"Os jovens eleitores de Sanders e os revoltados de Trump
revelam uma comunidade de princípios em suas divergências: os
indivíduos de carne e osso não desfalecem diante dos esforços sistêmicos
que pretendem naturalizar os escandalosos desequilíbrios de poder e
riqueza. Diante da reação dos perdedores, resta aos intelectuais e
jornalistas do establishment prosseguir na tradição de empregar palavras
sem conceito e gritar 'Populismo!'", escreve Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, em artigo publicado por CartaCapital, 15-02-2017.
Segundo o economista, "os movimentos de apoio a Sanders e Trump vão sobreviver às eleições de 2016".
Eis o artigo.
A crise de 2008 abriu a brecha para o socialismo democrático de Bernie Sanders e o hiperconservadorismo de Donald Trump.
Os eleitores foram despertados de seus sonhos para as cruéis realidades
da prolongada e reiterada frustração das promessas inscritas no código
do liberalismo econômico.
Na posteridade dos anos 1970, crepúsculo da era do capitalismo
regulado e solidário do pós-Guerra, reemergiu a Grande Narrativa dos
valores da concorrência e do mérito, valores que estimulam os cidadãos a
se tornarem “empreendedores de si mesmos”, proprietários do seu
“capital humano”.
Essa aspiração legítima bateu de frente com as realidades da
exportação de empregos na manufatura globalizada, colidiu com a
centralização do controle nas megaempresas “financeirizadas”, trombou
com os avanços da Tecnologia da Informação e com o progresso da
automação na indústria e nos serviços.
Os choques deflagraram uma forte desvalorização do estoque de capital humano
(sic), mesmo aquele cultivado com os empenhos da educação. Os mercados
de trabalho estão infestados pelo vírus da precarização e pela
continuada perda da segurança outrora proporcionada pelos direitos
sociais e econômicos. Só os tolos e os malandros acreditam e divulgam
que os Estados Unidos estão em pleno emprego.
A frustração dos perdedores – desempregados ou precarizados – está na raiz do socialismo democrático de Sanders e, do seu contrário, o protecionismo nacionalista e agressivamente xenófobo de Trump. As classes médias, sobretudo nos Estados Unidos, mas também na Europa,
ziguezagueiam entre os fetiches do individualismo e as realidades
cruéis do declínio social e econômico. A individualização do fracasso já
não consegue ocultar o destino comum reservado aos derrotados pela
desordem do sistema social.
Os jovens eleitores de Sanders e os revoltados de Trump
revelam uma comunidade de princípios em suas divergências: os
indivíduos de carne e osso não desfalecem diante dos esforços sistêmicos
que pretendem naturalizar os escandalosos desequilíbrios de poder e
riqueza. Diante da reação dos perdedores, resta aos intelectuais e
jornalistas do establishment prosseguir na tradição de empregar palavras
sem conceito e gritar “Populismo!”
Na Crítica da Razão Dialética, Sartre recusa-se
a conceber o homem como coisa. A despeito das armadilhas das estruturas
socioeconômicas que tentam transformar o cidadão em um serviçal da
rotina, dos costumes e do conformismo, o homem da razão dialética
caracteriza-se pelo impulso incontido à superação de uma situação que o
transformou naquilo que ele é. Está condenado à liberdade.
O indivíduo do iluminista e filósofo moral Adam Smith é
definido a partir de sua liberdade exercida mediante a propensão humana
natural para a troca. A motivação egoísta do intercâmbio de
mercadorias, no entanto, está ancorada na simpatia mútua, na
sociabilidade enraizada na inclinação benevolente para com o outro.
Nas trevas da economia vulgar, dogmática, que nos assola com um
rosário de banalidades, a versão smithiana do indivíduo socializado
cedeu lugar às hipóteses “científicas” que suprimem as diferenças entre
os papéis sociais dos indivíduos concretos para aprisioná-los na má
abstração do homo economicus, o ser racional e maximizador da utilidade.
A culminância do solipsismo econômico é o “agente representativo” dos
novo-clássicos, a turma dos modelos ridículos que reivindicam a
estabilidade do capitalismo. Para afirmar essa patranha conceberam um Robinson Crusoé de causar inveja a Daniel Defoe.
Este autor foi ultrapassado em sua visão do indivíduo burguês pelos
façanhudos agentes portadores de expectativas racionais concebidos por Robert Lucas & Cia.
Na contramão, mas com os mesmos métodos, alguns críticos do
capitalismo sucumbem ao determinismo, soterrando a plasticidade desse
modo de produção na cova rasa das velhas e encarquilhadas teorias do
colapso final. Muitos críticos à esquerda imaginam estar prestando
homenagem à boa tradição de seu pensamento, cedendo passo a supostos
automatismos e inevitabilidades que estariam implícitos na dinâmica do
capitalismo. Karl Marx se contorce na tumba.
Essas manobras ideológicas escondem as possibilidades da ação humana
coletiva, oportunidades que emergem das mutações da estrutura
socioeconômica e de sua compreensão transformadora pelas camadas sociais
empenhadas na luta democrática. Os movimentos de apoio a Sanders e Trump vão sobreviver às eleições de 2016.
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/564907-trump-e-a-indignacao-populista)
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