Conflitos entre professores e alunos: por um código de ética docente
RAYMUNDO DE LIMA*
No início de novembro/2013, um professor de História da Escola Estadual Maria Montessori, de São Paulo, foi afastado depois de ser flagrado abraçando e beijando uma aluna de 11 anos dentro da sala de aula. Em outubro, um professor da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor pela Universidade de Sorbonne (Paris) e há 16 anos na UFMG, foi acusado de assédio sexual por alunas universitárias. Elas disseram que “Ele usa os alunos para exemplificar a matéria. Disse que a nossa colega era atraente [...] e que ele gostaria de ficar na horizontal com ela”. Sua atitude foi considerada pelas alunas como “sexista”, quando disse “ela não passava de uma costela”. O primeiro caso acima foi flagrado, fotografado, mas o segundo parece mera acusação.
Outro professor está sob sindicância porque teria dito, em uma rede social “Desafio alguém a mostrar aqui o depoimento de algum pai aceitando seu filho gay.” Ora, frase como esta aparece no filme “Orações para Bobby”, usado nos meios escolares e pedagógicos para analisar a tendência homoafetiva na juventude com a família, e representa uma parcela significativa da população ainda não preparada para lidar com tal problemática.
Nossa justiça tem sido implacável na condenação de professores. Foi noticiado o caso do professor de uma universidade particular de Minas Gerais condenado a indenizar alunas porque teria dito que o trabalho “estava horrível, um lixo” (15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de MG); a faculdade Z foi obrigada a pagar R$5.450 à ex-estudante por danos morais. (Uol:14/06/2011). Em Maringá, Paraná, um professor universitário, doutor, com mais de vinte anos de profissão, também foi obrigado a pagar um elevado valor porque teria impedido uma aluna de assistir um evento coordenado por ele.
PARA PROBLEMATIZAR: Está faltando ética [êthos] na atuação docente? No livro “A ética no campo educativo”, o professor de Filosofia na França e doutor em ciências da educação, Francis Imbert (2001), questiona: “Os professores estão bastante impregnados de moral, mas será que possuem uma ética?” Então, estaria faltando ética na atuação docente? Ou os alunos estão mais vigilantes, críticos e conscientes dos seus direitos? Alguns alunos/as não estariam confundindo a adoção de atitude ‘crítica’ com atitude ‘cínica’ ao acusar, caluniar ou difamar um professor outsider? O professor está totalmente livre para expressar ideias, opiniões, usar metáforas ou ‘brincar’ com palavras ou metáforas durante a aula? Ou a liberdade docente é relativa? A vítima de difamação – professor/a – consegue reparar o dano psicológico ou moral? O professor em atitude íntima com uma menor de idade caracteriza transgressão da função docente, no mínimo. Mas se a aluna for maior de idade, ou seja, namoro entre professor e aluna, pode?
Médicos, psicólogos, entre outras categorias profissionais, seguem um código de ética, código moral ou deontologia (“deon” = obrigatório, dever). Por que os professores ainda não têm seu próprio código de ética? Ética situa-se antes de qualquer conformidade moral. Na época de apagamento das fronteiras (certo/ errado, pode/ deve, pessoal/ profissional), a formação ética no campo da docência poderia contribuir para melhor preparar o professor para agir corretamente no dia a dia da sala de aula? Noutros termos, como vivemos um tempo de interregno, como deve ser a conduta deste profissional: sob o ponto de vista físico (modo de vestir), discursivo (modo de falar, argumentar), e o ético e estético durante as aulas?
Está em extinção o estilo professoral carrancudo, isto é, aquele professor que só pela presença causava nos alunos pavor durante a aula e pesadelos no sono. Ele sempre tinha razão. Ora, o professor hoje se sente desamparado, despreparado para lidar com alunos desatentos, hiperativos, desrespeitosos, agressivos, ameaçadores, prontos para explosão de ira diante de um não, ou prontos para lesar o sentido do projeto educativo. Antigamente os pais confiavam nos professores, hoje não. (Sugiro ver os filmes: “O substituto”, “Infâmia”). Quando eu era aluno, os professores sempre tinham razão. Hoje, que sou professor, a tendência é sempre dar razão aos alunos, observa o professor Leandro Karnal, em conferência do CPFL-videos. Por que hoje muitos tendem a dar razão ao aluno? Por que o aluno virou cliente, conforme o ideário neoliberal? E o cliente sempre tem razão!
VIVÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA DOCENTE
Conforme o interessante estudo de Marilda da Silva (2005), os professores aprendem mais com a prática docente do que com as teorias da didática e das metodologias de ensino. Ou seja, o “habitus professoral” [sic] é aprendido independentemente da formação didática específica; é aprendido no ensaio-erro da atuação profissional. Durante a formação universitária o máximo que é aprendido é o “habitus estudantil”, porque nos cursos de formação de docentes os alunos lêem e discutem o tema “[in]disciplina na sala de aula”, por exemplo, mas não praticam a ação de manter a classe disciplinada como se fossem professores. Também ainda não existe uma matéria para formação de professores sobre ética docente.
