Às vésperas da Copa Europeia, greves em defesa dos direitos
trabalhistas paralisam país. População apoia. Mas insanidade do governo
“socialista” pode abrir espaço para direita
Por Pepe Escobar | Tradução: Inês Castilho
Paris está em chamas, enquanto o presidente François Hollande
trapaceia. Esta é síntese dos protestos por toda a França contra a
proposta da “reforma” trabalhista, enquanto o presidente posa no G-7, no
Japão, como se fosse um dos Senhores do Universo.
A França está semiparalizada – dos trabalhadores nas docas do porto
Le Havre (um hub-chave de comércio) a operários das refinarias,
depósitos de petróleo, estações de energia nuclear (que respondem por
75% do fornecimento nacional de energia), aeroportos, e o sistema de
transportes sobre trilhos metropolitano de Paris. Isso converteu-se em
pânico numa miríade de postos de gasolina – com a paralisação de grande
parte do sistema de transportes francês.
Tudo isso porque o governo Hollande, supostamente “socialista” e
catastroficamente impopular, introduziu um projeto de lei que modifica
de forma drástica as leis trabalhistas francesas e adota o
essencialmente neoliberal “contrata e demite” (“hire and fire”)
anglo-saxão, num país profundamente regulado e cheio de regras, onde a
proteção e os direitos dos trabalhadores são levados extremamente a
sério. Hollande e seu incrivelmente medíocre primeiro ministro Manuel
Valls defendem o projeto como a melhor maneira de combater o desemprego
crônico.
Acabe com o projeto para desbloquear o país
O maio de 2016 na França certamente não é um remix do maio de 1968.
Há um vórtice de fatores complicadores, tais como a psicose “terra terra
terra” (Paris vive num estado de sítio semidisfarçado); o movimento
Noites Despertas em curso na Praça da República – a versão francesa do
Occupy Wall Street; e a polícia com os nervos à flor da pele reclamando,
e até mesmo fazendo manifestações porque julgam não receber, da
população, todo o amor de que necessitam…
Maio de 2016 surge essencialmente como uma batalha entre o governo
socialista e os sindicatos franceses. Vai tornar-se mais quente. Dados
da polícia sugerem que havia 153 mil grevistas/manifestantes na
quinta-feira passada – um dia de enorme mobilização que atingiu os
serviços públicos e transportes aéreos. Os sindicatos contaram quase 300
mil. O executivo está começando a usar a força para desbloquear
refinarias chave. Postos de gasolina vazios e motoristas em pânico estão
se tornando a norma.
A dupla Hollande-Valls jogou pesado; o projeto de “reforma”
trabalhista precisa ser aprovado, do contrário será o fim do governo. O
sinal vermelho de Valls é: se o projeto de lei cair, ele também vai. No
entanto, já foi (ligeiramente) forçado a recuar; agora está permitindo
“mudanças” e “melhorias” na proposta.
Portanto, é essencialmente uma batalha da esquerda francesa – um ramo
radical, da classe trabalhadora, contra outro no poder, denominado
social-democrata, mas na verdade neoliberal. É também um diálogo de
surdos. O primeiro ministro não é propriamente um participante do
diálogo social. Para ele, as duas esquerdas são irreconciliáveis. Não é
preciso ser um leitor de Barther ou Deleuze para inferir que a França
está correndo o risco de chegar ao grau zero de democracia social.
Depois do oitavo dia de manifestações, Philippe Martinez, secretário
geral da CGT, a poderosa confederação sindical CGT, reivindica agora ser
recebido pelo presidente e somente o presidente – na prática, jogando
Valls no lixo.
É possível que a dupla Hollande-Valls esteja tão disconectada do
pulso das ruas que não foi capaz de percer que seu projeto de lei seria
encarado com tanta hostilidade. Deveriam ter pensado mais amplamente – e
investido em muito diálogo prévio, para não dizer sutilezas semânticas,
com os sindicatos.
E o que os franceses pensam sobre essa trapalhada? Três quartos da
população são contrários ao projeto. Não é possível “modernizar” a
França sem os franceses. Nesse país, nuances sutis importam. Segundo uma
das últimas pesquisas, 69% são favoráveis a mudanças no projeto de lei,
para impedir que a nação se mantenha paralisada. Outra pesquisa mostra
que 62% consideram “justificadas” as greves, a despeito da paralisação
de parte do país. Um cruzamento desses estudos revela que os movimentos
sociais são legítimos, mesmo que a maioria das pessoas não queira ver a
nação paralisada.
