Ocidente e Islã vivem crises simultâneas. Resposta dos
fundamentalistas é ódio ao Outro. Guerras e islamofobia, na Europa e
EUA. Massacres como em Paris e Orlando
Por Roberto Savio | Tradução: Inês Castilho
Quando, em 2006, charges blasfemas anti-Islã publicadas por um jornal dinamarquês deixaram 205 pessoas mortas
[em protestos que se espalharam pelo mundo], o então secretário geral
da Organização de Cooperação Islâmica, Ekmeleddin Mehmet Ihsaoglu, foi
conversar com Javier Solana, responsável pelas relações internacionais
da União Europeia. A posição da UE era de que não havia islamofobia
alguma e aquele era um incidente isolado. Desde então, essa tem sido
mais ou menos a posição das instituições europeias.
Mas agora, tal posição converteu-se numa negação da realidade. Há
três anos, manifestações de massa na Alemanha, especialmente em Dresden
(lideradas por um homem de passado criminoso), ocorrem semanalmente, sob
a bandeira do Pegida (Patriotic Europeans against the islamization of
Europe). A chacina de 77 pessoas
cometida por Anders Breivik em Oslo, em 2011, foi condenada como ato de
um lunático solitário. Hoje é sabido e aceito que, a cada dia,
acontecem mais de vinte atos de islamofobia somente na Alemanha. E o
congresso da AfD (Alternative for Germany), partido xenófobo e
nacionalista que em apenas dois anos alcançou representação em oito
estados da República Federal, conseguiu espaço na mídia.
O encontro foi realizado em 20 de abril, logo depois das eleições
alemãs de março. Viu a AfD tornar-se provavelmente o terceiro maior
partido do país. Semanas antes do congresso, na Áustria, o xenófobo
Freedom Party of Austria (FPO) chegou em primeiro lugar no primeiro
turno das eleições presidenciais. Pouco antes, o partido de direita
Slovak National Party (SNS) conseguira assumir o governo na Eslováquia
e, na Polônia, o grupo direitista Lei e Justiça (PiS) fizera o mesmo. Em
meio à indiferença geral, vem acontecendo nos últimos anos uma sucessão
ininterrupta de avanços da extrema direita na Suécia, Finlândia,
Dinamarca, Holanda, Alemanha, França, Suiça, Áustria, Hungria, Itália e
Grécia.
Os partidipantes do congresso da AfD sabiam que uma maré de
xenofobia, nacionalismo e populismo está invadindo a Europa. E o
discurso que adotaram seria impensável até poucos anos atrás. Uma das
resoluções foi de que o Islã é irreconciliável com a Europa e, portanto,
todos os muçulmanos serão expulsos da Alemanha. Qualquer solução teria
de passar pela mudança da Constituição, dado que 87% deles vivem no país
há mais de 15 anos e portanto estão, claramente integrados à sociedade e
constitucionalmente protegidos em seus direitos. Quando, na entrevista
coletiva, um jornalista perguntou como se faria a expulsão repentina de
milhões de pessoas do mercado de trabalho, a resposta foi: Hitler fez
isso com seis milhões de judeus, muito mais poderosos e integrados, e
nada aconteceu.
Agora, vamos lembrar que Hitler declarou que os judeus eram
incompatíveis com a Europa, arrancou-lhes a cidadania e deportou-os para
campos de concentração (condescendente, o AfD apenas os expulsaria…). O
objetivo do AfD não faz soar um alarme de um dejà vu?
Islamofobia foi o assunto de uma bem sucedida conferência organizada
pelo Centro de Genebra para o Avanço dos Direitos Humanos e Diálogo
Global, juntamente com a Missão Paquistanesa da ONU, apenas um dia antes
do Congresso do AfD. Subiram ao palco oradores de grande importância
como Idriss Jazairy, da Argélia, Ekmeleddin Mehmet Ihsaoglu, da Turquia,
e Tehmina Janjua, do Paquistão. E a conferência, com ampla participação
de diversos países, tratou de fazer o debate usual sobre religião.
Vários fatos foram levantados para mostrar que o Corão não prega
violência, e que o ISIS é apenas um desvio do verdadeiro Islã. A verdade
é que todos os painelistas muçulmanos — alguns sufistas, outros sunitas
— seriam considerados apóstatas e rapidamente executados pelo ISIS. Não
estavam presentes whabistas ou salafistas (a versão puritana do Islã).
