo, depois de ser rejeitado pelo principado de Malta e
pelo novo governo italiano, comandando pela Liga Norte, um dos partidos
de direita que agitam a bandeira da crise econômica como mecanismo para
instaurar campanhas xenófobas. O último capítulo de sua propaganda
racista foi divulgado na última quinta-feira (21/6) pelo próprio líder
dessa formação política, Matteo Silvani (também ministro do interior),
quem propôs um censo da população cigana radicada na península, com o
objetivo de detectar aqueles que devem ser expulsos.
Esta também é
a postura dos governos húngaro e austríaco, que propõem instalar forças
armadas de ocupação no norte da África para impedir que as balsas e
navios se lancem ao Mediterrâneo. As crônicas trágicas aumentaram nos 6
meses de 2018, chegando a um total de 771 pessoas falecidas. A primeira
semana de junho teve 68 pessoas resgatadas numa balsa à deriva na costa
da Tunísia. Ademais foram achados 52 cadáveres e outras 60 pessoas
permanecem desaparecidas.
Em 13 de maio de 1939, o navio Saint
Louis zarpou de Hamburgo levando 930 refugiados judeus (a maioria
alemães) que escapavam da perseguição nazi, buscando asilo. Chegaram a
Cuba e foram rechaçados por pressões do Departamento de Estado
estadunidense que exigiu que não fossem aceitos. Na Flórida aconteceu a
mesma coisa. Logo tentaram o Canadá, e o fracasso se repetiu. Tiveram
que voltar à Europa. Grande parte dos seus passageiros foram enviados
aos campos de extermínio.
A civilização ocidental costuma
catalogar como “barbárie” tudo aquilo que lhe é alheio. Talvez seja a
causa pela qual Trump decidiu abandonar o Conselho de Direitos Humanos
das Nações Unidas na última semana. O umbigo da civilização ocidental
parece estar mais sujo do que aquilo que os seus próprios portadores
conseguem perceber. O que não se pode por jaulas é transformado em
perigoso ou invisível.
A mesma motivação racista nega a
conformação multiétnica da Argentina, como foi explicado por Mauricio
Macri, ao descrever seu imaginário país como composto por exclusivamente
por “descendentes de europeus”.
Há uma infinidade de fotos
penduradas nas paredes da História, mas nestes dias só se podem ver
aquelas que mostram a morte e as lágrimas. A primeira, acompanhando as
ondas que molham o corpinho ainda tíbio de Aylan Kurdi. As segundas,
arrasadas pelas lágrimas de Yanele Dennisse Varela Sánchez, que
atravessam a consciência do mundo como um punhal. As paredes onde essas
fotos estão penduradas são as da pretendida civilização, e estão cada
vez mais descascadas.
Jorge Elbaum é sociólogo, doutor em
Ciências Econômicas e analista sênior do Centro Latino-Americano de
Análise Estratégica (CLAE)
www.estrategia.la
(fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Historias-do-Futuro/Os-canis-da-civilizacao-e-a-crueldade-dos-poderosos/48/40722)
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