Como alguém pode desejar o poder? Os últimos dias de Versalhes
Um dos traços mais originais de Adeus, Minha Rainha, de Benoit Jacquot, é mostrar a decomposição da monarquia pelos olhos da criadagem de Versalhes.
Marco Aurélio Weissheimer (www.cartamaior.com.br)
- Acabo de conversar com Monsieur Bailly, que foi nomeado prefeito de Paris. Ele me disse algo perturbador. O povo não quer apenas pão, mas poder. Como alguém pode desejar o poder? Sempre considerei o poder uma maldição herdada a contragosto. Uma maldição escondida por um manto de pele.
Essa é a única conversa do rei Luis XVI com a rainha Maria Antonieta no ótimo filme Adeus, Minha Rainha (Les adieux à la Reine), de Benoît Jacquot. A Bastilha já caiu, o Palácio de Versalhes está cada vez mais isolado e a nobreza começa a abandonar o barco da monarquia, levando o que consegue carregar. O fardo do poder referido por Luis XVI a sua rainha expressa de certo modo uma situação de fato que se configura naqueles dias: a maldição herdada a contragosto está mudando de mãos. O filme de Jacquot retrata com agudeza os últimos dias da corte, vistos pelos olhos de uma das mais fieis servas da rainha, Sidonie Laborde, leitora oficial de Maria Antonieta.
A lealdade e a paixão que Laborde cultiva pela
rainha se enredarão no turbilhão daqueles dais que cercaram o 14 de
julho de 1789 e que conduziram, mais tarde, o casal real para a
guilhotina. Baseado no livro homônimo da escritora Chantal Thomas, o
filme acompanha os dramáticos últimos três dias de Maria Antonieta e
Luis XVI no Palácio de Versalhes. Os três últimos dias de um mundo em
ruínas.
O cinema já produziu muitos bons filmes sobre a Revolução Francesa. Um dos traços mais originais de Adeus, Minha Rainha é mostrar a decomposição da monarquia pelos olhos da criadagem de Versalhes. Normalmente apresentado como símbolo de luxo e ostentação, o palácio tinha uma pequena cidade dentro dele habitada por cerca de três mil pessoas. Além dos grandes salões espelhados repletos de ouro, vemos também corredores e pequenos quartos sombrios onde viviam os servos da realeza.
O filme nos oferece como guia uma representante desse povo que, não muito longe dali, em Paris, estava fazendo a Revolução Francesa. Sidonie Laborde, vivida por Léa Seydoux, acompanhará a rainha até o fim, ou melhor, quase até o fim.
O cinema já produziu muitos bons filmes sobre a Revolução Francesa. Um dos traços mais originais de Adeus, Minha Rainha é mostrar a decomposição da monarquia pelos olhos da criadagem de Versalhes. Normalmente apresentado como símbolo de luxo e ostentação, o palácio tinha uma pequena cidade dentro dele habitada por cerca de três mil pessoas. Além dos grandes salões espelhados repletos de ouro, vemos também corredores e pequenos quartos sombrios onde viviam os servos da realeza.
O filme nos oferece como guia uma representante desse povo que, não muito longe dali, em Paris, estava fazendo a Revolução Francesa. Sidonie Laborde, vivida por Léa Seydoux, acompanhará a rainha até o fim, ou melhor, quase até o fim.
Um pedido final de Maria Antonieta, interpretada magistralmente pela atriz alemã Diane Kruger, testará sua lealdade e, ao mesmo tempo, funcionará como um indicador das razões pelas quais o casal real perderá suas cabeças na guilhotina. A ideia da traição cometida pela realeza contra seu povo ficará bem exemplificada.