É, contudo, bastante evidente que a islamofobia não tem nada a ver
com religião. Na verdade, há vários pontos em comum entre o Corão e os
evangelhos. E as guerras de religião raramente têm sido algo importante
para os cidadãos. Elas foram sempre originadas por reis e xeques. A
Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que destruiu a Europa muito mais do
que o ISIS jamais poderia conseguir, dizimando 20% de sua população, foi
iniciada pelo Imperador Ferdinando, da Boêmia. Na Espanha, protestantes
e católicos viviam pacificamente lado a lado, assim como judeus,
muçulmanos e cristãos, até que Isabel e Fernando decidiram expulsar os
judeus e os muçulmanos. E quando líderes religiosos como Girolamo
Savonarola, em Florença (um cristão wahabista), acumularam seguidores, o
Papa, neste caso, e reis e príncipes, em outros, interferiram
rapidamente para executá-los.
É mais do que tempo de reconhecermos que o Islã foi pego numa crise
interna do Ocidente. E que o próprio Islã encontra-se também numa crise
interna, não muito bem conhecida aqui fora. Há várias tendências do
Islã, além da divisão principal entre sunitas e xiitas. Mas também neste
caso, as lutas internas foram sempre geradas por reis, imãs e aiatolás,
ao usar a religião como instrumento de poder. Um dos argumentos contra o
Islã é que os cristãos estão deixando o mundo árabe por causa do
fanatismo muçulmano. Mas ninguém pára para pensar a razão por que os
cristãos vêm partindo de lá há gerações… Quem vencerá essa guerra
interna não está claro, mas certamente não será o ISIS, ou mesmo o
wahabismo, a despeito das centenas de milhões de dólares gastos pela
Arábia Saudita para criar mesquitas com imãs radicais ao redor do mundo.
O Islã continuará a ser uma religião com diversas linhas, que
aprenderão a coexistir. Quanto tempo isso levará, não se pode prever.
Mas vamos voltar ao que está acontecendo agora, hoje. O Ocidente vive
uma séria crise interna — da democracia, de ordem econômica e social e
da falta habilidade do sistema político para lidar com ela? Devíamos
reconhecer que, até a crise econômica de 2008, disparada nos EUA com o
estouro da bolha dos derivativos e depois na Europa com a bolha da
dívida soberana, o sistema criado no pós Segunda Guerra mantinha-se em
vigor.
Muitos historiadores defendem que as transformações na história
originaram-se por cobiça e medo. Desde a queda do Muro de Berlim, em
1989, entramos num período de capitalismo descontrolado, em que a cobiça
é considerada combustível positivo para o crescimento. Vinte anos
depois, a ganância resultou em volta da desigualdade social, que
acompanhou o nascimento da revolução industrial. Os números são claros e
bem conhecidos. Lembromos qpenas que 200 pessoas têm riqueza
equivalente à de 2,2 bilhões seres humanas. A classe média está
encolhendo: segundo o Banco Mundial, ela é agora 3% menor na Europa, e
7% nos Estados Unidos. No Brasil, onde 40 milhões de pessoas saíram da
pobreza para a classe média, milhões estão tomando as ruas por medo de
perder suas conquistas.
E à cobiça, soma-se o medo. Ele é o combustível para a ascensão de
Donald Trump (e de Bernie Sanders) nos EUA. Em toda parte, as pessoas
temem ver desaparecer o mundo que conheceram e no qual sentiam-se em
conforto e segurança. O apelo da direita tem sido por um passado melhor:
vamos voltar a uma Europa pura e ordeira, vamos nos livrar dos
burocratas de Bruxelas que desejam dirigir nossas vidas. Nacionalismo e
populismo estão de volta. Vamos nos livrar do euro; vamos voltar à nossa
soberania monetária e vamos expulsar todos os estrangeiros que estão
destruindo o mundo que se conhecia. O atual sistema político é corrupto e
não responde à necessidade dos cidadãos. Ele tornou-se uma casta
auto-sustentada. Vamos nos livrar dos partidos tradicionais, que são
instrumentos de interesses econômicos e financeiros.
