As ideias pseudocientíficas predominantes na Europa na segunda metade do século XIX influenciaram fortemente a intelectualidade brasileira até a década de 1930. As ideologias racistas, transvestidas de ciência, serviram para justificar as restrições à cidadania da grande maioria do nosso povo, composta de pessoas não-brancas, e buscaram transformar aquilo que seria uma consequência nefasta do nosso processo de desenvolvimento histórico-social em coisa natural. Naturalizavam assim a nossa miséria, jogando a culpa nas costas da natureza e do próprio povo, que seria composto por raças e sub-raças inferiores. A igualdade entre os homens, inclusive a formal, passou a ser considerada uma utopia – um sonho irrealizável.
Nina Rodrigues: o negro como marginal
O primeiro grande cientista brasileiro a incorporar as teses racistas modernas foi Nina Rodrigues (1862-1906). Ainda em 1888, ano da Abolição da escravatura, escreveu: “A igualdade é falsa, a igualdade só existe nas mãos dos juristas”. Poucos anos depois, em 1894, publicou um ensaio sobre a relação entre as raças humanas e o Código Penal, no qual defendeu a tese segundo a qual deveriam existir códigos penais diferentes para raças diferentes. No Brasil, por exemplo, o estatuto jurídico do negro devia ser o mesmo de uma criança. Essa teoria é particularmente nefasta, pois apareceu no momento em que os negros recém-libertados lutavam para ocupar um lugar na sociedade de classes como cidadãos portadores de plenos direitos.
Nina Rodrigues era professor de medicina legal na Bahia e foi um dos introdutores da antropologia criminal, da antropometria e da frenologia no país; ou seja, introduziu aqui o que existia de pior na Europa e Estados Unidos. Em 1899 publicou Mestiçagem, Degenerescência e Crime, procurando provar suas teses sobre a degenerescência e tendências ao crime dos negros e mestiços. Os demais títulos publicados também não deixam dúvidas sobre seus objetivos: “Antropologia patológica: os mestiços”, “Degenerescência física e mental entre os mestiços nas terras quentes”. Para ele, o negro e os mestiços se constituíam em chagas da nossa nacionalidade.
Sua grande obra foi Os Africanos no Brasil, coletânea de textos escritos entre 1890 e 1905 – publicada postumamente. Estes foram os primeiros grandes estudos sociológicos sobre a presença negra na cultura brasileira e, contraditoriamente, os mais importantes trabalhos baseados no chamado racismo científico publicados no final do século XIX e início do século XX. Logo na Introdução procurou desfazer a falsa concepção existente sobre os negros brasileiros, construída pelo movimento abolicionista. Escreveu ele: “Para dar-lhe (a escravidão) esta feição impressionante foi necessário ou conveniente emprestar ao negro a organização psíquica dos povos brancos mais cultos (…). O sentimento nobilíssimo de simpatia e piedade, ampliado nas proporções duma avalanche enorme na sugestão coletiva de todo um povo, ao negro havia conferido (…) qualidades, sentimentos, dotes morais ou ideias que ele não tinha e que não podia ter; e naquela emergência não havia que apelar de tal sentença, pois a exaltação sentimental não dava tempo nem calma para reflexões e raciocínios”.
Para ele, seria preciso separar a simpatia pelos negros que haviam sido escravizados e a ciência: “Os destinos de um povo não podem estar à mercê das simpatias ou dos ódios de uma geração. A ciência, que não conhece estes sentimentos, está no seu pleno direito exercendo livremente a crítica e a estendendo com a mesma imparcialidade a todos os elementos étnicos de um povo (…). Se conhecemos homens negros ou de cor de indubitável merecimento e credores de estima e respeito, nada há de obstar esse fato o reconhecimento dessa verdade – que até hoje não puderam os negros constituir em povos civilizados”.
No mesmo sentido escreveu: “A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros de seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”. Por isso mesmo enaltecia aqueles que destruíram Palmares, pois haviam colocado um fim na “maior das ameaças à civilização do futuro povo brasileiro: esse novo Haiti, refratário ao progresso e inacessível à civilização, que Palmares vitorioso teria plantado no coração do Brasil”.
Segundo o renomado cientista baiano, a inferioridade do negro – e das raças não-brancas – seria “um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões e seções”. No Brasil, os arianos deveriam cumprir a missão de não permitir que as massas de negros e mestiços pudessem interferir nos destinos do país. “A civilização ariana está representada no Brasil por uma fraca minoria da raça branca a quem ficou o encargo de defendê-la (…) (dos) atos antissociais das raças inferiores, sejam estes verdadeiros crimes no conceito dessas raças, sejam, ao contrário, manifestações do conflito, da luta pela existência entre a civilização superior da raça branca e os esboços de civilização das raças conquistadas ou submetidas”. Talvez, nunca antes alguém tenha defendido com tanta ênfase a repressão aberta e o controle social sobre as camadas populares, representadas pelas populações não-brancas. A grande ironia foi o fenótipo de Nina Rodrigues não ter conseguido esconder sua descendência africana, portanto, sua condição de mestiço.
As ideias de Nina Rodrigues tiveram grande aceitação social e influenciaram fortemente toda uma geração de cientistas e intelectuais brasileiros, inclusive escritores progressistas como Euclides da Cunha. A sua monumental obra Os Sertões está impregnada pelo espírito da época. Somente a capacidade daquele grande jornalista brasileiro pôde, em contato com a saga dos sertanejos de Antônio Conselheiro, extrair conclusões que contradiziam seus pressupostos teóricos e ideológicos. Essa contradição está exposta claramente em uma de suas conclusões: “O sertanejo é antes de tudo um forte”.
Referências
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* Este texto é parte do 5º capítulo do livro “Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros”, obra publicada pela Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois em 2009. Publicado em http://www.grabois.org.br/portal/artigos/153339/2017-02-20/racismo-e-ciencia-no-brasil-pos-abolicao-1888-1930.
** AUGUSTO BUONICORE é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
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