Bombardeio da Síria nada tem a ver com justiça e não será capaz
de restaurar poder dos EUA no Oriente Médio. Mas pode incendiar de novo
um dos barris de pólvora do planeta
Por John Wight | Tradução: Maurício Ayer e Inês Castilho
Descrever o ataque dos Estados Unidos à Síria como uma medida séria é ser incapaz de avaliação.
Sem nenhum respaldo do direito internacional ou na ONU, o governo
Trump cometeu um ato de agressão contra mais um Estado soberano do
Oriente Médio, o que confirma que os neoconservadores retomaram seu
domínio sobre a política externa de Washington. Este ato de agressão
acaba com qualquer perspectiva de desanuviamento entre EUA e Rússia no
futuro próximo. Ao contrário: aumenta consideravelmente as tensões entre
os dois países, não apenas no Oriente Médio como também no Leste
Europeu, onde há algum tempo tropas da OTAN vem realizando exercícios militares a uma distância de ataque do território russo.
Na esteira da divulgação das terríveis imagens de Idlib, após o
suposto ataque de gás sarin, observou-se no mundo ocidental um crescente
clamor por mudança de regime em Damasco, com declarações de políticos e
da mídia que apressam o julgamento e responsabilizam o governo sírio
pelos ataques. Ninguém sabe com certeza o que aconteceu em Idlib, razão
pela qual o que se deveria buscar é um acordo para realizar uma
investigação independente em busca da verdade e, com ela, da justiça.
Em todo caso, apenas os mais ingênuos acreditariam que esse ataque
dos Estados Unidos contra a Síria tenha sido cometido visando à justiça.
Por que seria assim, quando sabemos que recentemente bombas
estadunidenses mataram civis, inclusive crianças, em Mosul? E por que
seria assim, se considerarmos o indizível sofrimento das crianças do
Iêmen em consequência da brutal campanha militar da Arábia Saudita?
Não, este ataque dos Estados Unidos – que segundo relatos
oficiais envolveu 59 mísseis Tomahawk, lançados de navios posicionados
no leste do Mediterrâneo – foi perpetrado com vistas a uma mudança de
regime, e estabelece um precedente que pode ter graves desdobramentos
para toda a região.
Sobre o ataque em Idlib, o que pode ser dito com certeza é que, num
momento em que as forças pró-governo na Síria estavam em ascensão e em
que o governo obtinha progressos significativos na frente diplomática,
seria um ato de sabotagem brutal realizar qualquer tipo ataque de armas
químicas, ainda mais dessa magnitude.
Isso correponderia a um governo empenhado em provocar seu próprio
desmantelo. Deve-se levar em consideração o fato de que a Organização
para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), uma organização apoiada pelos
Estados Unidos, confirmou em junho de 2014 que o processo de destruição
completa do arsenal de armas químicas da Síria tinha sido concluído.
Além disso, as terríveis imagens e testemunhos oculares de Idlib que
apareceram logo após o ataque são todos provenientes de fontes
oposicionistas. Nenhum jornalista ou equipe de reportagem ocidental
ousaria pôr os pés em Idlib, ou mesmo em qualquer outra parte do
território sírio tomado pelas forças de oposição, pois sabem que, se
assim procedessem, poderiam ser capturados e trucidados.
Com esta intervenção militar unilateral, Trump provou que pode
facilmente ser tragado para dentro do conflito. Poucos dias após seu
governo confirmar que uma mudança de regime na Síria estava fora de
questão e que o seu foco era derrotar o terrorismo, Trump deflagra um
ataque aéreo que apenas incitará as mesmas forças terroristas cuja
derrota ele havia enfatizado ser o centro de sua política externa.
E agora? Claramente, essa ação militar coloca a Rússia em posição
muito difícil. Desde que se envolveu no conflito na Síria, no final de
setembro de 2015, por determinação de seu governo, Moscou trabalhou
incansavelmente para construir uma saída negociada, uma saída que
envolvesse as forças de oposição e as partes consideradas moderadas se
comparadas aos fanáticos jihadistas salafistas do ISIS e Al Nusra, entre
outros. Trata-se de um processo diplomático que acaba de sofrer um
golpe devastador, pois a oposição agora está indubitavelmente convencida
de que a mudança de regime virá via Washington e, portanto, se vê
estimulada a trabalhar por este fim.
Enquanto isso, os aliados regionais de Washington – Israel, Arábia
Saudita, Catar e Turquia (com Erdogan garantindo que se ligará a quem
for mais forte…) – provavelmente agora começarão a pedir mais ações
militares contra Damasco, vendo o ataque dos EUA como o catalisador de
uma temporada de vale-tudo em relação à soberania do país.
Para Trump — que está sob intensa pressão do establishment mediático,
político e das agências de espionagem de Washington desde que assumiu o
governo –, esta ação garantirá um pouco da tão necessária aprovação e,
com isso, uma trégua. Seu governo emitiu sinais ameaçadores durante
algum tempo, a começar pela renúncia forçada de Mike Flynn como
Conselheiro de Segurança Nacional em fevereiro, seguida pela recente
saída de Steve Bannon do Conselho de Segurança Nacional da Presidência.
Foi mais uma evidência de que os neoconservadores haviam reassegurado
sua dominação sobre a Casa Branca, depois de um curto período de intensa
luta pelo poder.
Numa visão mais ampla, a falta de memória de curto prazo em
Washington é impressionante. Quatorze anos depois da desastrosa invasão
do Iraque, que abriu os portões do inferno para deixar emergir o ISIS e
outros grupos jihadistas, e seis anos depois de fazer da Líbia um Estado
falido, disparando no processo uma crise de refugiados de proporções
bíblicas, temos aqui novamente um ato de agressão contra um Estado
soberano no Oriente Médio pelos EUA.
Destruir países para “salvá-los” é, desde sempre, a história de todos
os impérios. Mas, como a história revela, todo império carrega dentro
de si as sementes de sua própria destruição. Donald Trump caminha agora
para ficar na história como um governante que, ao invés de salvar os EUA
de si mesmos, pode ter ajudado apenas a acelerar sua queda até a morte
final.
Tito Lívio, o grande historiador romano, escreveu certa vez: “Roma
cresceu tanto desde seu humilde início que agora está devastada por sua
própria grandeza.”
(fonte: http://outraspalavras.net/capa/ataque-de-um-imperio-em-decadencia/)
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