Ninguém
sabe quem inventou o filé à francesa, aquele acompanhado por batatas
palito, cubos de presunto e ervilha, mas seguramente não foi um francês:
nenhum restaurante francês ostenta esse bife. Da mesma forma desista de
pedir em Havana um filé à cubana, com frutas tropicais à milanesa e ovo
frito, prato ainda muito popular nos restaurantes do interior paulista.
Talvez com o incremento de turismo na ilha algum brasileiro decida
colocar o prato nos cardápios de lá, mas por enquanto… Também fiquei
surpreso ao ver que o espaguete à bolonhesa, que frequenta com
assiduidade as mesas domingueiras, não tem esse nome em Bolonha, mesmo
porque nem sequer é feito com espaguete, e sim com o fettuccine e se
chama, modestamente, “al ragu”. E pedir para comer um americano nos
Estados Unidos pode parecer aos olhos deles duma atividade antropófaga
(ou vulgarmente sexual), mas nunca seria interpretado como devorar um
sanduiche de presunto e queijo derretidos, acrescidos de ovo frito e
uma folha de alface, como sabe por aqui qualquer chapeiro de padaria.
Se
em comidas a confusão pode ser inócua, o mesmo não se pode dizer de
outros equívocos disseminados, às vezes, sem má intenção (e às vezes,
sem tanta inocência). Leio, frequentemente, até em manuais de História,
frases como “Cinco ou seis milhões de negros vieram ao Brasil como
escravos”. Ora, se escravos, não “vieram”. Foram trazidos. Não se trata
de uma diferença puramente semântica, mas verdadeiramente
epistemológica. Ninguém “vem” para ser escravo. Negros não vieram da
África, foram escravizados e trazidos à sua revelia. Da mesma forma
criou-se o verbo “judiar” no sentido de maltratar, com referência ao
sofrimento imposto a Jesus durante seu calvário. Ora, ele não foi
crucificado pelos judeus, que sequer praticavam a crucificação. Ela era
praxe romana para punir adversários do poder imperial. Não era incomum
até crucificar gente de ponta cabeça, como atesta farta documentação a
respeito. Contudo, não existe o termo “romanizar”, como sinônimo de
maltratar, e sim “judiar”. Claro que a História explica isso. De
ideologia de dominados o cristianismo, bem modificado com relação às
suas raízes, conquista Roma e faz dela a sua sede – onde até hoje se
localiza o Vaticano. Como então utilizar um verbo que pudesse ofender os
romanos?
Termos
e expressões preconceituosas com relação a negros, mulheres, imigrantes
de várias origens, migrantes nordestinos, mulheres, homossexuais, até
mesmo contra obesos, ou “baixinhos” são usados no dia a dia (ver o
livro “12 faces do preconceito”)
e muitas vezes nem sequer notamos a origem da palavra que denigrem as
minorias (ops, “denegrir” é uma delas…). Concluir uma tarefa com cuidado
e perfeição e dizer que é “trabalho de branco” não passa de uma forma
de “mostrar” que o trabalho feito por negros, ou de uma forma negra (o
que quer que isto possa significar) é um trabalho porco, mal feito.
Preconceito puro.
Os
“equívocos” nem sempre são tão inocentes, como denominar erradamente um
filé ou uma massa. Quando dizemos “mulher ao volante é perigo
constante” estamos fazendo um conjunto de afirmações com objetivos
claros: dizemos que mulheres, pelo simples fato de pertencerem ao sexo
feminino, são mais incompetentes do que os homens para dirigir, como se o
falo masculino fosse um fator positivo no desenvolvimento da capacidade
de conduzir um veiculo automotor. Na verdade, digo mais: que, pelo fato
de ser homem, sou superior a ela; e ela, pelo fato de ser mulher é
inferior, não só a mim, o emissor da brilhante frase, mas de todos os
homens do planeta. Claro que o argumento não resiste a nenhuma análise,
mas continua sendo usado como forma de dominação. Estabelecer relação de
superioridade diante do outro é uma maneira de ocupar espaço,
empoderar-se. Não se esqueça que a ideologia nazista, que dominou a
Alemanha durante mais de uma década, garantia que o mais idiota dos
loiros “arianos” era superior a todos os judeus; mesmo a Albert
Einstein, um dos maiores gênios da história da humanidade, porém judeu…
A
ideologia cegou muita gente de um dos países mais cultos da Europa. Ter
os olhos bem abertos é uma forma de manter a lucidez, de não se deixar
enganar. Faz parte de uma sociedade democrática lutar contra o
preconceito e a discriminação. Mesmo que continue apreciando o filé à
francesa.
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