De acordo com esta pesquisa, acumulamos algumas preocupações: a) a formação de professores não funciona na prática, só na teoria; b) a nova geração de professores corre pior risco de estar em colapso mental durante o exercício profissional porque está totalmente despreparada para lidar ou ‘trabalhar com’ a nova geração de alunos de tendência incivilizada, indisciplinada ou até mesmo cínica. Alguns sindicatos de professores vêm alertando para o crescente número de professores afastados do trabalho, licença médica ou psicológica, por burnout, depressão, fobia escolar, distúrbios psicossomáticos, síndrome loco-neurótica[1], etc.
No livro “Adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico”, Antonio Zuin (2008) reconhece como sádica a função docente ao longo da sua história. Ou seja, o sadismo professoral sempre foi uma habitus, jamais criticado ou questionado. Pierre Bourdieu (1998 e outros) reconhece o quanto a escola e a universidade exercem violência simbólica sobre os alunos, desde sua entrada até sua formação. Então, como não odiar o professor que atua com violência camuflada? Como gostar de uma escola ou universidade que atuam ora excluindo ora sendo omissa ou indiferente?
Ainda no século passado a escola aplicava instrumentos punitivos (palmatória) ou castigos físicos, e hoje ainda existem professores que estigmatizam alguns alunos com palavras ofensivas, tais como “burro”, “idiota”, etc. Ou usam atos constrangedores, por exemplo, uma professora e uma monitora obrigaram dois alunos da escola a ficarem nus em sala de aula, para averiguação de sumiço de dinheiro. Como não odiar esta professora?
Hoje são produzidas formas sofisticadas de violência simbólica, em que o aluno é estigmatizado [rotulado], mas ele não se dá conta. Ou mesmo os professores não fazem autocrítica de seu posicionamento violento. Dizer que fulano é “TDAH”, muitas vezes é reproduzido pelos pais como modo de proteger o/a filho/a; e parece que todos os agentes não se reconhecem fazendo uso desta forma de violência simbólica.
A universidade por séculos cumpriu a tradição autoritária repressora; os professores eram considerados arrogantes, irônicos, sarcásticos, até exerciam algo de sádico durante provas e bancas examinadoras. De certa forma, até hoje tal sadismo ainda é autorizado nas bancas de seleção e exame.
Mas ser docente universitário hoje implica antes de tudo ser “professor-pesquisador”. Isso significa ser prudente na fala e nos gestos. Ele não pode confundir ironia – que é uma virtude, segundo Comte-Sponville (2005) com sarcasmo, durante aulas, palestras, bancas. Também os alunos – feitos ‘clientes’ – deveriam saber mais sobre como funciona o habitus docente: brincadeirinhas e exemplos de boa fé [didática] podem ser usados para ilustrar um conteúdo compõem tal habitus, ainda que a onda politicamente correta exagere nas denúncias.
Nos EUA e Canadá, o regulamento escolar proíbe o professor ‘tocar’ aluno (abraço, beijinho no rosto). Algumas instituições de nível superior recomendam ao professor atender aluno/a com porta aberta, para não causar mal entendido, constrangimento ou processo judicial. Certamente são indícios ou sintomas de ruptura da confiança entre professores e alunos, cujo ambiente escolar e universitário, no mínimo, produz efeitos danosos para ambos. A discussão sobre um código de ética docente poderia esclarecer e prevenir melhor nossa atuação. É uma proposta.
Referências
ALEVATO, Hilda. Síndrome loconeurótica revisitada: o cotidiano de docentes. Rev. Psicol., Organ. Trab. v. 12 nº.2, Florianópolis, ago. 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1984-66572012000200008&script=sci_arttext
BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
IMBERT, Francis. A questão da ética no campo educativo. Petrópolis: Vozes, 2001.
SILVA, Marilda da. O habitus professoral: o objeto dos estudos sobre o ato de ensinar na sala de aula. In: Revista Brasileira de Educação. maio/jun/jul/ago, 2005. Disponível em:
UOL. Professor classifica trabalho de ‘lixo’, e universidade é condenada a indenização. 14/06/2011. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/noticias/2011/06/14/professor-classifica-trabalho-de-lixo-e-universidade-e-condenada-a-indenizacao.htm
ZUIN, Antonio. Adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico. Campinas: Autores Associados, 2008.
* RAYMUNDO DE LIMA
é Professor-doutor do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE), da
Universidade Estadual de Maringá. É colunista da revista eletrônica
Espaço Acadêmico.
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