Será que temos uma serpente chocando ovos? Realmente, as semelhanças com episódios mais que dramáticos da década de 1930 é assustadora. E como já disse aqui, citando um cientista social europeu, "o fascismo passa sem parar..."
Asfaltando a via da repressão
Por Luciano Martins Costa
A sequência de acontecimentos envolvendo a Polícia Militar em São Paulo
e no Rio de Janeiro tem produzido análises mais ou menos apressadas
sobre as motivações de manifestantes e sua propensão à prática de atos
de vandalismo. Grande parte das opiniões se apoia em interpretações que
têm como ponto comum um conceito difuso de pós-modernidade, que
geralmente remete a uma espécie de esgarçamento da racionalidade, como
se os valores que formaram o que chamamos de tempos modernos estivessem
se desfazendo.
Há teorias interessantes sobre a questão, principalmente nos campos da
Sociologia e da Comunicação, mas em textos jornalísticos, que devem ser
sucintos e aplicados ao calor dos fatos, tais análises acabam produzindo
uma visão apocalíptica da realidade contemporânea, como se a
civilização tivesse esgotado suas possibilidades.
Tal conceito, aplicado a um país que ainda tem muito a caminhar até que
se possa considerar minimamente democrático, pode ser uma forma
perigosa de justificar retrocessos e políticas restritivas de direitos.
Há cerca de vinte anos, a tese do “fim da História”, popularizada na
imprensa pelo cientista político Francis Fukuyama, levou a comunidade
dos países ocidentais a aderir radicalmente aos preceitos do liberalismo
econômico, o que produziu sucessivas crises, causadas pela tendência
natural do capitalismo à quebra da racionalidade.
A crença na onisciência do capital e em sua suposta capacidade de se
autorregular produziu a ficção do crescimento ilimitado dos lucros;
quando a realidade se impôs, foi preciso recorrer à mão generosa do
Estado, ou seja, o trabalho de todos foi convocado para consertar os
estragos feitos pela ambição de poucos.
A decisão de corrigir os danos provocados pelo capital especulativo com
os recursos da coletividade afetou a capacidade dos Estados de prover o
bem-estar geral, o que levou às sucessivas manifestações de
descontentamento que sacudiram as grandes cidades pelo mundo afora.
A percepção geral de que a carência de recursos públicos, provocada
pela crise do capital, reduz as chances de toda uma geração, está por
trás das ondas de protesto, que na Europa são motivadas pelo desemprego
e, entre nós, se expressam em questões pontuais como a má qualidade dos
transportes públicos, da educação e da saúde.
A equação impossível
As ondas de protestos podem ser deflagradas por qualquer fato eventual,
mas se repetem porque têm uma origem de fundo, capaz de mobilizar
pessoas dispostas a correr riscos. No entanto, a imprensa costuma se
referir apenas ao fato circunstancial, tido como detonador das
manifestações.
No caso que inaugura esta semana, pode-se identificar na origem dos
tumultos em São Paulo a morte de um jovem estudante de 17 anos, baleado
por um policial militar. Na sexta-feira (25/10), o protesto que resultou
em confronto e na agressão a um oficial da Polícia Militar marcava a
retomada da campanha pela gratuidade dos transportes públicos. Na
próxima semana, a causa imediata pode ser qualquer coisa – e assim
teremos, a cada evento, uma explicação pontual.
Por outro lado, articulistas convocados pela imprensa vasculham suas
leituras para identificar teorias compatíveis com a circunstância
presente. Acontece que a explicação mais próxima da realidade pode não
ser compatível com o que a mídia tenta referendar como senso comum.
Embora os protestos sejam claramente incendiados por grupos violentos
sem agenda, que funcionam como detonadores da insatisfação difusa na
horda, não se pode afirmar que tudo seja ação de vândalos. Há um
descontentamento geral, um mal-estar de alto teor emocional, talvez não
identificável pelos padrões tradicionais de classificação das
ideologias.
A locução mais fácil é aquela que repete a tese do “fim da História” no
lado oposto do espectro político: a ideia da pós-modernidade talvez
seja apenas a versão esquerdista da mesma moeda onde Fukuyama fez cunhar
sua efígie.
Há entre os manifestantes vândalos, lúmpens e militantes de seitas
antidemocráticas, além de jovens idealistas que sonham com uma sociedade
sem tutela. No outro lado, o Estado se faz representar por uma
instituição que abriga criminosos capazes de prender um trabalhador e
torturá-lo até a morte e de disparar contra um estudante que inicia sua
jornada.
Estamos diante de uma equação difícil de solucionar, se não há
disposição de discutir o sistema. Manietado por interesses de grupos que
transformaram a política em negócio privado, o Estado é refém das
pesquisas de opinião, que por outro lado refletem o que demandam seus
financiadores.
O governador de São Paulo quer mais rigor de sua polícia, como se ela
fosse a expressão da meiguice. A imprensa criminaliza os manifestantes
de maneira geral, predispondo a sociedade a aceitar a repressão que
virá.
A via da violência está sendo asfaltada.
(Fonte: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/asfaltando_a_via_da_repressao)
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