por Marcos Napolitano
A crise política que vivemos neste começo de 2016 é, sem dúvida, uma das
mais graves e complexas da história do Brasil. Vale lembrar que o País
tem uma história política profícua em crises que, quase sempre,
terminaram em golpes de Estado seguidos de ditaduras. Muitos analistas
políticos de plantão, diante do quadro atual, não hesitam em dizer ou
escrever que o combo “golpe + ditadura + repressão” está afastado, e as
“instituições democráticas”, que estão sendo duramente testadas na
atualidade, sairão fortalecidas, apostando em saídas políticas e
jurídicas para desatar o nó que amarra a vida nacional. Será?
A democracia representativa, ancorada em um sistema partidário
minimamente eficaz para garantir estabilidade institucional, sobreviverá
ao desfecho da crise brasileira? A luta contra a corrupção, tão
apregoada como a base de uma nova cultura republicana, será consolidada?
Para me arriscar neste exercício de futurologia, recorro ao passado,
analisando a crise atual em uma perspectiva histórica que vem sendo
pouco explorada. A crise brasileira, nesta perspectiva, envolve ao menos
três dimensões que se entrecruzaram de maneira explosiva a partir de
2013.
A dimensão política
Esta dimensão, talvez,
seja a mais comentada pelos analistas. Há uma unanimidade em apontar o
esgotamento do chamado “modelo político” brasileiro pós-1985, baseado no
“presidencialismo de coalizão”. Este modelo ensejaria a necessidade de
acomodações tão amplas para sustentar a “governabilidade”, outra palavra
mágica em nosso vocabulário político cada vez mais usada e abusada, que
o governo de plantão, qualquer que seja, fica refém de uma aliança sem
projeto e sem direção clara. Os ministérios e os milhares de cargos de
confiança são distribuídos conforme as demandas destas “super-maiorias”
parlamentares que formam a base do governo, comprometendo a própria
racionalidade administrativa do Estado.
Desde 2003, o“toma lá dá cá” fisiológico que tem no PMDB, sempre
disposto a ocupar o Estado, sua expressão máxima, foi a porta aberta
para as tenebrosas transações que acabaram por modificar a essência do
próprio PT. De um partido originalmente intransigente e purista, acabou
por se transformar em epicentro de governos incoerentes e contraditórios
com seu próprio DNA político. Se com Lula na Presidência, o governo não
tinha uma natureza ideológica definida, mas tinha algum comando, dada a
capacidade negociadora do ex-presidente, com Dilma, o governo foi
emparedado, sem controle mínimo sobre sua base, e com risco de perder o
apoio do próprio PT. A polêmica volta de Lula ao coração do poder ainda é
um lance aberto, não é possível afirmar que o superministro salvará o
governo Dilma e estabilizará a política nacional. Pessoalmente, aposto
que não.
A esta dimensão política mais visível deve-se somar uma crise
política do petismo histórico, ainda pouco compreendida diante da
enxurrada de críticas de ordem puramente moral ao Partido, feitas à
direita e à esquerda. O PT, em seus primeiros 15 anos, foi um partido
que abusou do discurso voluntarista e moralista para criticar o “tudo
que está aí” na política brasileira. Ligado organicamente a vigorosos
movimentos sociais, o partido tinha influência nas ruas, mas sempre fora
ruim de voto. No entanto, ainda nos anos 1990, formou uma pequena base
parlamentar, sempre coerente e contundente na oposição aos governos
pós-ditadura. Ao lado do PSDB (o original…), era o único partido moderno
e com alguma base orgânica e ideológica no Brasil democratizado. O PT
também conseguiu criar bases importantes em municípios, governando
cidades pequenas, grandes e médias nas quais conseguiu implementar
muitas novidades na administração e melhorar os índices sociais. Mesmo
sem grande coesão interna, pois sempre foi um partido atravessado por
disputas autofágicas de tendências e grupos, o PT parecia consolidado em
meados dos anos 1990 como “reserva política e moral” que iria
democratizar a política e a sociedade brasileiras.
O grande momento do partido veio com a eleição de Lula em 2002. Em
parte, a onda eleitoral que o elegeu foi uma resposta à crise econômica
da era FHC, que, salvo o bem-sucedido controle inflacionário, não
conseguiu alavancar o tão prometido crescimento sustentado e a
distribuição de renda. Mas a passagem de uma base de atuação política
parlamentar de oposição e a experiência de governos municipais petistas
pouco ajudaram o partido a construir uma estratégia eficaz para conduzir
a política nacional no governo da União. O fato é que o PT nunca pensou
seriamente em como lidar com a natureza fisiológica e a complexa
engenharia política que sustentam o pacto federativo brasileiro,
atravessado por uma mistura de interesses regionais, setoriais e
corporativos que refreiam qualquer projeto mais ousado de mudança. O
voluntarismo e o purismo petistas encontraram aí o seu limite, mas a
habilidade, o carisma e o pragmatismo de Lula em costurar alianças
improváveis manteve a “governabilidade”, mesmo fazendo os petistas
históricos se contorcerem de náuseas.