Nesse quadro, é muito conveniente adicionar ao nacionalismo e ao
populismo a xenofobia, que transformou-se em islamofobia. Não por acaso,
isso começou na França, que tem a maior comunidade muçulmana da Europa.
E então dois fenômenos vieram ajudar no uso da islamofobia como
ferramenta política. Um foi a criação do ISIS em 2014, cujos atentados
na Europa vieram somar-se ao medo geral. Ao mesmo tempo, a crise dos
refugiados, que estão chegando como parte de um movimento migratório sem
precedentes na Europa. A islamofobia, juntamente com o nacionalismo e o
populismo, tem ajudado imensamente a maré da direita.
Contudo, responsabilizar inteiramente o ISIS e os refugiados por essa
maré seria uma leitura superficial dos fatos. Não nos esqueçamos de que
o governo antieuropeu da Hungria foi eleito em 2010, quando o ISIS e os
refugiados não existiam. Antes de 2014, o populismo e o nacionalismo, o
medo e a ganância foram os responsáveis pela maré montante. O governo
da Polônia, país onde a União Europeia despejou subsídios como em nenhum
outro, passou em 2015 para as mãos do partido da Lei e da Justiça, sob a
bandeira: vamos nos afastar do que está acontecendo na Europa. E o
Brexit, referendo britânico sobre a Europa, foi promovido pelo Ukip, o
UK Independence Party, que era acima de tudo um partido nacionalista
antieuropeu, com pouca islamofobia. Tanto que o prefeito de Londres é
hoje um islamita.
Agora, é claro, estamos todos fixados no Islã, transformado num fácil
bode expiatório por causa do ISIS e da crise dos refugiados. O fato de
que muitos dos refugiados vêm de guerras iniciadas pelas potências
ocidentais está agora completamente esquecido. Mas tal esquecimento não é
mais possível, politicamente, caso se queira olhar para o futuro e
construir uma política séria de imigração. Após o sucesso esmagador da
FPO na Áustria, a coalisão governamental democrata Socialista-Cristã
declarou que não deixará a bandeira da integridade nacional nas mãos da
direita e está indo longe aponto de cogitar erguer uma fronteira física
com a Itália.
Ainda assim, é fato que a Europa do passado não poderá voltar. O
Velho Continente tinha 24% da população mundial em 1800, e terá 4% no
final do século. Quando a Inglaterra obrigou a China a aceitar sua
exportação de ópio, em 1839, ela tinha uma população de 19 milhões de
pessoas, contra uma população chinesa de 354 milhões. Hoje, o Reino
Unido tem uma população branca de 41,5 milhões de pessoas e a China tem
1,6 bilhões. A Europa perderá 50 milhões de pessoas em três décadas. O
sistema previdenciário sofrerá um colapso. Podemos ter 50 milhões de
imigrantes cristãos? E por que tínhamos 20 milhões de muçulmanos vivendo
na Europa sem que ninguém notasse, até poucos anos atrás? Sem uma
política de imigração, como ignorar que o número total de pessoas
vivendo fora de seu país natal é agora de 240 milhões, o que os tornaria
o quinto maior país do mundo? Como escolher e admitir apenas aqueles
que são “necessários” ou “úteis”?
Estamos esquecendo tudo isso, a ponto de a Europa estar abandonando a
Carta dos Direitos Humanos, e sua proclamada identidade, para lidar com
o pouco palatável presidente Recep Tayyip Erdogan e chegar a um acordo
em que 1 milhão de sírios sejam trocados por 6 bilhões de dólares e
portas abertas para 70 milhões de turcos.
O Ocidente está entrando no jogo do ISIS. O sonho do Estado Islâmico é
criar uma guerra de religiões. Para obrigar os muçulmanos que vivem na
Europa e os Estados Unidos a fazerem uma escolha: ou tornar-se
apóstatas, colocando-se ao lado do Ocidente, a despeito de serem
rejeitados; ou juntar-se à luta para o renascimento do Islã e a guerra
contra os cruzados. Essa é sua estratégia. E a crescente maré de
nacionalismo, populismo e, agora, de islamofobia que paralisou o sistema
político tradicional, significa não apenas o declínio da democracia. É
também um caminho para a insegurança e o retorno aos homens fortes do
passado.
(fonte: http://outraspalavras.net/capa/quem-aposta-no-choque-de-civilizacoes/)
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