Os jogos amorosos da corte estão presentes no filme, inclusive uma possível paixão homossexual da rainha, mas eles não são o foco principal da narrativa. O olhar que nos guia é o da leitora oficial de Maria Antonieta que tem na rainha o centro de sua vida. Ela mal acredita quando esse mundo começa a desmoronar frente aos seus olhos. Os corredores de Versalhes viram lugares assombrados por nobres decadentes e desesperados que se arrastam com velas nas mãos, como se fossem fantasmas expostos pela insurreição popular em Paris. Sidonie Laborde quer saber o que está acontecendo lá fora e que real perigo isso representa para sua rainha.
Para tanto ela recorre ao historiador Jacob-Nicolas Moreau, vivido esplendidamente no filme por Michel Robin. Moreau é um nome importante na história francesa.
Defensor do Antigo Regime, ele escreve um grande número de memórias e ensaios e organiza um arquivo de cartas destinado a guardar os textos oficiais da história nacional. Diante da evolução da insurreição popular, Luís XVI pediu a Moreau que escrevesse uma carta que seria lida nas igrejas ameaçando os rebeldes do castigo divino. Ele tem dificuldades com a tarefa pois tem um olhar crítico sobre o comportamento da nobreza naquele momento. Moreau considerava que os privilégios que os nobres possuíam deveriam vir acompanhados de deveres, o que não estaria acontecendo. Com esse olhar ele mantem a leitora da rainha informada sobre a gravidade dos acontecimentos.
O historiador deixa claro a ela que estão diante de um mundo em ebulição e sugere que ela abra os olhos e deixe de fazer da adoração à rainha o centro de sua vida. Ela recusa a ideia em um primeiro momento, mas a realidade se encarregará de enquadrá-la. Sidonie Laborde é o fio condutor do filme. A escritora Chantal Thomas a definiu como alguém que vê o mundo de baixo, uma alusão à obrigação dos serviçais sempre estarem inclinando a cabeça à nobreza. Mas ela crê ter uma arma importante do seu lado: as palavras. “Palavras são tudo o que tenho e eu sei usá-las muito bem”, diz rispidamente à rainha depois que ela lhe pede que sirva de isca para proteger a vida de Gabrielle, a paixão de Maria Antonieta que estava na lista dos guilhotináveis da revolução. Sidonie fica decepcionada com o pedido, mas cumpre a missão, veste uma roupa de Gabrielle, enquanto esta se veste como serviçal. As palavras da leitora salvarão a vida de ambas, mas ela sabe, arrasada, que nunca mais voltará a Versalhes.
A corte de Versalhes geralmente é tratada como sinônimo de frivolidade, privilégios, desperdício e esbanjamento. Não por acaso, certamente, merece esse tratamento. O filme de Jacquot tem o mérito de ir além dessa forma, já reproduzida muitas vezes no cinema, e lançar um olhar penetrante sobre as entranhas de um mundo em ruínas. “Como alguém pode desejar o poder?” – interroga-se perplexo Luís XVI. O rei e a rainha sabem que as suas cabeças lideram uma lista de mais de 200 nobres candidatos à guilhotina. O poder, de fato, já não está mais com eles em Versalhes que, depois do 14 de julho de 1789, vai se tornando pouco a pouco um palácio fantasma. A alienação que habitava a casa real nos dias que antecederam a queda da Bastilha já anunciava que o poder estava mudando de endereço.
As condições de possibilidade para o regicídio na guilhotina estavam dadas. O povo iria extirpar a maldição escondida sob o manto real. Isolada em Versalhes, a corte perdeu o contato com o seu povo. Ao fazer isso, perdeu o contato com o poder que estava deixando de ser uma “maldição herdada a contragosto”. A fonte do poder estava mudando, passando do terreno divino para o plano humano.
A perplexidade de Luís XVI e Maria Antonieta deve ter sido real. No filme, após a queda da Bastilha, as sugestões de leitura de Sidonie para a rainha vão ficando cada vez mais restritas e difíceis. O que ler no momento em que o mundo que você conhece está ruindo à sua volta? A maldição do poder acabou finalmente caindo sobre as cabeças de Maria Antonieta e Luís XVI, ou melhor, sobre seus pescoços.
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