O petismo no poder pouco ajudou a tornar mais nítido o espectro
ideológico e delimitar os valores que estão em jogo na sociedade
brasileira. É inegável que há um núcleo de valores no petismo que ainda o
liga às tradições históricas de esquerda, como a sensibilidade para as
questões sociais, os direitos trabalhistas e a promoção da equidade
social. Mas as coalizões espúrias de governo, as alianças orgânicas com
grandes empresários e a dificuldade em assumir, pelo menos, um projeto
social-democrata consistente que distribua renda através de justiça
tributária enfraqueceram a identidade ideológica do petismo. Resta a
liderança de Lula, ainda forte no partido, mas em xeque em grande parte
da sociedade.
A crise atual, em sua dimensão política, é tributária do esgotamento
dessa capacidade de gerenciar politicamente os dois vetores que
sustentaram a democratização: o “presidencialismo de coalizão” e a
acomodação dos interesses fisiológicos que mantêm o “pacto federativo”
brasileiro dentro de uma política (muito) moderada de esquerda. Sem
projeto de mudança e sem comando político, o partido foi tragado pelas
velhas e conhecidas práticas da vida política brasileira, com suas
negociatas nem sempre legítimas e legais.
A dimensão econômica
A crise econômica é igualmente muito comentada e analisada. Depois de colher os frutos da valorização das commodities no
mercado internacional, a economia brasileira se viu ameaçada diante da
crise internacional que explodiu em 2008. Com dinheiro em caixa, o
último ano do governo Lula ainda conseguiu evitar o tsunami, liberando
créditos e subsídios e mantendo a linha mestra da política econômica dos
seus dois governos, chamada por alguns de “social-desenvolvimentismo”.
Dentro deste modelo, contra-face econômica do pragmatismo político de
Lula, a gestão da economia deveria manter a base do Plano Real (metas de
inflação, superávits fiscais primários, controle cambial), mas
acrescentar-lhe outras medidas: redirecionamento do crédito subsidiado
para grandes corporações e para o consumidor assalariado de baixo poder
aquisitivo, aumento real do salário mínimo e transferências financeiras
diretas para famílias extremamente pobres (“bolsa família”). A
presidenta Dilma, que parecia realmente acreditar na sua competência
gerencial, quis ir além, propondo a “Nova Matriz Econômica” que iria
alavancar a indústria nacional, recuperar o protagonismo do Estado na
economia, abaixar os juros e incrementar o crescimento com inflação
baixa e sob controle. Mas em plena crise econômica mundial, esta
política não deu certo. A resposta dos agentes econômicos não foi a
esperada, o Estado perdeu capacidade de investimento e a arrecadação
decrescente comprometeu o já frágil equilíbrio fiscal de um Estado que
tinha um grande gasto social. A cerejinha do bolo da crise foi a
Operação Lava Jato, que paralisou os grandes negócios de Estado, entre
estatais e empreiteiras.
A partir do susto das ruas em 2013, que colocou o governo sob pressão
e paralisou os agentes econômicos internos, a crise econômica se
agravou, dando munição à imprensa de oposição para criticar a
administração petista também neste campo. A resposta política ortodoxa
para a crise econômica no segundo mandato de Dilma – elevar os juros
para controlar a inflação crescente mas ainda sob controle – fez com que
a arrecadação despencasse e com ela o crescimento econômico e a oferta
de empregos. Vale lembrar que sem subsídio estatal, sem consumo das
famílias e do governo não há capitalismo no Brasil.
A arrecadação em baixa comprometeu a capacidade do governo de manter o
nível de gasto social, desde sempre combatido pelos liberais de plantão
na imprensa e nas assessorias econômicas diversas. O pacto social
lulista, que amarrou banqueiros e miseráveis sob sua liderança,
tornou-se inviável. O consumo das velhas e novas classes médias
diminuiu, e a distribuição de renda via incentivo ao consumo chegou ao
seu limite. Como o PT jamais pensou ou propôs uma reforma tributária
progressiva séria, sempre difícil diante do pacto federativo e dos
interesses setoriais que mandam no Congresso, o Estado brasileiro é
refém da arrecadação de impostos desiguais, gerados pelo consumo e pela
tributação dos assalariados. A resposta para manter a “governabilidade”
foi fiel ao receituário liberal tão criticado nos palanques eleitorais:
corte de gastos e elevação de juros.