Num estilo mais leve, a conversa agora nos cafés de Paris é que seria
melhor o Partido Socialista nem tentar disputar a nova campanha
presidencial; os fatos provam que a classe trabalhadora tem hoje por ele
um ódio visceral. O atual estado de emergência – versão francesa da Lei
Patriótica (Patriot Act) dos EUA – mais o viés neoliberal dado
pelo Partido Socialista (PS) leva-o a perder o voto de artistas e
intelectuais, assim como o dos “bo-bos” (boêmios burgueses), que
costumavam ser o principal esteio de sua base eleitoral. E tudo isso
enquanto os executivos-chefes, tão cortejados pelo PS, continuarão a
votar com a direita.
Hora de ser um “indignado” com causa
E agora? Busca-se alguma forma de conciliação; o texto do projeto
será emendado pelo Senado no mês que vem, antes de voltar à Assembleia.
Isso significa que ela será “retocada” – como até mesmo o governo está
agora admite; e isso significará uma vitória dos movimentos sociais.
Aconteça o que acontecer, a guerra das esquerdas não terá terminada. E o
resultado final pode até mesmo resultar numa forma de suicídio coletivo
– em benefício da direita.
O crescimento econômico da França permanece muito fraco. A Copa
Europeia de Seleções 2016 começa em apenas duas semanas, em 10 de junho.
A França espera receber 1,5 milhão de turistas estrangeiros e lucrar
algo em torno de 1,3 bilhão de euros. A área de fãs que está sendo
construída em frente a Torre Eiffel atrai ao menos 100 mil pessoas
diariamente.
Se não houver uma solução nos próximos dias, a dupla Hollande-Valls
terá de recuar. O sistema de segurança francês não terá capacidade de
dar conta, simultaneamente, de um alerta máximo contra terrorismo e uma
miríade de manifestações (um enorme protesto já está marcado para 14 de
junho). Há muito em questão para o sucesso do campeonato de futebol,
além dos lucros. O futebol, nesse caso, está longe de ser neutro
politicamente; se o show for um grande sucesso, quem colherá os
benefícios será Hollande.
Os socialistas franceses, enquanto isso, poderiam fazer mais do que
dar uma olhada na vizinha Espanha. Na Espanha de Franco, comunistas e
socialistas estavam na vanguarda da resistência democrática,
incorporando em sua luta aqueles que criaram as Comissões de
Trabalhadores e alguns dos melhores intelectuais de seu tempo.
Então, veio deriva neoliberal dos partidos socialistas europeus – que
os levou a perder sua hegemonia histórica. Eles não foram capazes, ao
mesmo tempo, de defender sua base social – e o Estado de bem-estar
social – e satisfazer os duros requisitos do cassino que é o sistema
financeiro e a política econômica de “austeridade” fiscal imposta pela
Comissão Europeia, e exigida pela Alemenha.
No período de Franco e durante a Guerra Fria, era comum usar
“comunista” e “socialista” como forma de desqualificar qualquer
argumento político. Reinava a política do medo. A França, por sua parte,
era muito mais sofisticada politicamente (e, ao contrário da Espanha
não estava sob um regime fascista.)
O que resta para a esquerda na Europa é prestar muita atenção ao
caminho emergente aberto pelos movimentos sociais, compreender a
necessidade de reconstruir um Estado de bem-estar social e criar formas
de emprego com valor; tudo isso tem sido negado pelo fundamentalismo de
mercado e o modo de pensar da austeridade TINA (There Is No Alternative,
Não Há Alternativa).
Entre os “indignados” espanhóis encontram-se anarquistas, comunistas,
socialistas – um microcosmo da história moderna da Espanha enraizada na
indignação contra a ditadura e a injustiça social, todos tentando
reinventar-se enquanto o neoliberalismo afunda. Quem dera os
esquerdistas franceses pudessem ao menos lançar um olhar para lá.
(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/franca-a-luta-social-pega-fogo/)
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