Estado vigia obsessivamente os muçulmanos. Mas faz vistas grossas
a centenas de grupos que pregam ou praticam violência contra minorias.
Por isso, Mateen, que matou 49, pôde agir com liberdade
Por Reginaldo Nasser
Dias após a tragédia em Orlando, continuam as investigações policiais
na esperança de que possa surgir algum detalhe esclarecedor sobre os
motivos que levaram Omar Mateen a cometer massacre na boate LGBT.
Sabe-se que Mateen esteve sob vigilância do FBI, em 2013, por ter feito
comentários “suspeitos”, após ser “ridicularizado” por sua origem
muçulmana. De acordo com as autoridades do FBI, Mateen manifestou
simpatia em relação a grupos terroristas, mas a suspeita foi descartada
depois que o FBI concluiu que não representava uma ameaça, já que não
havia nenhum laço concreto com grupos islâmicos.
Creio que essa ação do FBI é muito significativa. Colocou alguém na
lista de suspeitos de ligação com o terrorismo, por ser um islâmico que
se manifestou de “forma radical”, mas concluiu que não era ameaça por
não ter relação com grupos terroristas islâmicos no exterior.
Provavelmente o FBI nem registrou o caso de Mateen que, como milhares de
pessoas, manifestam de alguma forma o ódio contra grupos LGBT, nem
muito menos seu histórico de violência contra sua ex-mulher. Para o FBI,
isso não se constituiu uma ameaça à sociedade!
Nos últimos anos, o governo dos EUA destinou milhões de dólares para
programas de combate ao que considera “extremismo violento”, cujo
objetivo é identificar e/ou impedir indivíduos que são propensos a
cometer violência. Estes programas têm sido severamente criticados por
especialistas, na medida em que enfatizam ideologias e crenças, e não
incorporam outros indicadores como o comportamento em relação a
parceiros íntimos e familiares (ver artigo do The Intercept Was Orlando shooters domestic violence history a missed warning sign?).
Pesquisa realizada pela organização Everytown for Gun Safety, em 2015, constatou
que mais de 25% de todos os massacres ocorridos nos últimos seis anos,
foram perpetrados por indivíduos com algum histórico de violência
doméstica.
Essas questões obrigam-nos a olhar com mais atenção para o conceito
de violência. Para o pensador norueguês Joan Galtung, a violência
visível (física) é apenas a ponta do iceberg, pois esta intimamente
relacionada a situações de violência estrutural e/ou justificadas pela
violência cultural. A violência estrutural se refere àquelas situações
em que se produz algum tipo de restrição na satisfação das necessidades
humanas básicas (bem estar social e econômico, identidade ou liberdade)
como resultado de processos de estratificação social. Ocorre sempre que
há conflito entre dois ou mais grupos sociais (gênero, etnia, classe,
nacionalidade) em que o acesso ou possibilidade de uso dos recursos
resulta favoravelmente a alguma das partes em detrimentos dos demais. Já
a violência cultural se expressa por meios simbólicos (religião,
ideologia, linguagem, arte, ciência, mídia, educação, etc.), e tem como
função legitimar a violência direta e/ou estrutural, e oferece
justificativas para que os seres humanos, além de se destruírem
mutuamente, ainda sejam recompensados por isso (racismo, sexismo,
xenofobia etc).
Vejamos, por exemplo, como tem se manifestado a violência cultural nos EUA. A organização Southern Poverty Law Center
(SPLC) monitora, desde 1981, o que considera como grupos de ódio nos
EUA — isso é, aqueles que “… têm crenças ou práticas que atacam ou
difamam um grupo de pessoas, devido às suas características. Suas
atividades incluem marchas, comícios, discursos, reuniões, panfletagem
ou publicação”. Ou seja, agem estritamente dentro da lei, pois exercem
direitos protegidos pela primeira Emenda da Constituição dos EUA (“o
Congresso não fará nenhuma lei a respeito do estabelecimento de uma
religião, ou proibindo o livre exercício dela; ou cerceando a liberdade
de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo se reunir
pacificamente e dirigir petições ao governo para a reparação de
injustiças”).
De acordo com pesquisa realizada pelo SPLC, em 2015, são 982 os
grupos de ódio ativos nos EUA, não incluindo aqueles que estão apenas no
ciberespaço. Trata-se de grupos extremamente diversificados como Ku
Klux Klan, White Nationalist, Racist Skinhead, Christian Identity,
Neo-Confederate, Black Separatist end General Hate. Para além de suas
particularidades, todos esses grupos manifestam, de alguma forma,
ideologias de ódio, incluindo as subcategorias anti-LGBT,
anti-imigrantes, islamofobicos, negação do Holocausto e outros.
Trata-se, sem duvida nenhuma, de um ambiente social com níveis
exacerbados de violência cultural.
É provável que ainda sejam adicionadas novas informações sobre as
possíveis motivações do massacre, mas um fato é incontestável e não
precisa esperar pelos resultados de uma investigação completa: trata-se
do maior massacre na história dos EUA que teve como alvo a comunidade
LGBT.
Apesar disso, políticos do Partido Republicano, em sua grande
maioria, têm se recusado a mencionar a comunidade LGBT pelo nome.
Trata-se de um ensurdecedor silencio de cumplicidade com o ódio que
viceja nessa sociedade e que conta com a proteção de uma constituição
que é alardeada no mundo inteiro como a mais democrática do mundo. Se é
isso então devemos concluir que há algo de podre no reino da democracia.
(fonte: http://www.outraspalavras.net/reginaldonasser/2016/06/16/eua-o-odio-que-o-fbi-nao-enxerga/)
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