A dimensão ideológica
Esta dimensão é a menos
analisada. Em uma primeira mirada, parece que estamos reeditando o
eterno embate entre esquerda e direita, cujos epicentros no sistema
partidário brasileiro seriam o PT e o PSDB. A transição tranquila ao
final do governo FHC parecia indicar que a sociedade brasileira atingira
um novo patamar de civilidade e republicanismo. Lula “paz e amor”
parecia arrefecer os ímpetos de mudança voluntarista e populista
qualquer preço e em troca, os setores mais conservadores aceitavam o
“sapo barbudo” e a esquerda no poder, sem maiores histerias. Mas a lua
de mel durou pouco. Arrisco dizer que a trégua conservadora ao petismo
no poder apostava em um mandato de Lula que não conseguiria tocar o dia a
dia administrativo e manter os compromissos políticos que sustentavam o
pacto federativo. Mas o que se viu foi um presidente não só
relativamente bem-sucedido desde o seu primeiro mandato (apesar das
trapalhadas iniciais do governo no trato do Congresso Nacional) como
cada vez mais popular no Brasil e no Exterior. Não por acaso, a partir
de 2005, a oposição na imprensa cresceu e começaram a surgir as teses do
“projeto de poder”, as denúncias de corrupção estrutural e, pior, a
denúncia do “esquerdismo demagógico”, reeditando até certa histeria
anticomunista que parecia enterrada sob os escombros do Muro de Berlim.
Mas à época ninguém deu muita atenção para isso, a não ser os
comentaristas conservadores de sempre e o andar de cima da classe média,
sempre fiel à sua mentalidade oligárquica e elitista, que não quer
dividir aviões com os pobres ou pagar os direitos das empregadas
domésticas.
Mas à medida que a ruptura da classe média com o petismo foi
crescendo, alimentada sistematicamente pela imprensa de direita, a crise
ideológica ficou mais aguda. Os deslizes morais do partido e de suas
lideranças deram o lastro que faltava ao discurso tosco e desconexo do
conservadorismo. Permitiram que se escondesse uma crítica de fundo
elitista atrás do bom combate da moralidade pública. E quem haveria de
negar este bom combate, já que muitos petistas históricos tinham rompido
com o partido pela mesma razão?
Mas nem só da alta classe média vive o anti-petismo. Os setores
assalariados de médio porte, como os funcionários públicos de carreira e
quadros técnicos do setor privado, que foram uma das bases sociais do
petismo histórico, também se frustraram com o partido, não apenas por
aderirem às críticas de ordem moral propaladas pela imprensa, mas também
por viverem a combinação explosiva de ausência de serviços públicos de
qualidade com alto custo dos serviços básicos privatizados, como saúde,
transporte e educação.
A afirmação definitiva da classe média anti-petista enragé foram
as jornadas de junho de 2013, levando consigo para as ruas amplos
setores do lumpesinato, sempre disposto ao antigovernismo e à
antipolítica, e com “carradas de razão”, com diria Chico Buarque. A
partir de então, as dimensões política, econômica e ideológica da crise
se entrecruzaram, formando o labirinto atual que nos parece levar ao
abismo da intolerância política e da fratura social. O governo,
atordoado pelas manifestações, perdeu o rumo e foi emparedado pela
imprensa conservadora (desculpem a redundância) e por grupos sociais
outrora moderados que aderiram ao discurso siderado da extrema direita
fascistoide.
A oposição, igualmente desarvorada, tentou colher os frutos da crise,
apostando na virtual implosão do PT e do petismo como expressão da
esquerda parlamentar. Nesta linha, o PSDB, nas últimas duas eleições
presidenciais, assumiu um feitio ultraconservador, sequestrado pela
tradição do liberalismo oligárquico e elitista que domina este espectro
ideológico no Brasil. A partir de 2015, as direitas ganharam as ruas e a
política brasileira se tornou um jogo ainda mais imprevisível.
Futuro?A grande contradição já percebida pelas
lideranças oposicionistas é que o colapso do governo Dilma e a implosão
do PT poderão levar consigo o sistema partidário brasileiro, tal como
este se reconfigurou após o fim do regime militar. Se acontecer, o
colapso do PT significará a ausência de uma esquerda parlamentar
representativa por muitas décadas. Isto também significará a ausência de
opções institucionais mediadoras entre as demandas sociais e o Estado,
sobretudo aquelas oriundas das camadas muito pobres e dos pequenos
assalariados. À esquerda, restarão movimentos sociais fragmentados com
pautas específicas, coletivos de toda a ordem e lideranças isoladas,
socialmente relevantes e politicamente impotentes, ao menos no jogo
institucional. No médio prazo, o grosso do eleitorado, sem formação
ideológica consistente e sem balizas partidárias claras, tenderá para a
direita. Mas que direita?
Não é exagerado dizer que já há uma cultura pública autoritária e
fascista que está esperando por um líder aventureiro, mas que ainda não
tem expressão partidária consistente. Iludem-se os liberais dos partidos
de oposição e da imprensa conservadora ao pensar que estes grupos
sociais serão controláveis no futuro. O sistema jurídico de tradição
liberal que, no vazio atual, se arvora como a espinha dorsal da política
brasileira poderá ser novamente sequestrado pelos valores autoritários,
alimentados pelos próprios liberais nos momentos de crise, diga-se,
como muitas vezes ocorreu na história brasileira. Lembremos que todas as
nossas ditaduras envergonhadas ou escancaradas foram prolixas em normas
e decretos, assinados por eminentes magistrados. Quanto aos setores
políticos fisiológicos, bem… estes sempre se arranjaram, seja em
ditaduras, sejam democracias.
O projeto inicial da oposição – fazer o governo Dilma e o PT
“sangrarem” até 2018 – está sendo atropelado pela radicalização
anti-petista nas ruas e pela judicialização da política. Os últimos
movimentos de Lula e de Sérgio Moro fizeram o jogo político sair dos
palácios, para o bem e para o mal. O impeachment poderá deixar de ser
uma ameaça, e efetivamente acontecer. Esta é uma variável que hoje não
pode ser descartada nem garantida (nota: escrevo no dia 18 de março). A
verdade é que estamos em meio a um quadro imprevisível, afastando-se
cada vez mais da tradicional conciliação moderada de feição
conservadora. Mas, supondo que o governo Dilma resista, e ocorra a
eleição em 2018, a oposição terá alguns desafios, mesmo diante de um
governo moribundo.
O primeiro é tirar Lula do futuro pleito, de preferência com base em
algum fato legal, como a sua prisão ou a impugnação de sua candidatura.
Sem Lula, o PT perderá lastro eleitoral e poderá se fragmentar em vários
grupos partidários. Estamos vivendo o momento exato desta estratégia,
ainda com desdobramentos imprevistos. Trata-se de uma estratégia
arriscada, pois Lula poderá ser visto como vítima das elites, o que não é
de todo descabido, sobretudo pelo eleitorado mais pobre que
efetivamente decide as eleições. As pesquisas de opinião que indicam um
desgaste de sua imagem ainda são precoces e estão muito distantes da
campanha eleitoral de 2018, quando, se tiver palanque, Lula fará valer
todo seu carisma.
O segundo é encontrar um candidato que faça convergir seus
interesses, o que não está garantido dentro do PSDB, um partido
hesitante com muitas lideranças em conflito. E vale lembrar que, apesar
de relativamente preservados na imprensa, os tucanos também estão
envolvidos em denúncias de corrupção sistêmica, o que não passará
despercebido na campanha eleitoral, apesar de toda provável blindagem.
Em 2018, ainda há o fator Marina, que está discretamente preservada do
imbróglio político autofágico entre governo e oposição, mas poderá
representar uma opção eleitoral de centro, com ares de modernidade. Por
fim, há uma incógnita: para quem irá o voto da classe média
ultraconservadora e pretensamente “apolítica”, que vaia até os tucanos
nas manifestações de rua? Será um voto útil no PSDB ou haverá uma
candidatura de extrema direita fora das baias dos partidos mais
estruturados?
Para o cidadão comum minimamente formado e informado por valores
progressistas que quer ver preservada a democracia em seus alicerces
básicos, a sanidade pública e o bom senso político, a conjuntura
brasileira atual é desoladora. O bom combate contra a corrupção que
poderia unificar um grande movimento reformador se perde em críticas
grosseiras e em bate-panelas que mal escondem palavras de ordem
fascistas e preconceituosas. As reformas política e tributária, que
poderiam ser os eixos de uma reforma efetiva de Estado, saíram de pauta
ou foram distorcidas. O saudável embate ideológico entre os que pensam
diferente se perde em intolerância, agressões públicas e bate-bocas
improdutivos. As críticas às mazelas sociais do Brasil se perdem em
análises superficiais e defesa de soluções fáceis e autoritárias.
Seja qual for o resultado desta crise, tudo indica que a já frágil democracia brasileira estará ameaçada.
*Historiador, pesquisador do CNPq e professor do Departamento de História da USP
(fonte: http://brasileiros.com.br/2016/03/crise-brasileira-em-perspectiva-historica/)
Tempos difíceis!
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